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Proc. nº 285/94
1ª Secção
Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal
Constitucional:
I
1. A., casado, empregado bancário, residente
em ----------------, propôs acção declarativa de condenação, emergente de
contrato de trabalho, com forma sumária, contra a sua entidade patronal, o banco
B., com sede na Rua -----------, nº ---------, em ----------, no Tribunal de
Trabalho de Aveiro. A acção foi distribuída em 16 de Abril de 1992, pedindo o
autor a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de 1.049.409$00, montante de
subsídios mensais de valorização profissional, correspondentes a 10% do
vencimento base do nível 6 do Acordo Colectivo de Trabalho Vertical para o
Sector Bancário, desde 1 de Janeiro de 1983 e respectivos juros moratórios.
Alegou que este subsídio fora concedido por deliberação do conselho de gestão do
banco réu, então empresa pública, na sequência de reivindicações dos
trabalhadores contra um regime de isenção de horários de trabalho a favor de
certas categorias de quadros técnicos e de chefias, mas tal concessão ficara
suspensa por força de um posterior despacho do Secretário de Estado de Tesouro,
de 19 de Janeiro de 1983.
A acção foi contestada, sustentando o Banco
réu que nada devia ao autor, dada a suspensão do subsídio determinada pela
entidade tutelar, ao abrigo da alínea c) do nº 2 do art. 21º do Decreto-Lei nº
260/76, de 8 de Abril (Bases Gerais das Empresas Públicas). Acresceria a
circunstância de nunca terem chegado a ser comunicadas aos trabalhadores as
deliberações de concessão do subsídio de valorização e de suspensão dessa
concessão, esta última tomada em execução do despacho da entidade tutelar. Por
último, o Banco réu historiou longamente a evolução da política sectorial no
âmbito dos contratos colectivos de trabalho, outorgados após a nacionalização
da banca.
Houve resposta do autor, realizando-se em
seguida o julgamento. Por sentença proferida em 25 de Setembro de 1992, a acção
foi julgada procedente e provada, sendo condenado o réu nos pedidos (a fls. 93 a
96 vº).
Inconformado, dela interpôs recurso o réu,
sustentando nas alegações a ilegalidade de sentença, por violação da Resolução
do Conselho de Ministros nº 163/80 e do Acordo Colectivo de Trabalho do Sector
Bancário de 1983. Com esta peça processual juntou um parecer do Prof. Doutor
António Menezes Cordeiro. O recorrido juntou também um parecer de dois
jurisconsultos, os Drs. Jorge Leite e João Leal Amado, com as suas
contra-alegações.
Já na fase dos vistos, na Relação de Coimbra,
o Banco recorrente veio juntar aos autos pareceres jurídicos subscritos pelo
Prof. Doutor José Manuel Sérvulo Correia e pelos Drs. Bernardo da Gama Xavier e
Luís Brito Correia, ao passo que o réu juntou um parecer do Dr. Rui Chancerelle
de Machete e outro do Prof. Doutor Diogo Freitas do Amaral e Drª. Maria da
Glória Ferreira Pinto Dias Garcia (a fls. 231 a 478 dos autos).
Através de acórdão proferido em 26 de Janeiro
de 1994, a Relação de Coimbra revogou a decisão de primeira instância, tendo
absolvido o réu do pedido. No acórdão em causa, considerou-se que o conselho de
gestão do Banco réu carecia de autorização dos Ministros das Finanças e do
Trabalho para poder atribuir validamente o referido subsídio de valorização aos
seus trabalhadores. De facto, se o art. 49º do Decreto-Lei nº 260/76, na sua
primitiva redacção, implicava que as bases gerais das empresas públicos não
fossem aplicáveis às instituições de crédito nacionalizadas, a verdade é que o
Decreto-Lei nº 353-A/77 viera tornar claro, ao dar nova redacção ao nº 2 do
art. 49º daquele diploma legal, que os princípios gerais do mesmo diploma se
aplicavam às instituições de crédito nacionalizadas. Pode ler-se nesse acórdão:
'Logo por esta nova redacção [do citado nº 2 do art. 49º] se chega à conclusão
de que o R. para atribuir aquele subsídio, teria de ter autorização do Ministro
das Finanças e do Ministro do Trabalho.
