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Processo nº 117/95
2ª secção
Rel. Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A. e outros requereram no Tribunal Cível da Comarca
de Lisboa a suspensão da execução das deliberações tomadas na assembleia geral
extraordinária da B., iniciada em 27 de Dezembro de 1991 e concluída na
madrugada do dia seguinte.
A requerida, uma vez citada - para além de ter pugnado
pelo indeferimento da providência -, impugnou o valor que à mesma havia sido
atribuído.
O juiz fixou ao processo cautelar o valor de
4.000.000.000$00.
Os requerentes agravaram, então, desse despacho, pedindo
a revogação do mesmo, uma vez que - disseram -, ao fixar o valor em tal
montante, ele 'violou frontalmente a norma da alínea c) do nº 3 do artigo 313º
do CPC, e ao desconsiderar a ratio legis ínsita no preâmbulo do Decreto-Lei nº
92/88, de 17 de Março, ignorou o elemento sistemático de interpretação da lei,
violando o nº 1 do artigo 9º do CC'.
A Relação, por acórdão de 25 de Janeiro de 1994, julgou
o agravo improcedente, tendo, para o efeito, ponderado que, 'no que concerne aos
procedimentos cautelares, os critérios para a fixação do valor vêm mencionados
no artigo 313º [do Código de Processo Civil] e, no que respeita à suspensão de
deliberações sociais, o valor é determinado pela importância do dano (nº 3,
alínea c)]'; e ainda que 'são os próprios requerentes que afirmam que houve um
prejuízo sofrido pelos accionistas entre cerca de 3 milhões de contos e mais de
4 milhões de contos', razão por que - concluiu - 'bem fixado foi ao procedimento
o valor de 4 milhões de contos, não se enxergando qualquer violação ao citado
artigo 313º, que é a única norma jurídica aplicável ao caso'.
Os requerentes agravaram de novo, agora para o Supremo
Tribunal de Justiça, tendo dito, entre o mais, que o acórdão recorrido 'não
deveria ter conhecido do agravo da decisão final que fixou o valor da causa',
sendo, por isso, nulo; mas - acrescentaram - se, 'por absurdo, tal decisão não
estivesse ferida de nulidade, ela deveria ser revogada', uma vez que 'o valor
processual da providência cautelar de suspensão de deliberações sociais 'sub
judice' deverá ser apurado de acordo com o artigo 313º, nº 3, alínea c), do CPC,
ou seja, pela 'importância do dano'', ao que 'acresce que, para além do valor
processual, o tribunal deveria ter fixado o valor tributário', por isso que, não
o tendo feito, o acórdão recorrido - a mais de violar os artigos 201º, nº 2,
308º, nº 1, e 313º, nº 3, alínea c), do Código de Processo Civil - violou ainda
os artigos 305º, nº 3, do mesmo Código e o artigo 8º do Código das Custas
Judiciais.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 24 de
Outubro de 1994, negou provimento ao agravo, tendo ponderado a propósito, no que
aqui interessa, o seguinte:
O Senhor Juiz, não tendo outros elementos mais objectivos, atendendo ao dano já
contabilizado pelos requerentes, fixou o valor em 4 milhões de contos.
Na esteira destas considerações, o douto acórdão recorrido manteve aquele valor.
A suspensão de deliberações sociais só pode ser decretada se a deliberação
contrariar a lei geral ou especial da sociedade (pacto) e se da execução dela
resultar dano apreciável.
Quanto ao primeiro requisito, basta um juízo de probabilidade, enquanto, para o
segundo, tem de obter‑se um juízo de certeza ou, pelo menos, uma probabilidade
muito forte de que a execução da deliberação vai causar dano apreciável.
Constitui matéria de facto a prova deste prejuízo que escapa à sindicância deste
Supremo.
As instâncias fixaram-no nos termos do artigo 313, nº 3, do Código de Processo
Civil, única disposição aplicável, em face dos factos provados.
Deste acórdão pediram os requerentes a 'aclaração ou
rectificação', dizendo, a dado passo, que o mesmo 'está ferido de nulidade' e,
por isso, 'deve ser rectificado', uma vez que - disseram - se não pronunciou
sobre a questão, que eles haviam colocado, de que 'o valor tributário era
distinto do valor processual e correspondia ao 'do interesse patrimonial
prosseguido'', que 'seria equivalente à percentagem da participação do capital
social dos agravantes no valor do dano total da sociedade'.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 17 de
Janeiro de 1995, indeferiu tal pretensão, tendo ponderado:
Impugnado o valor da acção, ele foi fixado pelas instâncias nos termos do artigo
313º, nº 3, alínea c), do Código de Processo Civil.
