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Proc. nº 247/95
1ª Secção
Rel. Cons. Monteiro Diniz
(Cons. Ribeiro Mendes)
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - O Tribunal Colectivo da comarca de Olhão da Restauração, por
acórdão de 25 de Novembro de 1993, julgou e condenou os arguidos A., B., C. e
D., além do mais, nas seguintes penas: (a) Os três primeiros, pela prática de um
crime previsto e punido pelos artigos 21º, nº 1 e 24º, alínea c), do Decreto-Lei
nº 15/93, de 22 de Janeiro, respectivamente, em 11 anos, 8 anos e 9 anos de
prisão; (b) A quarta arguida, pela prática de um crime previsto e punido pelo
artigo 40º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, em 20 dias de multa à taxa de
1.000$00 por dia, na alternativa de 13 de dias de prisão.
Inconformados com o assim decidido recorreram os dois primeiros
arguidos para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por acórdão de 6 de Outubro de
1994, na parte aqui a considerar, lhes negou provimento e confirmou o aresto
impugnado.
Trouxe então o primeiro arguido, A., os autos em recurso a este
Tribunal, sob invocação do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, em ordem à apreciação da constitucionalidade dos
artigos 410º e 433º do Código de Processo Penal.
Nas alegações que entretanto ofereceu, formulou as conclusões
seguintes:
'1 - Só o funcionamento de um II instância de facto pode garantir a
suficiência do presente recurso tal como decorre do artº 32º da Lei Fundamental
e do artº 6º - 1 da CEDHE artº 14º - 5 do PIDCP em ordem a garantir uma justiça
eficaz e que respeite o direito ao recurso.
2 - A não realização de um julgamento de facto e de direito por parte do
STJ com a presença do recorrente e com integral reapreciação da prova recolhida
em cassetes audio no julgamento efectuado no tribunal a quo viola o princípio do
duplo grau de jurisdição de facto.
3 - O artº 433º do actual CPP - conjugado com o artº 410º do mesmo CPP -
violam os artºs 32º - 1 da Constituição da República e os artºs 6 - 1 da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o artº 14º - 5 do Pacto Internacional
sobre direitos civis e políticos pelo que são inconstitucionais e impedem o
recorrente de fazer ouvir a sua voz - e estar presente - na audiência de recurso
destinada a apreciar a declaração de culpabilidade'.
Por seu turno, o senhor Procurador-Geral Adjunto, em contralegação,
contrapôs o seguinte quadro conclusivo:
'1º - O sistema de recursos e os poderes de cognição do Supremo Tribunal de
Justiça no âmbito do processo penal em vigor, emergentes do estatuído nas
disposições conjugadas dos artigos 410º e 433º do Código de Processo Penal, não
violam quaisquer princípios ou preceitos constitucionais.
2º - Termos em que deverá ser julgado improcedente o presente recurso'.
O primitivo relator, considerando a jurisprudência já formada pelo
Tribunal Constitucional a propósito da questão sub judice, dispensou os vistos
de lei.
Verificou-se, entretanto, por vencimento, mudança de relator,
cabendo agora apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
1 - O Tribunal Constitucional firmou jurisprudência uniforme (se
bem que com votos de dissentimento) no sentido de o recurso perante o Supremo
Tribunal de Justiça a que se reporta a norma do artigo 433º do Código de
Processo Penal, se traduzir em solução compatível com a exigência constitucional
consagrada no artigo 32º, nº 1, já que ali se preserva o núcleo essencial do
direito ao recurso em matéria de facto (cfr. por todos os Acórdãos nºs 322/93 e
172/94, Diário da República, II série, de, respectivamente, 29 de Outubro de
1993 e 19 de Julho de 1994).
E assinalou-se que aquele quadro garantístico se radica, além do
mais, no facto de o Supremo Tribunal de Justiça, não se achar rigidamente
adstrito ao texto da decisão recorrida, pois que esta há-de ser avaliada, nas
suas diversas implicações, em conjugação com as regras da experiência comum.
Nos desenvolvimentos subsequentes, acompanhando de perto o último
dos arestos citados, deixar-se-á referido o essencial da fundamentação que tem
suportado a doutrina estabelecida por este Tribunal.
Vejamos então.
