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Proc. nº 64/94
2ª Secção
Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal
Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A. foi julgado em processo comum pelo
tribunal colectivo da comarca de Albergaria-a-Velha, e, pela prática de um crime
de violação, previsto e punível pelo artigo 202º, nº 1, do Código Penal,
condenado, por acórdão de 26 de Outubro de 1992, na pena de três anos de prisão
e na indemnização de 400.000$00 à ofendida, B..
Tendo o arguido recorrido para o Supremo
Tribunal de Justiça, tal decisão foi aí confirmada, por acórdão de 27 de Outubro
de 1993.
Recorreu então para o Tribunal
Constitucional, para apreciação da alegada inconstitucionalidade da norma penal
citada, a qual, «na medida em que discrimina os deficientes e os impede de terem
vida sexual», violaria o disposto nos artigos 71º e 13º da Constituição. Nas
alegações apresentadas neste tribunal, acrescentou que a norma penal em causa
violaria ainda o artigo 18º da Constituição.
A ofendida contra-alegou no sentido de
que nenhuma discriminação existe ou está minimamente contida nessa norma,
devendo negar-se provimento ao recurso.
O Ministério Público, por seu lado,
pronunciou-se no sentido de que o recurso é improcedente, sendo a mesma norma
perfeitamente compatível com os princípios estabelecidos no artigo 71º da Lei
Fundamental.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
2. É objecto do presente recurso a
apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 202º, nº 1, do Código Penal
de 1982, na parte em que incrimina a cópula praticada com mulher portadora de
anomalia psíquica, e cujo teor é o seguinte:
Artigo 202º
Violação de mulher inconsciente
1. Quem tiver cópula com mulher inconsciente, incapaz de resistir fisicamente
ou portadora de anomalia psíquica que lhe tire a capacidade para avaliar o
sentido moral da cópula ou se determinar de harmonia com essa avaliação, ou com
mulher menor de 14 anos, será punido com prisão de 2 a 5 anos.
2. [...]
3. Segundo o recorrente, esta norma será
inconstitucional «na medida em que impede e discrimina os deficientes mentais,
seja qual o grau de deficiência de que padecem, de terem vida sexual, levando-os
à castração formal». Pois o legislador constituinte entendeu não retirar aos
cidadãos mentalmente deficientes o direito fundamental «à vida e realização
sexual» e reafirma no artigo 71º da Constituição «o princípio da igualdade de
direitos com ressalva do exercício ou do cumprimento daqueles para os quais se
encontrem incapacitados».
A isto, opõe o Ministério Público as
considerações seguintes:
[...] Quando o artigo 202º, nº 1, do Código Penal pune aquele que mantiver
cópula com mulher 'portadora de anomalia psíquica que lhe tire a capacidade de
avaliar o sentido moral da cópula ou se determinar de harmonia com essa
avaliação' visa sancionar o comportamento do violador que se limita a aproveitar
a incapacidade natural da ofendida para com ela manter relações de sexo.
Assim sendo, é manifesto que tal norma não estabelece qualquer
'discriminação' relativamente às portadoras de deficiência psíquica,
destinando-se, pelo contrário, tão-somente a assegurar os seus interesses e
direitos fundamentais, defendendo a sua própria dignidade, ao desincentivar -
através da imposição de sanções criminais - que indivíduos que pautam o seu
comportamento pela ausência de padrões éticos mínimos delas se possam
aproveitar, como simples instrumento destinado à satisfação de primários
instintos sexuais.
Ao sancionar pela via criminal tais comportamentos, está afinal o Estado a
realizar a tarefa que lhe é cometida pelo nº 2 do artigo 71º da Lei Fundamental,
prevenindo e reprimindo as condutas que traduzem atentado à própria dignidade
pessoal dos deficientes mentais e aos deveres de respeito e solidariedade que
todos os membros da sociedade lhes devem.