Daí que no Supremo se tivesse dito que o valor processual estava fixado e que
aquele artigo era a 'única disposição legal aplicável'.
E tal em completa correlação com o estatuído no invocado artigo 8º, nº 1, alínea
a), e no artigo 11º, nºs 1 e 2, ambos do Código das Custas Judiciais.
O que significa coincidência entre o valor processual e o valor da causa para
efeitos de custas.
2. É do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de
Outubro de 1994, que vem interposto o presente recurso pelos requerentes ao
abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, com
fundamento em que 'a interpretação conjugada do artigo 313º, nº 3, alínea c), do
Código de Processo Civil e dos artigos 8º, nº 1, alínea a), e 11º, nºs 1 e 2, do
Código das Custas Judiciais', feita pelo acórdão recorrido 'viola manifestamente
o direito de acesso aos tribunais assegurado no artigo 20º da Constituição'.
Dizem os requerentes que suscitaram esta questão de
constitucionalidade no requerimento de aclaração do acórdão recorrido, não o
tendo feito antes, 'porque nunca se vislumbrou anteriormente que o tribunal
viesse a interpretar conjugadamente daquela forma o artigo 8º, nº 1, alínea a),
do Código das Custas Judiciais de modo a perverter a sua própria 'ratio' de
protecção das minorias'.
3. Neste Tribunal, o relator, por entender que não podia
conhecer-se do recurso, lançou nos autos exposição nos termos do artigo 78º-A da
Lei do Tribunal Constitucional e mandou ouvir sobre ela as partes.
Na sua resposta - que instruíram com um parecer do PROF.
JORGE DE MIRANDA -, vieram os recorrentes dizer, em síntese, o que se segue:
(a). O fundamento do recurso foi a 'interpretação conjugada do artigo 313º nº 3
al. c) do CPC e dos artigos 8º nº 1 al. a) e art. 11º, nºs 1 e 2 do CCJ' dada
pelo acórdão do STJ e sua 'aclaração' em manifesta violação do 'direito de
acesso aos tribunais', assegurado no art. 20º da Constituição.
(b). O que é inconstitucional é a interpretação conjugada das citadas
disposições legais num sentido que viola o art. 20º da Constituição.
(c). De salientar que o acórdão do STJ, antes da 'aclaração', não padecia de
qualquer inconstitucionalidade visível e, diga-se mesmo, imaginável para
qualquer jurista bem formado.
Limitou-se a confirmar o valor processual de 4 milhões de contos, e de valor
processual se trata, como bem se reconhece na aclaração.
Esta fixação do valor processual com base no art. 313º nº 3 al. c) do CPC,
embora possa ser discutível, não padece de inconstitucionalidade de
interpretação ou aplicação da lei, nem, por outro lado, aquela norma,
interpretada nestes termos, é inconstitucional.
O que os recorrentes nunca poderiam imaginar é que o Venerando STJ, numa
pretensa aclaração do acórdão, fizesse uma grosseira interpretação conjugada do
art. 313º nº 3 al. c) do CPC com o art. 8º, nº 1, al. a) do CCJ e ainda com uma
disposição que nada tem a ver com o caso 'sub judice', concluindo com um sentido
absurdo face ao teor daquelas normas 'que significa coincidência entre o valor
processual e o valor da causa para efeito de custas'.
(d). E a lei apenas impõe que a questão da inconstitucionalidade seja suscitada
no tribunal 'a quo' de forma a que este, ao decidir, esteja alertado para a
possível inconstitucionalidade em que possa incorrer.
(e). Mas, a inconstitucionalidade que se veio a consumar, não foi a não
aplicação do art. 8º nº 1 al. a) do CCJ, mas uma interpretação e aplicação
conjugada desta disposição com outra do CCJ (art. 11º, nº 1 e 2) e ainda com o
artigo 313º nº 3 al. c) do CPC, dando um sentido a estas normas que não só é
absurdo, como manifestamente inconstitucional, como se deixou demonstrado.
(f). Em suma, a inconstitucionalidade só se veio a verificar no acórdão de
'aclaração' com uma interpretação conjugada das referidas normas legais,
completamente imprevisível, porque absurda e aberrante.