E não se mostra que tal autorização ou aprovação hajam sido dadas.
E há também a ter em conta o que refere a Resolução do Conselho de
Ministros nº 163/80, publicada no DR de 9.05.1980 que veio estabelecer que as
empresas públicas têm de obedecer a determinadas diligências para as negociações
colectivas, obrigando-as: a remeter cópias das propostas de celebração ou
revisão de convenção colectiva, acompanhadas da respectiva fundamentação (nº 1);
a apresentação dos elementos necessários para a definição dos parâmetros a que
deve obedecer a negociação colectiva por parte da respectiva empresa pública (nº
2); aqueles parâmetros serão definidos pelo Ministério da tutela em coordenação
com os das Finanças e Plano e do Trabalho devendo ser rigorosamente respeitados
na negociação, por referência a todos os aumentos de encargos, e não apenas aos
aumentos salariais (nº 3). E no nº 7 expressamente se veda aos conselhos de
gerência proceder a aumentos genéricos de remunerações nas empresas públicas
abrangidas por instrumento de regulamentação colectiva, salvo através de novo
instrumento.
Ora, sendo o R. uma empresa pública, estava ele sujeito ao regime
do DL 260/76 e ao regulamentado naquela Resolução. Assim, ele precisava de
autorização ou aprovação do Ministro das Finanças e do Trabalho para aquela
«atribuição», o que não se mostra ter existido.
Por outro lado, estando a decorrer negociações para novo ACT, o R.
estava obrigado à observância do estabelecido na falada Resolução, o que não
fez, antes procedendo a um aumento genérico em 'contravenção' ao nº 7 daquela
Resolução a que ele estava obrigado.
Face ao exposto, e tendo em conta a violação dos falados DL 260/76
e Resolução, não podem considerar-se como válidos e eficazes aqueles subsídios'.
(a fls. 504 vº e 505º)
Notificado deste acórdão, veio o autor
recorrido arguir a sua nulidade, através de requerimento de fls. 510 a 517,
considerando que o Tribunal da Relação havia conhecido ilegalmente de uma
questão nova respeitante à ineficácia da deliberação de 5 de Janeiro de 1983,
que consta do nº 4 da acta nº 313 do Banco recorrente, 'em razão de estar
sujeita a aprovação tutelar (anterior ou posterior) nos termos do DL 260/76
[arts. 13-2-g) e 4, e 49º, na redacção do DL 353-A/77 (29.8)'] Nesse
requerimento, sustentou-se que o entendimento adoptado pelo tribunal quanto às
normas do Decreto-Lei nº 260/76 e à Resolução nº 163/80 do Conselho de Ministros
estava afectado de inconstitucionalidade, por violação do princípio de separação
de poderes (art. 114º da Constituição), considerando-se suscitada a questão de
constitucionalidade em tempo útil, dada a surpresa com que os recorridos tinham
visto uma questão nova ser decidida pelo Tribunal de recurso. Foram suscitadas
ainda outras nulidades e inconstitucionalidades. Por seu turno, o Banco
recorrente pronunciou-se no sentido de serem desatendidas as nulidades
invocadas, considerando não procedente nenhuma das questões de
constitucionalidade.
Através do acórdão de fls. 526 a 531,
proferido em 7 de Abril de 1994, o Tribunal da Relação de Coimbra indeferiu a
arguição de nulidades. Escreveu-se aí:
'Para delimitar as questões postas pelas partes, necessário é atender aos
fundamentos em que elas assentam, e não só nas conclusões dos articulados. Isto
é, além do pedido há que ter em conta a causa de pedir. E para obter o direito
que dizia ter o Autor teria que alegar, além dos factos que alegou, mais ainda
que havia a autorização a que se refere o art. 13, nº 2 g) do DL 260/76, já que
essa autorização era um dos pressupostos do seu direito.