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2 - O Tribunal Constitucional no Acórdão nº 401/91, Diário da
República, I série-A, de 8 de Janeiro de 1992, declarou a inconstitucionalidade,
com força obrigatória geral, da norma do artigo 665º do Código de Processo Penal
de 1929, na interpretação que lhe foi dada pelo assento do Supremo Tribunal de
Justiça de 29 de Junho de 1934, por violação do disposto no artigo 32º, nº 1, da
Constituição.
Este aresto, inscrito numa linha de entendimento jurisprudencial
prevalecente no Tribunal (cfr. por todos os Acórdãos nºs 219/89 e 340/90,
Diário da República, II série, de, respectivamente, 30 de Junho de 1989 e 19
de Março de 1991), ponderou que 'no plano garantístico, e no rigor dos
princípios, tão importante é reconhecer-se ao arguido o direito de recorrer da
solução que tenha sido encontrada para a questão de facto como da solução que
haja sido dada à questão de direito'.
Assim sendo, entendeu-se ali ser forçoso concluir que, 'num sistema
complexo como o que consta do Código de Processo Penal de 1929, em que a prova
produzida perante o tribunal colectivo não é reduzida a escrito (por força do
artigo 466º) e em que as respostas aos quesitos não são fundamentadas (em
virtude do disposto no artigo 469º), então o artigo 665º, entendido com o
alcance do assento em causa, ou seja, o de que as relações só podem `alterar
as decisões dos tribunais colectivos de 1ª instância em face de elementos do
processo que não pudessem ser contrariados pela prova apreciada no julgamento e
que haja determinado as respostas aos quesitos', não representa uma garantia
suficiente para o arguido e consequentemente viola o disposto no nº 1 do artigo
32º da Constituição'.
E, depois de se acrescentar que 'só excepcionalmente e em casos
contados constarão dos processos elementos susceptíveis de levar as relações
a alterar a decisão do colectivo, e, por outro lado, a faculdade de anulação
dessa decisão com base em vícios dos quesitos ou das respostas - ao abrigo do nº
2 do artigo 712º do Código de Processo Civil -, em bem pouco alargará, no
domínio fáctico, o poder cognitivo das relações' logo se esclarecia que a
declaração de inconstitucionalidade ali decretada não poderá ser entendida como
'significando que outra solução que não seja a repetição da prova em audiência
pública perante as relações está em conflito com a Constituição. É que, entre o
sistema em questão, que, na prática, e na grande maioria das situações, reduz a
zero os poderes das relações nos recursos penais em matéria de facto, e o que
ordenasse a repetição da prova em audiência pública perante o tribunal de
recurso, outros há certamente - não competindo a este Tribunal indicá-los - que
não porão em causa as garantias de defesa que o processo criminal deve
assegurar, por força do citado preceito constitucional'.
Este entendimento jurisprudencial havia sido já pré-anunciado, de
algum modo, em diversos estudos doutrinais publicados após o início da vigência
da Constituição de 1976.
Assim, Figueiredo Dias, em conferência que preferiu em 1983,
subordinada ao título 'Para uma reforma global do processo penal português -
Da sua necessidade e de algumas orientações fundamentais', in, Para uma Nova
Justiça Penal, 1983, p. 189, afirmou, nomeadamente:
'Por outro lado, o sistema português de recursos penais é notoriamente, de
uma parte insuficiente - pois que não possui qualquer recurso de facto
minimamente digno de um tal nome -, de outra, excessivo - por isso que submete a
mesma questão de direito a dois graus de recurso. O que vale por dizer que cria
um duplo grau de recurso da mesma questão de direito, enquanto de igual passo,
relativamente à questão de facto, viola sem remissão o princípio (em que, aqui
sim, se tem visto uma espécie de garantia legal dos cidadãos) do duplo grau da
jurisdição de mérito! Digamos, pois, sem eufemismos: o nosso actual sistema de
recursos de duplo grau, que começou por ser liberalmente cabido em princípio a
toda e qualquer decisão judicial, mas onde as relações e o Supremo acabam por
exercer a mesma função e dispôr praticamente das mesmas possibilidades de
cognição, esse sistema é um logro e um rematado absurdo, que não serve os
direitos das pessoas nem os interesses comunitários'.
E o mesmo Autor, na 'Lição magistral sobre processo penal' proferida em 18
de Maio de 1985, numa sessão de estudo sobre 'Reformas dos processos penal e
civil' promovida pela Associação Sindical dos Magistrados Judiciais Portugueses
(conforme o relato constante da revista Tribuna da Justiça, nº 6, Junho de
1985), pronunciou-se assim:
'Aquilo a que se chama recursos, vão-me permitir, é uma macaqueação de
recurso, perfeitamente inconstitucional, não é recurso nenhum, não é a
reapreciação da causa, é um travesti'.