Também o patrono da ofendida observa que:
[...] O art. 202º do Cód. Penal não penaliza ou condena o direito do deficiente
mental a uma vida sexual normal... Condena e penaliza sim - quem, consciente dos
seus actos, procura saciar a sua libido, os seus desejos carnais, e para o
efeito mantenha cópula com uma mulher, aproveitando-se e abusando da sua
situação de deficiência mental ou anomalia psíquica, da sua incapacidade para
avaliar o sentido moral da cópula ou se determinar de harmonia com essa
avaliação.
Nenhuma discriminação existe ou está minimamente contida no art.
202º do Cód. Penal, que não colide com a vida sexual dos deficientes mentais e,
portanto, não padece da invocada inconstitucionalidade suscitada pelo Arguido e
Recorrente.
4. O artigo 71º da Constituição
dispõe o seguinte:
Artigo 71º
Deficientes
1. Os cidadãos física ou mentalmente deficientes gozam plenamente dos direitos e
estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição, com ressalva do
exercício ou do cumprimento daqueles para os quais se encontrem incapacitados.
[...]
Tal como observam J.J. Gomes Canotilho e
Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., pág. 358),
consagra-se aqui o direito dos deficientes «a não serem vítimas de uma capitis
diminutio por motivo de deficiência, para além daquilo que seja consequência
forçosa da deficiência». E acrescentam que este direito tem uma vertente
negativa (os deficientes não podem ser privados de direitos ou isentes de
deveres) e uma vertente positiva (podem exigir ao Estado as medidas que
assegurem o exercício efectivo desses direitos ou o cumprimento desses
deveres).
5. O problema das relações sexuais e
familiares dos deficientes mentais tem sido ultimamente objecto de intenso
aprofundamento doutrinal.
A Convenção Europeia dos Direitos do
Homem não tem uma norma específica relativa aos deficientes mentais, mas dispõe
no seu artigo 8º, nº 1, que «qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida
privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência»; segundo o nº 2
do mesmo artigo, «só pode haver ingerência das autoridades públicas no
exercício deste direito na medida em que tal ingerência for prevista na lei e
constituir uma medida que, numa sociedade democrática, seja necessária à
segurança nacional, à segurança pública, ao bem-estar económico do país, à
defesa da ordem e à prevenção das infracções penais, à protecção da saúde ou da
moral, ou à protecção dos direitos e liberdades de outrem».
A Declaração dos Direitos das Pessoas
Mentalmente Deficientes, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas pela
Resolução 2856 (XXVI), em 20 de Dezembro de 1971, estabelece, entre outros, os
seguintes princípios:
1. A pessoa mentalmente deficiente tem, no grau máximo de possibilidade, os
mesmos direitos que os outros seres humanos
[...]
4. Sempre que possível, a pessoa mentalmente deficiente deve viver com a sua
família ou com pais adoptivos (...)
[...]
7. Sempre que as pessoas mentalmente deficientes forem incapazes, por causa da
gravidade da sua deficiência, de exercer todos os seus direitos de forma
significativa, ou se se tornar necessário restringir ou negar alguns desses
direitos, o processo usado para a restrição ou negação desses direitos tem de
incluir adequadas salvaguardas legais contra qualquer forma de abuso.
A Declaração dos Direitos dos
Deficientes, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas pela Resolução
3447 (XXX) em 9 de Dezembro de 1975, e que abrange também os deficientes mentais
(artigo 1º), estabelece o princípio de que estes «seja qual for a origem,
natureza ou gravidade das suas limitações [handicaps] e incapacidades, têm os
mesmos direitos fundamentais que os seus concidadãos da mesma idade, o que
implica em primeiro lugar e principalmente o direito a usufruir uma vida
aceitável, tão normal e preenchida quanto possível».
6. Hoje assiste-se, na generalidade dos
países, a uma revisão crítica do regime jurídico aplicável ao deficiente mental,
desde logo no domínio da sua capacidade jurídica. A própria noção tradicional de
incapacidade jurídica tem sido questionada: por exemplo, a lei austríaca nº 136,
de 2 de Fevereiro de 1983 (SWG), abandonou os conceitos de interdição e de
inabilitação, criando em seu lugar um regime mais flexível de administração de
bens (Sachwalterschaft).