Assim, e para conhecer do direito do Autor, o Tribunal teria
necessariamente que ter em conta aquela falta de autorização, já que, sem ela, o
R. não podia aumentar o salário do Autor. E tendo o Juiz de aplicar as normas
que sejam pertinentes para o caso, evidente se torna que não houve, por esse
facto, a apontada nulidade [...].
[...] [e]stando em causa no recurso o direito do Autor, era
questão a apreciar nesse recurso da existência ou não de falada autorização
[...].
Ao decidir-se como se decidiu, não se criou qualquer matéria nova.
O acórdão sob censura limitou-se a aplicar a lei vigente, sem que para tal fosse
violado o princípio do contraditório, já que essa lei existia no momento em que
foi deliberado atribuir aquele subsídio e no momento em que acção foi proposta e
que deveria ser conhecida das partes' (a fls. 527 vº a 529).
Sobre as questões de constitucionalidade
suscitadas (violação dos limites constitucionais de função jurisdicional;
inconstitucionalidade das normas aplicadas), o Tribunal da Relação de Coimbra
considerou-as improcedentes. Quanto à segunda dessas questões, afirmou que não
se via que o Tribunal 'tivesse aplicado normas que infrinjam o disposto na
Constituição, não se dizendo no requerimento onde elas estavam e em que medida
infringiam a Constituição'.
Relativamente à impugnação pelo reclamante da
invocação que o Tribunal fizera da Resolução do Conselho de Ministros nº 163/80,
considerou-se neste acórdão:
'Não se vê que esse princípio [constante do art. 206º da Constituição] tenha
sido violado. Se se quer referir como violação desse preceito o facto de se ter
usado da falada Resolução, tal não interfere naquela independência e sujeição
apenas à lei. É que a referência a essa Resolução tem de ser tomada tendo em
conta todo o contexto de decisão. E daí resulta que ele mais não é de que um dos
argumentos a que se poderia lançar mão para aplicação da lei - DL 260/76 - no
qual se fundamentou a decisão; para a interpretação do sentido daquela já falada
al. g) do nº 2 do art. 13 do DL 260/76. Não é a Resolução que fundamenta a
decisão; o seu fundamento jurídico é aquele Decreto-Lei.
Carece, pois, de razão o Autor' (a fls. 530 vº e 531)
Abordando, depois, a invocada
inconstitucionalidade da al. g) do nº 2 do art. do art. 13º do Decreto-Lei nº
260/76 (redacção de 1977), afirma-se neste segundo acórdão:
'O art. 207 da CRP estabelece que: «Nos feitos submetidos a julgamento não podem
os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os
princípios nela consignados».
Vem esta argumentação do Autor a propósito da aplicação da já
falada al. g), por a sua aplicação ir violar o princípio da separação de poderes
estabelecido no nº 1 do art. 114 da CRP.
Apesar de, para tal, se fundamentar e citar um parecer do Prof.
Canotilho, parecer esse junto aos autos, não vemos que haja violação daquele
princípio. Na verdade, na decisão deste Tribunal houve a aplicação de uma norma
que estabelece aquela autorização. Não se vê em que é que tal decisão vá contra
o princípio da separação dos poderes, na medida em que se aplica uma norma
emanada do órgão competente.
Nunca, na aplicação dela, o Tribunal se substituiu ao Legislador,
pois se limitou a aplicar uma norma emanada pelo Legislador com competência para
a elaborar. Francamente que não se vê onde esteja essa substituição e até aquela
violação do princípio da separação de poderes.
Mais uma vez se não pode conceder razão ao Autor' ( a fls. 531 e
vº)
Notificado deste segundo acórdão, veio o autor
recorrido interpor recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do nº
1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, 'tomando em consideração os
acórdãos neles [autos] proferidos respectivamente em 26.01.94 (decisão final) e
7.04.94 (indeferimento de nulidades) (...) tendo por âmbito o apuramento da
inconstitucionalidade do entendimento neles dado à norma constante do art.