Também Cunha Rodrigues, em exposição que fez sobre 'Recursos', nas Jornadas
de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, 1988, p. 379,
teve ocasião de afirmar:
'E nem vale a pena ignorar, sob pena de fariseísmo, o que hoje se passa
entre nós. Não só o recurso do tribunal de júri é interposto directamente para o
Supremo Tribunal de Justiça como do tribunal colectivo não há, em rigor, recurso
da matéria de facto. O que existem são dois recursos de revista, mais
alargada, é certo relativamente ao Tribunal da Relação'.
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3 - O Código de Processo Penal em vigor, aprovado pelo Decreto-Lei nº
78/87, de 17 de Fevereiro, não podia deixar de reflectir o debate doutrinal
travado à volta deste específico tema, logo revelando na sua exposição
preambular o propósito de se pretender 'emprestar efectividade à garantia
contida num duplo grau de jurisdição autêntico', instituindo-se para tanto 'um
regime aparentado com a ideia do recurso unitário, em princípio idêntico para
a Relação e para o Supremo e abarcando, na medida possível e conveniente, tanto
a questão de direito como a questão de facto'.
Assim, e relativamente aos recursos ordinários, foi previsto um primeiro
quadro normativo, de conteúdo genérico, respeitante à sua tramitação unitária
(artigos 410º a 426º), para depois, se estabelecerem regras próprias do recurso
perante as Relações (artigos 427º a 431º) e perante o Supremo Tribunal de
Justiça (artigos 432º a 436º).
Muito embora a norma cuja legitimidade constitucional cumpre averiguar
seja tão somente a que se contém no artigo 433º do Código de Processo Penal, por
força da remissão que nela se opera e do contexto sistemático que a influencia,
importa reter aqui a formulação de diversos outros preceitos, concretamente dos
seguintes:
Artigo 410º
(Fundamento do recurso)
1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos
poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse
conhecer a decisão recorrida.
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso
a matéria de direito, o recurso, pode ter como fundamentos, desde que o vício
resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da
experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a
cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de
requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.
Artigo 433º
(Poderes de cognição)
Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, nº 2 e 3, o recurso interposto para
o Supremo Tribunal de Justiça, visa exclusivamente o reexame de matéria de
direito.
Artigo 426º
(Reenvio do processo para novo julgamento)
Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artigo
410º, não for possível decidir da causa, o tribunal do recurso determina o
reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto
do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.
Artigo 436º
(Reenvio)
Se o Supremo Tribunal de Justiça decretar o reenvio do processo, o novo
julgamento compete ao tribunal, de categoria e composição idênticas às do
tribunal que proferiu a decisão recorrida, que se encontrar mais próximo.
Desprende-se desta estatuição que o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto
tribunal de recurso, só conhece, em regra de matéria de direito; no âmbito das
questões de facto, os seus poderes de cognição, restringem-se a verificar,
'desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada
com as regras da experiência comum', sobre: (a) suficiência ou insuficiência
para a decisão da matéria de facto provado; (b) a existência de eventual
contradição insanável da fundamentação; (c) a possível comissão de erro notório
na apreciação da prova.
O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça pode também ter como
fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não
deva considerar-se sanada.
Nestas situações, face à impossibilidade de decidir a causa, determina o
reenvio do processo para se proceder a novo julgamento a efectuar por outro
tribunal colectivo.
O recurso penal, interposto do acórdão final do tribunal colectivo para o
Supremo Tribunal de Justiça, apresenta-se assim como um recurso de revista
ampliada, em que este último é chamado a reapreciar a decisão da 1ª instância,
em regra, apenas no tocante a matéria de direito, podendo porém intervir, dentro
de um determinado condicionalismo, quanto à matéria de facto, naqueles casos em
que se desenham fortemente situações indiciadoras de potencial erro judiciário.
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4 - É sabido que o artigo 32º da Constituição não consagra expressamente,
entre as garantias de defesa, o princípio do duplo grau de jurisdição, como
aliás acontece também com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e com a
Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Apenas no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (aprovado
para ratificação, pela Lei nº 29/78, de 12 de Junho) se consagra, em matéria
penal, essa garantia nos termos seguintes: 'qualquer pessoas declarada culpada
de crimes terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a
declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei' (cfr.
artigo 14º, nº 5).