(g). Em consequência, os requerentes, até esse momento, não tinham o ónus de
suscitar a inconstitucionalidade, porque era totalmente imprevisível que o
Venerando STJ fizesse tal interpretação grosseira e contraditória nos seus
próprios termos.
(h). Mesmo assim, os requerentes, com excesso de cautela, alertaram o STJ para
uma possível interpretação/aplicação que levasse a um sentido inconstitucional
por violação do direito de acesso aos tribunais consignado no art. 20º da
Constituição.
Repare-se que, como o STJ não se tinha pronunciado sobre o pedido de fixação do
valor tributário - daí a nulidade do acórdão - ainda estava a tempo de suprir
tal nulidade, não estando precludido o seu poder jurisdicional.
(i). De qualquer forma, sempre se diga que a questão da inconstitucionalidade
com referência ao art. 8º do CCJ, por violação do art. 20º da Constituição, foi
suscitada durante o processo, em fase em que não tinha terminado o poder
jurisdicional do Tribunal, por não ter ainda fixado o valor tributário, o que só
veio a acontecer no acórdão de 'aclaração'.
(j). Mas, sublinha-se que, dada a total imprevisibilidade da referida
interpretação conjugada absurda dada pelo acórdão de 'aclaração' às citadas
normas legais, os requerentes não tinham o ónus de suscitar essa
inconstitucionalidade antes desse acórdão de 'aclaração'.
(l). Nesta conformidade, não pode deixar de concluir‑se que os requerentes
precisaram claramente as normas cuja interpretação conjugada é inconstitucional
(art. 313º, nº 3 al. c) do CPC e art. 8º nº 1 al. a) e 11º nºs 1 e 2 do CCJ) por
violação do direito de acesso aos tribunais consagrado no art. 20º da
Constituição.
(m). Assim como suscitaram a questão da inconstitucionalidade antes de ter
cessado o poder jurisdicional do tribunal 'a quo', apesar de não terem o ónus de
suscitar essa inconstitucionalidade, a qual só se veio a verificar, de forma
imprevisível, numa interpretação aberrante dada pela 'aclaração' do acórdão do
STJ que não decorria desse acórdão para qualquer jurista bem formado.
A recorrida, por sua parte, veio manifestar a sua
concordância com o parecer do relator.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir se deve ou não
conhecer-se do recurso.
II. Fundamentos:
5. Na exposição do relator, escreveu-se que
'pressupostos do presente recurso de constitucionalidade são, entre outros, que
o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da
norma que pretende ver apreciada por este Tribunal e que ela haja sido aplicada
pela decisão recorrida com esse sentido que se tem por incompatível com a Lei
Fundamental'.
E acrescentou-se: 'no presente caso, em direitas contas,
começa por não se saber com rigor qual a norma que se pretende que este Tribunal
aprecie sub specie constitutionis.
'Ora, a norma que se quer submeter à apreciação do
Tribunal tem que ser identificada com precisão e clareza.
Por isso, quando se questiona uma dada interpretação de
um preceito legal ou a norma que se extrai da leitura conjugada de mais que um
texto de lei, tem essa interpretação ou norma que ser enunciada pelo recorrente
(cf. artigo 75º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional), em termos de, se
vier a ser julgada inconstitucional, poder ser enunciada na decisão como o
comando normativo que os operadores do direito não devem aplicar, por sobre ele
incidir um juízo de ilegitimidade constitucional.
'Seja, porém, qual for o exacto recorte da norma que,
extraída da 'interpretação conjugada do artigo 313º, nº 3, alínea c), do Código
de Processo Civil e dos artigos 8º, nº 1, alínea a), e 11º, nºs 1 e 2, do Código
das Custas Judiciais', os recorrentes pretendem que este Tribunal ajuíze à luz
da Constituição, uma coisa é certa: tal como eles reconhecem, não suscitaram a
respectiva inconstitucionalidade durante o processo, ou seja, antes de proferido
o acórdão de que recorrem. E mais: contrariamente ao que afirmam, nem sequer no
pedido de aclaração eles colocaram essa questão, pois que dizer, como disseram,
que 'a não aplicação do artigo 8º do Código das Custas Judiciais, com a redacção
dada pelo Decreto-Lei nº 92/88, equivaleria, na prática, a um grave atentado ao
direito constitucionalmente assegurado de acesso ao direito e aos tribunais', é,
quando muito, imputar inconstitucionalidade a uma decisão judicial, mas não
levantar uma inconstitucionalidade normativa - e só inconstitucionalidades deste
tipo este Tribunal pode conhecer.