13-2-g) do DL 260/76 (8.4), na redacção do DL 353-A/77 (29.8), que o recorrente
reputa violador do art. 114º da CRP (questão suscitada a fls. 510 e segs)' (a
fls. 535).
Este recurso foi admitido por despacho de fls.
536.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Após a distribuição, vieram a ser apresentadas
alegações por recorrente e recorrido.
A tese do recorrente encontra-se expressa nas
seguintes conclusões da sua alegação:
'(...)
10. Por outro lado,
a distinção que desde sempre (desde o DL 260/76 (8.4) ) o legislador estabeleceu
entre, por um lado, as instituições bancárias, parabancárias e seguradoras e,
por outro lado, as demais empresas públicas, reflecte-se no regime jurídico de
que umas e outras se encontram dotadas.
11. Todas as empresas públicas estão sujeitas aos mesmos princípios - os
princípios do DL 260/76 - mas não são as mesmas as regras que os concretizam e
desenvolvem.
12. Às empresas públicas em geral aplicam-se as regras e os princípios do DL
260/76, pelo que os seus estatutos os não podem contrariar.
13. Quanto às instituições bancárias, parabancárias e seguradoras aplicam-se
apenas os princípios informadores do DL 260/76.
14. A atribuição do subsídio de valorização profissional foi tomada pelo
Conselho de Gestão do Banco recorrido em decisão eficaz, no exercício das suas
competências de gestão privada, definidas e estabelecidas em normativo especial
para as empresas bancárias: DL 729-F/75, de 22.12 e suas subsequentes
alterações.
15. Por isso, a deliberação que atribui o subsídio de valorização profissional é
válida e eficaz e produziu os seus efeitos na esfera jurídica do recorrente.
(...)
21. O DL 729-F/75 não contém qualquer norma que estabeleça um regime de tutela
correctiva «a priori ou a posteriori» semelhante à prevista no art. 13-2-g) do
DL 260/76 (8.4)
22. Os poderes de tutela não se presumem, antes têm de resultar de preceito
legal expresso.
23. A regra constante do artigo 13-2-g) do DL 260/76 (8.4), para se tornar
exequível, no tocante às instituições de crédito, necessita da mediação
concretizadora do legislador.
24. Caberia, em consequência, ao Governo, através da aprovação dos estatutos de
cada empresa, estabelecer, de entre os actos da lista constante da alínea g) do
nº 2 do artigo 13º do DL 260/76, quais os actos que ficam sujeitos a controlo «a
priori» (sujeitos a autorização) e quais os que ficariam sujeitos a controlo «a
posteriori» (sujeitos a aprovação).
25. Não pode qualquer outra entidade, designadamente o Tribunal de Trabalho,
pela voz do seu juiz, substituir-se ao legislador e fixar de forma casuística
essa lista de actos e nem pode escolher de forma arbitrária o tipo de controlo a
que fica sujeito cada acto de uma determinada empresa.
(...)
33. O acórdão ora recorrido ao apontar para uma nulidade absoluta [da
deliberação do Banco réu de atribuir o subsidio de valorização, por falta de
aprovação tutelar] com recurso a meras regras de interpretação e integração de
lacunas, justifica uma «escolha», que manifestamente ultrapassa os seus poderes
(art. 114 da CRP) e assim representa sempre uma manifesta ultrapassagem dos
limites que o DL 260/76 estabelece (reserva de estatuto).
34. Por outro lado, interpretada, nesse sentido, a Res. CM 163/80 sempre
violaria o art. 13 do DL 260/76, pelo que seria «contra legem» e, por isso,
nesse plano, nula.