Mas, aquele princípio tem sido afirmado pela doutrina (cfr. Gomes
Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., 1991, p. 769; Gomes Canotilho e Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 164;
Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional - Direitos Fundamentais, 1988,
p. 261) e, como já se observou, constitui jurisprudência firme deste Tribunal,
que uma das garantias de defesa a que se reporta o artigo 32º, nº 1, da
Constituição, é, justamente, o direito ao recurso contra sentenças penais
condenatórias, o que vale por reconhecer, no domínio processual penal, como
princípio, o direito a um duplo grau de jurisdição.
Simplesmente, como tal jurisprudência tem acentuado, 'tratando-se de
matéria de facto, há razões de praticabilidade e outras (decorrentes da
exigência de imediação da prova) que justificam não poder o recurso assumir aí
o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito; basta pensar que
uma identidade de regime, nesse capítulo, levaria, no limite, a ter de
consentir-se sempre a possibilidade de uma repetição integral do julgamento
perante o tribunal colectivo'.
E com base nesta ponderação, no já citado acórdão nº 401/91, que declarou a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo 665º do Código de
Processo Penal de 1929, na interpretação que lhe foi dada pelo Assento do
Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, deixou-se expressamente
consignado que a inconstitucionalização daquele regime não podia ser entendida
'como significando que outra solução que não seja a repetição da prova em
audiência perante as relações está em conflito com a Constituição'. E logo se
acrescentava: 'É que, entre o sistema em questão [...], e o que ordenasse a
repetição da prova em audiência perante o tribunal de recurso, outros há
certamente [...] que não porão em causa as garantias de defesa que o processo
criminal deve assegurar, por força do citado preceito constitucional'.
Ora, o sistema de revista ampliada previsto no Código de 1987, deve
considerar-se como um desses sistemas constitucionalmente compatíveis, pois
que protege o arguido dos perigos de um erro de julgamento (designadamente, de
erro grosseiro na decisão da matéria de facto), e, em concomitância, defende-o
do risco da uma sentença injusta.
Estando em causa o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça dos acórdãos
finais dos tribunais colectivos, há-de desde logo assinalar-se que o tribunal
colectivo (tendo em conta as regras do seu próprio modo de funcionamento e as
que presidem à audiência de julgamento) constitui, ele próprio, uma primeira
garantia no julgamento da matéria de facto.
Acompanhando Cunha Rodrigues, ob. cit., p. 393, pode dizer-se, a respeito
da garantia resultante da estrutura dos tribunais colectivos, que 'assegurada a
efectiva colegialidade do tribunal, garantido o contraditório e obtida uma
tanto quanto possível imediação, o recurso do tribunal colectivo tem
características particularmente nítidas de remédio jurídico. A previsão de um
mecanismo de reapreciação dos factos não pode - não deve - ser senão uma válvula
de segurança'.
Por outro lado, o Supremo Tribunal de Justiça poderá decretar a anulação
da decisão recorrida ou determinar o reenvio do processo para novo julgamento,
sempre que apurar a existência de insuficiência da matéria de facto, contradição
insanável da fundamentação ou erro notório na apreciação da prova.
O quadro de garantias que derivam da conjugação destas duas vertentes de
apreciação do processo criminal oferece aos cidadãos uma protecção
constitucionalmente adequada e defende-os, tanto quanto é legítimo extrair dos
princípios, da prolação de sentenças injustas.
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5 - Mas, poderá talvez argumentar-se contra o que vem de dizer-se, com o
facto de que, tendo o vício (para reconduzir ao reenvio do processo para novo
julgamento) que resultar do 'texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada
com as regras da experiência comum', só muito dificilmente ele poderá ser
despistado pelo Supremo Tribunal de Justiça, pois que, resumindo-se a
fundamentação da sentença, muitas vezes, a uma remissão genérica para os
diferentes meios de prova, aquele Tribunal, ver-se-á, na prática,
impossibilitado de detectar as insuficiências, contradições ou erros que em
matéria de facto ali se possam conter.
A isto opor-se-á que, em conformidade com o disposto no artigo 374º, nº 2,
do Código de Processo Penal, a fundamentação da sentença, para além da
'enumeração dos factos provados e não provados' há-de conter uma exposição,
tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de
direito, que fundamentem a decisão, com indicação das provas que serviram para
formar a convicção do tribunal'.