Mas também, por exemplo, no âmbito do
direito matrimonial e das relações de família há sinais de uma profunda
modificação da maneira de encarar, do ponto de vista jurídico, a deficiência
mental. Defende-se, por exemplo, em certas condições, a possibilidade de
casamento do deficiente mental, embora sujeita a autorização judicial,
apontando-se a este respeito a experiência francesa (sobre toda esta matéria,
vejam-se: G. Visintini, La nozione di incapacità serve ancora?; P. Zatti,
Infermità di mente e diritti fondamentali della persona; E. A. Bajons, La
protezione dell'infermo di mente nel diritto austriaco - todos em Paolo Cendon,
Ed., Un altro diritto per il malato di mente: esperienze e soggetti della
trasformazione, Edizione Scientifiche Italiane, Roma, 1988; e, para uma
informação actualizada sobre a colocação do problema no direito inglês, Brenda
Hoggett, Mental Health Law, Sweet and Maxwell, Londres, 1990).
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
considerou que o direito à protecção da vida privada de um deficiente mental
(decorrente do artigo 8º da Convenção) obriga os Estados a estabelecer medidas
positivas, designadamente por forma a que os legais representantes de uma
deficiente mental menor possam exercer o direito de queixa por violação (caso
X. e Y. v. Holanda, sentença de 26 de Março de 1985). Noutro caso, o mesmo
tribunal considerou violado o mesmo artigo 8º por, a um inimputável perigoso
internado num hospital psiquiátrico, terem sido impostas restrições à
correspondência; e considerou violado o artigo 10º da Convenção por ele ter
sido privado de jornais, rádio e televisão por motivos disciplinares que nada
tinham a ver com o tratamento (caso Herczegfalvy v. Áustria, sentença de 24 de
Setembro de 1992). E também sobre o direito do internado a obter patrocínio
oficioso para pedir judicialmente a cessação do internamento, se pronunciou no
caso Megyeri v. Alemanha (sentença de 12 de Maio de 1992).
Recentemente, o Tribunal Constitucional
espanhol, em decisão assaz controversa e com vários votos de vencido,
pronunciou-se pela constitucionalidade da norma do artigo 428º do Código Penal
daquele país que, na redacção introduzida pela Ley Orgánica 3/1989, autoriza a
esterilização de deficientes psíquicos graves (Sentencia nº 215/1994, 14 julio,
Boletín de Jurisprudencia Constitucional 160-161, pág. 26-39). Aquele tribunal
considerou que a medida em causa (aplicável a pessoas de ambos os sexos) era
justificada, pois tornava possível o exercício da sexualidade pelo deficiente
sem o risco de uma procriação cujas consequências ele não está em condições de
assumir conscientemente; e era proporcionada aos fins pretendidos, desde que
realizada em condições que não envolvessem um risco para a saúde e vida do
deficiente, sendo a mais segura para alcançar esses fins.
7. Mas será que da norma do artigo 202º,
nº 1, do nosso Código Penal, resulta que as pessoas, ou antes, as mulheres com
deficiência mental, seja qual for o grau de deficiência de que padecem, ficam
todas impedidas de terem uma vida sexual normal (isto é, adequada à sua
situação), como o recorrente alega?
De modo nenhum.
Com efeito, não é por ter cópula com
mulher portadora de uma qualquer anomalia psíquica que, segundo o artigo 202º,
nº 1, do Código Penal de 1982, o agente pratica o crime de violação: só há
crime de violação punível nos termos deste artigo se a anomalia psíquica for tal
que tire à deficiente a capacidade para avaliar o sentido moral da cópula ou a
capacidade para se determinar de acordo com essa avaliação. Assim sendo, a
norma em causa não visa - nem tem como consequência - impedir toda e qualquer
mulher portadora de deficiência psíquica de ter uma vida sexual normal (isto é,
adequada às suas condições físicas e psíquicas); pelo contrário, visa justamente
as situações em que o consentimento da mulher não existiu, nem podia existir, ou
se revela manifestamente irrelevante.