'Acresce que, contrariamente ao que os recorrentes
pretendem, não se está perante um caso em que eles devam ser dispensados do ónus
da suscitação atempada da questão de constitucionalidade.
'Na verdade, tendo a Relação sublinhado que o artigo
313º do Código de Processo Civil era a única norma de que havia que lançar mão
para a determinação do valor da providência cautelar que estava em causa - e
isso, depois de os recorrentes terem chamado a atenção para que a fixação do
valor, tal como havia sido feita, para além de afrontar a alínea c) do nº 3
daquele artigo 313º, desconsiderava a ratio legis ínsita no preâmbulo do
Decreto-Lei nº 92/88, de 17 de Março', diploma que, justamente, alterou a alínea
a) do nº 1 do artigo 8º do Código das Custas Judiciais - era previsível que o
Supremo Tribunal de Justiça viesse também a decidir, como decidiu, que aquele
artigo 313º, nº 3, alínea c), era a 'única disposição aplicável em face dos
factos provados'. Ou seja: era previsível que o Supremo, correlacionando aquele
artigo 313º, nº 3, alínea c), com os artigos 8º, nº 1, alínea a), e 11º, nºs 1 e
2, estes do Código das Custas Judiciais, concluísse, como concluiu, que existe
'coincidência entre o valor processual e o valor da causa para efeito de
custas'.
'Sendo esta interpretação previsível, aos recorrentes
cumpria, se acaso a tivessem por desconforme à Constituição, suscitar a sua
inconstitucionalidade nas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça.
'Não o tendo feito, não pode conhecer-se do presente
recurso, por falta de um dos seus pressupostos, que não é caso para dispensar'.
6. Como inclusive deflui dos excertos da resposta dos
recorrentes, que se transcreveram, eles 'precisaram claramente' os preceitos
legais 'cuja interpretação conjugada' é, em seu entender, inconstitucional.
Trata-se do artigo 313º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil e dos
artigos 8º, nº 1, alínea a), e 11º, nºs 1 e 2, do Código das Custas Judiciais. O
que não identificaram foi a norma que se extrai da leitura conjugada desses
preceitos legais, que, em sua opinião, é incompatível com a Constituição - norma
que eles pretendem que este Tribunal aprecie sub specie constitutionis. E era
essa identificação que se impunha que, atempadamente, tivessem feito [cf., por
último, os acórdãos nºs 564/94 e 1/95 (o primeiro por publicar e, o segundo,
publicado no Diário da República, II série, de 26 de Abril de 1995).
Acresce que, tal como se sublinhou na exposição do
relator, os recorrentes não suscitaram a inconstitucionalidade de qualquer norma
jurídica antes de proferido o acórdão recorrido (que é, recorda-se, o acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Outubro de 1994), sendo certo que é
exigível que o tivessem feito, pois que - contrariamente ao que eles sustentam -
não é caso, como se mostrou naquela exposição, de serem dispensados do ónus da
suscitação atempada da questão de constitucionalidade. E mais: como então também
se mostrou, eles nem sequer suscitaram tal questão no pedido de aclaração
daquele acórdão.
Não se verificam, pois, no caso, os pressupostos do
recurso de constitucionalidade interposto.
7. Não obstante este recurso ter sido interposto do
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Outubro de 1994, com fundamento
em que nele se aplicou norma por eles arguida de inconstitucional, dizem agora
os recorrentes que tal acórdão, 'antes da 'aclaração' não padecia de qualquer
inconstitucionalidade visível e, diga-se mesmo, imaginável para qualquer jurista
bem formado', uma vez que - acrescentam - 'a inconstitucionalidade só se veio a
verificar no acórdão de 'aclaração'' (ou seja, no acórdão do mesmo Supremo, de
17 de Janeiro de 1995).
Mas dizer isto é afirmar que o recurso não vem
interposto (como era necessário que sucedesse para que dele se pudesse recorrer
para este Tribunal ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82,
de 15 de Novembro) de uma decisão de outro tribunal que houvesse aplicado norma
cuja inconstitucionalidade o recorrente tivesse suscitado durante o processo.
Tudo, pois, concorre para que não deva conhecer-se do
recurso interposto.
II. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, decide-se não conhecer do recurso e condenar os
recorrentes nas custas, para o que se fixa a taxa de justiça em cinco unidades
de conta.
Lisboa, 7 de Novembro de 1995
Messias Bento
José de Sousa e Brito
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Luís Nunes de Almeida