E assim sendo, a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro
integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal
superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo
lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório.
Não valerá também alegar-se que a recondução do fundamento do recurso a
vício resultante 'do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as
regras da experiência comum' será susceptível, em alguns casos, de impedir que o
Supremo Tribunal de Justiça possa atender a factos constantes de documentos,
nomeadamente documentos autênticos, porventura contendo prova decisiva, em
termos de daí resultar uma decisão contrária à verdade material.
No já citado Acórdão nº 322/93, formulou-se, para ilustrar esta situação, a
hipótese de se encontrar junta aos autos certidão de uma escritura pública, sem
que a sua autenticidade tenha sido posta em causa, da qual conste que o
arguido, no dia a hora que foi cometido o crime por cuja autoria material o
tribunal colectivo o condenou, se encontrava em local diverso daquele em que o
delito foi qualificado e, mesmo, muito distante dele.
Acompanha-se inteiramente a resposta que nesse aresto se opôs àquela
objecção, perfilhando-se os seus termos a seguir reproduzidos:
'Essa é, porém, uma hipótese que, a verificar-se, não teria a consequência
apontada, pois que não impediria o Supremo Tribunal de Justiça de, no
julgamento do recurso, tomar em consideração o facto documentado pela escritura
pública, junta por certidão aos autos.
É que, ela legitimaria um recurso (a interpor ao abrigo do nº 3 do artigo
410º sub iudicio), que se saldaria pela anulação do acórdão do tribunal
colectivo, a fim de que fosse elaborado um outro acórdão pelos mesmos juízes,
do qual constasse aquele facto. Ou seja: anulado o acórdão recorrido, em
virtude de não constar dele aquele facto (ou, sendo o caso, a razão por que o
mesmo se houve por não provado), o tribunal colectivo havia de elaborar um outro
acórdão, de cujo relatório constaria que o arguido negava a autoria material do
crime, defendendo-se com a alegação de que, no dia e hora em que o mesmo fora
perpetrado, ele se encontrava noutro local (quiçá, muito distante do locus
delicti), e de cuja fundamentação constaria se esse facto sim ou não se provou e
a razão por que se decidiu num ou noutro sentido (cf. artigo 374º, nºs 1 e 2, do
Código de Processo Penal).
O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça pode, na verdade, ter por
fundamento ‘a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não
deva considerar-se sanada' (cf. nº 3 do artigo 410º citado). Pois, um desses
requisitos é, justamente, que a sentença contenha `a enumeração dos factos
provados e não provados' e `uma exposição [...] ainda que concisa, dos motivos
[...] que fundamentam essa decisão' [cf. artigo 374º, nº 2, conjugado com o
artigo 379º, alínea a) do Código de Processo Penal]. E, para fazer essa
enumeração, tem o tribunal colectivo que atender - a mais que à acusação ou
pronúncia - às `conclusões contidas na contestação' [cf. alínea d), conjugada
com a alínea c), do nº 1 do artigo 374º citado].
Significa isto que, se o tribunal colectivo, com base na certidão da
escritura, houvesse dado como provado que o arguido, no dia e hora do crime, se
encontrava em local diverso e distante do local em que o mesmo fora
perpetrado, não poderia condená-lo por autoria material do mesmo, sob pena de
`contradição insanável' entre os fundamentos e a decisão (cf. artigo 410º, nº 2,
alínea b)] - vício que resultava do `texto da decisão, por si só'. Se, ao invés,
o tribunal colectivo houvesse esse facto por não provado, resultava do `texto
da decisão recorrida [...], conjugada com as regras da experiência comum', que
tinha havido `erro notório na apreciação da prova' [cf. artigo 410º, nº 2,
alínea c)]: [cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de Novembro de
1991, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano VI (1991), V, páginas 12 e
seguintes]. Em qualquer destes casos, sempre o Supremo Tribunal de Justiça, ao
julgar, tomava em consideração a escritura pública, de que se juntara certidão
aos autos.
Mas se, acaso - como atrás se figurou -, o tribunal colectivo omitisse esse
facto no relatório ou na fundamentação do acórdão, este seria nulo [cf. artigo
374º, nº 1, alínea d), e nº 2, conjugado com o artigo 379º, alínea a), já
citados] - nulidade que o Supremo Tribunal de Justiça havia de decretar, a fim
de que, como se disse, o tribunal colectivo elaborasse outro acórdão, no qual se
relatasse esse aspecto da defesa do arguido e em cuja fundamentação se tomasse
posição sobre ele (dando-o como provado ou como não provado, fundamentando a
decisão tomada) e extraindo, dessa decisão, as necessárias consequências
jurídicas'.