35. Interpretada em sentido diverso a norma constante do artigo 13º, nº 2,
alínea g) daquele diploma, terá de haver-se por inconstitucional, por violação
do princípio da separação de poderes (artigo 114º da CRP)
36. Na verdade, a decisão recorrida está atingida por uma dupla
inconstitucionalidade:
- sabendo-se que só existe tutela onde a lei a estabelece de forma expressa,
sendo tal matéria da reserva exclusiva do legislador, não pode o tribunal
escolher casuisticamente os casos em que, à falta de tal prescrição legislativa,
se deveria impor ou não uma tutela do tipo da invocada pelo R. (interpretação do
art. 13.2-g) do DL 260/76 que aplicada na situação concreta dos presentes autos,
viola o princípio da separação dos poderes legislativo e judicial fixado no art.
114º da CRP);
- O despacho do SET que pretendia «suspender» (e não extinguir) o negócio
jurídico laboral sub iudice, ao pretender ter efeito retroactivo viola o
princípio do Estado de direito na sua dimensão concreta de protecção dos
cidadãos e de segurança jurídica.
(...)
58. Bem como tal decisão é inconstitucional, nos termos do artigo 207 da CRP,
pela interpretação que faz dos normativos aplicáveis e em especial do artigo
13-2-g) do DL 260/76, que se afigura violadora do princípio da separação de
poderes constitucionalmente previsto no artigo 114 da CRP'. (a fls. 587 a 588).
Com a sua alegação juntou um parecer da
autoria do Prof. Doutor Gomes Canotilho.
O Banco recorrido, por seu turno,
contra-alegou, sustentando a improcedência das teses do recorrente, por
considerar que o acórdão recorrido aplicara o art. 13º, nº 2, alínea g), e nºs 3
e 4, do Decreto-Lei nº 260/76 tal como esses preceitos estavam formulados e com
a alcance que inequivocamente tinham, não tendo ferido 'o princípio da separação
de poderes, pois a determinação de que os actos respeitantes à fixação de
remunerações, nas empresas públicas, estão sujeitos às mencionadas autorizações
ou aprovações ministeriais, não cabe ao Governo (...) mas decorre pura e
simplesmente da lei' (a fls. 616 dos autos).
Com esta peça processual, juntou três
pareceres, da autoria dos Profs. Doutores Jorge Miranda, José Carlos Vieira de
Andrade e Marcelo Rebelo de Sousa.
3. Foram corridos os vistos legais.
Cumpre, pois, delimitar, o objecto do recurso
e verificar se o Tribunal Constitucional pode conhecer desse objecto.
II
4. De harmonia com o requerimento de
interposição do recurso de fls. 535, o ora recorrente pretende que o Tribunal
Constitucional apure a invocada inconstitucionalidade do entendimento acolhido
nos dois acórdãos da Relação de Coimbra (o acórdão de 26 de Janeiro de 1994 e o
de 7 de Abril de mesmo ano, este último proferido sobre arguições de nulidades
imputadas ao primeiro aresto) sobre a norma do art. 13º, nº 2, alínea g), do
Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei
nº 353-A/77, de 29 de Agosto, entendimento esse que o recorrente reputa ser
violador do art. 114º da Constituição.
Dispõe o preceito em causa (cuja redacção
remonta, aliás, à versão primitiva do diploma, uma vez que as redacções
introduzidas pelos Decretos-Leis nºs 353-A/77, de 29 de Agosto, e 25/79, de 19
de Fevereiro, não alteraram a versão primitiva dessa alínea. Acrescente-se que
não haverá que considerar a actual redacção do art. 13º do Decreto-Lei nº
260/76, uma vez que a mesma resulta de alterações introduzidas por legislação
posterior à vigente no momento relevante para a situação dos autos, ou seja, o
mês de Janeiro de 1983 - cfr. Decreto-Lei nº 29/84, de 20 de Janeiro, e Lei nº
16/90, de 20 de Julho):
'nº 2. Da lista de actos dependentes de autorização ou aprovação do Ministro da
Tutela, nos termos da alínea b) do número anterior, devem necessariamente
constar:
-------------------------------------------------
g) O estatuto do pessoal, em particular no que respeita à fixação de
remunerações.'