Como assinala Fernando João Ferreira
Ramos (Revista do Ministério Público, nº 59, págs 29 e segs.), «o direito penal
não deve ser um limite da liberdade sexual, mas um garante desta mesma
liberdade, que há-de partir do reconhecimento da plena autonomia da livre
determinação pessoal em matéria sexual entre adultos e em privado, pautando a
sua intervenção pelos princípios da necessidade ou dignidade penal e conduzindo
também à não criminalização de condutas meramente imorais que não ofendem bens
jurídicos fundamentais da comunidade». Mas, se «não é possível nem desejável
sancionar penalmente a mera actividade sexual, o que é conforme ao princípio
democrático que proclama pertencer ao cidadão, e só a ele, determinar o seu
próprio comportamento sexual (uma das componentes essenciais da vida privada),
apenas com a limitação decorrente da liberdade das outras pessoas em matéria
sexual» (ibidem), a verdade é que cabe precisamente ao legislador sancionar
penalmente os casos em que ocorre, através de uma prática sexual, a violação da
liberdade sexual de outrem, cabendo-lhe, contudo, uma ampla margem de autonomia
para, em cada momento, densificar conceptualmente esses casos, descortinando
aqueles em que se pode verdadeiramente encontrar uma coacção sexual.
Ora, muito embora se haja de reconhecer
que nem sempre será fácil conceber a harmonização do direito das mulheres
deficientes a uma vida sexual compatível e adequada ao desenvolvimento da sua
personalidade com a indispensável salvaguarda da sua dignidade, impedindo que
possam ser 'utilizadas' como mero objecto da satisfação de apetites sexuais de
terceiros, importa concluir que a lei, no caso em apreço, encontrou uma solução,
que não sendo a única possível, procura conciliar os diversos interesses em
presença, promovendo a sua concordância de modo constitucionalmente não
censurável, já que nem exclui o direito das mulheres deficientes à realização
sexual - quando verdadeiramente disponham de liberdade moral de escolha na
matéria -, nem permite que se verifique um aproveitamento da deficiência
psíquica para efeitos de uma autêntica exploração sexual.
É bem verdade que a solução legal em
apreço foi alvo de crítica por assentar na «ideia errada que é de que os
incapacitados por razões psíquicas devem ser condenados à virgindade»
(intervenção do Prof. Figueiredo Dias, registada na anotação ao artigo 163º,
Código Penal - Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça,
pág. 253) e que, na sequência dessa crítica, veio a imperar outra solução
legislativa - cfr. artigo 165º da nova versão do Código Penal, constante do
Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março. Contudo, pelas razões apontadas, dado o
sentido e alcance que se deve dar à norma do artigo 202º do Código Penal aqui em
apreciação - sentido e alcance que lhe foi, aliás, dado pelo S.T.J. na decisão
recorrida, e que assenta na ideia de que não se trata de impedir a deficiente de
ter uma vida sexual adequada às suas condições físicas e intelectuais, mas sim,
e pelo contrário, de protegê-la contra os atentados à sua liberdade sexual,
designadamente ao ter em conta a finalidade prosseguida pelo agente, como
elemento subjectivo do tipo incriminador -, não se pode concluir pela sua
inconstitucionalidade.
8. Nesta conformidade, a norma em apreço,
tal como o Supremo Tribunal de Justiça a interpretou e aplicou, não viola, pois,
o artigo 71º da Constituição, nem o princípio da igualdade consagrado no artigo
13º da mesma Lei Fundamental (por descriminar as deficientes). E também não
viola o artigo 18º da C.R.P., porquanto, se restringe um direito dos deficientes
mentais, fá-lo de modo adequado e proporcionado à necessária defesa de outros
direitos da mesma classe de cidadãos, numa ponderação de interesses e valores
que, podendo ser contestável no domínio das opções político-legislativas, se
afigura, porém, não merecer qualquer censura do ponto de vista
jurídico-constitucional.
III - DECISÃO
9. Nestes termos, decide-se negar
provimento ao recurso.
Lisboa, 17 de Outubro de 1995
Luís Nunes de Almeida
Guilherme da Fonseca
Messias Bento
José de Sousa e Brito
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
José Manuel Cardoso da Costa