De tudo o exposto concluiu-se no sentido da não inconstitucionalidade das
normas postas em crise pelo recorrente.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar, na parte
impugnada, o acórdão recorrido.
Lisboa, 17 de Outubro de 1995
Antero Alves Monteiro Dinis
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes (Vencido nos termos das declarações de
voto juntas aos Acórdãos nºs 170/94, 172/94 e 504/94)
Maria Fernanda Palma (Vencida nos termos de declaração de voto
junta)
Maria da Assunção Esteves (vencida, nos termos da declaração de
voto nos Acórdãos nºs 170/94 e 172/94)
José Manuel Cardoso da Costa
Proc. nº 247/95
Declaração de voto
Votei vencida o presente acórdão pelas seguintes razões:
1ª. Entendo que a Constituição assegura o direito a um
duplo grau de jurisdição em matéria penal, nos artigos 20º, nº 1, e 32º, nº 1.
Em processo penal, o direito de acesso aos tribunais do
arguido concretiza-se imediatamente no direito de recurso, uma vez que o direito
penal só é passível de aplicação jurisdicional. O arguido é, evidentemente,
titular do direito de (apenas) ser responsabilizado por um tribunal, mas o
acesso aos tribunais, por sua iniciativa, para defesa dos seus direitos e
interesses legítimos (artigo 20º, nº 1), postos em causa pela aplicação de penas
ou medidas de segurança, só é efectivado em sede de recurso.
O direito a um duplo grau de jurisdição constitui
garantia de defesa, ainda que não prevista especificamente (artigo 32º, nº 1).
Só serão admissíveis excepções em caso de acordo entre a acusação e a defesa,
visando a contenção do exercício do poder punitivo estatal e relativamente a
sanções de reduzida gravidade - como sucede no processo sumaríssimo [cf. os
artigos 392º, 396º, nº 3, e 400º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal].
2ª. Entendo, igualmente, que o duplo grau de jurisdição
no processo penal abrange a matéria de facto e a matéria de direito. Um sistema
que excluísse em absoluto o recurso penal em matéria de facto continuaria a
violar as normas dos artigos 20º, nº 1, e 32º, nº 1, da Constituição, visto que
não asseguraria ao arguido, de forma plena, a defesa dos seus direitos,
denegando-lhe uma garantia de defesa.
Desta exigência não resulta, todavia, que o tribunal ad
quem deva reapreciar toda a matéria de facto em obediência ao princípio da
imediação que conforma a audiência de julgamento em primeira instância. Um
sistema de revista alargada, como o contemplado no artigo 410º do Código de
Processo Penal para os casos em que o recurso seja interposto para o Supremo
Tribunal de Justiça ou para o Tribunal de Relação de sentença precedida de
audiência não documentada (artigos 433º e 428º, nº 2, respectivamente, do Código
de Processo Penal), pode satisfazer as prescrições constitucionais, até porque
permite a realização de novo julgamento, quando, em face dos vícios da decisão
recorrida, não for possível decidir a causa (artigos 426º e 436º do Código de
Processo Penal).
3ª. Sendo a revista alargada o regime-regra do nosso
processo penal [uma vez que abrange todos os casos em que o julgamento decorreu
perante tribunal colectivo e de júri e mesmo perante tribunal singular,
ressalvadas as hipóteses em que algum dos sujeitos processuais declarou não
prescindir da documentação da audiência - artigos 432º, alíneas b) e c), e 364º,
nº 1, do Código de Processo Penal], julgo que ela não contempla, plenamente, um
duplo grau de jurisdição, atendendo aos concretos limites que lhe são impostos
no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal:
a) A exigência de que 'o vício resulte do texto da
decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum' é
incompatível com a tutela assegurada no artigo 18º, nº 2, da Constituição, aos
direitos, liberdades e garantias.
Na verdade, o direito de recurso constitui uma garantia
fundamental, incluída no Título I da Parte I, só podendo ser restringido na
medida do estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos. Ora, é manifesto que não existe,
neste caso, nenhum direito ou interesse que decisivamente imponha tal restrição.
O único interesse que vagamente se pode reconhecer é o interesse na economia e
celeridade processuais, que aconselharia a dispensa de o tribunal ad quem
analisar as várias peças que compõem o processo. Não se vê, porém, como pode
este interesse prevalecer sobre o interesse na realização da justiça material,
numa hipótese de reformatio in melius.
Apenas se poderia reconhecer a legitimidade da
'restrição' se ela, afinal, não constituísse restrição nenhuma - se fosse sempre
possível, como no exemplo do documento autêntico não recenseado ou valorado na
decisão recorrida fornecido pelo presente acórdão, fundamentar o recurso em
nulidade insanável, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 410º do Código de
Processo Penal. Contudo, a limitação do vício ao texto da decisão recorrida
constitui uma efectiva restrição. A sentença pode, por exemplo, dar como provado
um facto e indicar as provas que permitiram formar a convicção do tribunal sem
incorrer em nulidade alguma (artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal) e,
todavia, cometer uma injustiça que apenas é documentada pelos autos (e não pelo
seu próprio texto).
Suponha-se, por exemplo, que do processo constam
declarações para memória futura, colhidas durante o inquérito ou a instrução
(artigos 271º e 294º, respectivamente, do Código de Processo Penal). Tais
declarações podem, porventura, 'comprovar', na perspectiva da decisão recorrida
(do seu texto), que o arguido esteve em determinado local mas, simultaneamente,
serem tão incoerentes que não podem aceitar-se como credíveis (a testemunha pode
sustentar que viu o arguido, distintamente, no campo, durante a noite, a uma
grande distância ...). Nesta hipótese, a insuficiência da matéria de facto e o
erro notório na apreciação da prova não são patenteados necessariamente pelo
texto da decisão recorrida e não será admissível proibir o tribunal ad quem de
compulsar os autos e reformar essa decisão (ou determinar o reenvio do
processo).
Assim, julgo que a norma constante do nº 2 do artigo
410º do Código de Processo Penal é materialmente inconstitucional, por violar,
conjugadamente, os artigos 20º, nº 1, 32º, nº 2, e 18º, nº 2, da Constituição,
na medida em que exige que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si
só ou conjugada com as regras de experiência comum.
b) A exigência de contradição da fundamentação insanável
[alínea b) do nº 2 do artigo 410º] ainda é, a meu ver, passível de uma
interpretação segundo a Constituição (artigo 80º, nº 3, da Lei do Tribunal
Constitucional): apenas poderá considerar‑se irrelevante a contradição cuja
sanação seja absolutamente insusceptível de influir no sentido da decisão
recorrida.
c) Diferentemente, a exigência de erro notório na
apreciação da prova restringe inadmissivelmente o direito de recurso, põe em
causa a independência dos tribunais (artigo 206º da Constituição) e viola o
próprio princípio da presunção de inocência do arguido (artigo 32º, nº 2, da
Constituição).
Deve reconhecer-se, é certo, que a notoriedade do erro
se há-de aferir pelo saber, capacidade e experiência de um magistrado judicial
de um tribunal superior - e não de um magistrado em início de carreira ou, muito
menos, de um leigo. Todavia, mesmo nesta perspectiva, é inaceitável que o
tribunal ad quem não possa corrigir aquilo que ele próprio, segundo a sua livre
convicção, considera um erro na apreciação da prova, por não constituir erro
notório. Esta limitação põe em causa a 'independência interna' dos tribunais - a
independência de cada tribunal perante os restantes tribunais.
Por outro lado, tal limitação pressupõe, afinal, que no
âmbito do recurso ordinário a presunção de inocência do arguido é substituída
por uma presunção de legalidade da decisão do tribunal a quo. Ora, a presunção
de inocência do arguido vale até ao preciso momento do trânsito em julgado da
sentença condenatória (artigo 32º, nº 2, da Constituição) e impõe que qualquer
non liquet na questão da prova seja valorado a favor do arguido, apresentando
como corolário, na fase da decisão, o princípio in dubio pro reo.
Por conseguinte, julgo que a norma constante da alínea
c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal é materialmente
inconstitucional, por violar, conjugadamente, os artigos 20º, nº 1, 32º, nº 1,
e 18º, nº 2, e ainda, autonomamente, os artigos 206º e 32º, nº 2, da
Constituição, na medida em que põe em causa a independência dos tribunais e
exige que o erro na apreciação da prova seja notório.
Maria Fernanda Palma