Para cabal entendimento deste preceito,
importa referir que o nº 1 do artigo 13º do Decreto-Lei nº 260/76 (na redacção
vigente nas datas de aprovação das duas deliberações do Conselho de Gestão do
Banco recorrido que estão em causa no presente processo) dispunha que a tutela
das empresas públicas, a cargo do Ministro da Tutela, compreende '[o] poder de
autorizar ou aprovar os actos expressamente indicados em lista constante do
estatuto de cada empresa que não sejam os de carácter financeiro contemplados no
nº 2 deste artigo'.
Por outro lado, importa ainda ter em conta -
porque o Banco réu era, nas datas relevantes de Janeiro de 1983, um banco
nacionalizado, que não dispunha de estatutos próprios, mas se regia pelo
diploma que estabelece o estatuto legal das instituições de crédito
nacionalizadas, Decreto-Lei nº 729-F/75, de 22 de Dezembro, com as alterações
introduzidas pelos Decretos-Leis nºs 513/77, de 14 de Dezembro, 2/78, de 9 de
Janeiro, 51/79, de 22 de Março, e 176/79, de 7 de Junho - que o art. 49º, nº 2,
do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril (na redacção introduzida pelo
Decreto-Lei nº 353-A/77, de 29 de Agosto), dispõe que 'as empresas públicas
exceptuadas no número anterior ficam, porém, sujeitas aos princípios fixados no
presente diploma' (o nº 1 deste artigo estabelece que o Banco de Portugal, as
instituições bancárias, parabancárias e seguradoras são as únicas empresas
públicas existentes que fica excluídas legalmente da obrigação de adaptarem os
respectivos estatutos aos princípios consagrados no Decreto-Lei nº 260/76, no
prazo de 120 dias a partir da sua entrada em vigor).
5. Segundo a tese do recorrente, o acórdão ora
sub judicio teria interpretado a norma que constitui objecto do recurso de forma
inconstitucional, violando o art. 114º da Constituição.
A questão de inconstitucionalidade objecto do
recurso foi suscitada nas alegações no recurso de apelação nos seguintes termos.
'1. Por fim, o entendimento dado, no acórdão aqui sub judice e no caso concreto
dos autos, às normas invocadas como fundamento único da decisão (arts. 13-2-g) e
4, e 49 do DL 260/76, na redacção do DL 353-A/77 (29.8), e Res. CM 163/80 (9.5),
aplicando-as às instituições de crédito nacionalizadas, constitui
inconstitucionalidade por violação do princípio de separação de poderes (art.
114 da CRP).
2. Com efeito,
«3. Ainda que em resultado de uma interpretação absurda se defendesse a
aplicabilidade da regra constante do artigo 13, nº 2, al. g) às instituições de
crédito, ela não seria de aplicar no caso em análise.
3.1. Trata-se de uma norma que para se tornar exequível necessita da mediação
concretizadora do legislador caberá ao Governo, através da aprovação dos
estatutos da cada empresa, estabelecer, de entre os actos da lista constante da
al. g) do nº 2 do artigo 13º, quais os que ficam sujeitos a controlo «a priori»
(sujeitos a autorização), e quais os que ficam sujeitos a controlo «a
posteriori» (sujeitos a aprovação).
3.2. Não pode, por conseguinte, qualquer outra entidade, designadamente um
tribunal, substituir-se ao legislador e fixar de forma casuística essa lista de
actos e nem pode escolher de forma arbitrária o tipo de controlo a que fica
sujeito cada acto de uma determinada empresa.
4. Interpretada neste sentido, numa situação concreta, a norma constante do
artigo 13º, nº 2, al. g), terá de haver-se por inconstitucional, por violação do
princípio da separação de poderes (cfr. artigo 114º da CRP)» (Parecer do Prof.
J. J. Gomes Canotilho, pág. 34).
Esta interpretação inconstitucional surge neste acórdão como absolutamente
inovadora e autónoma, sem que as partes tivessem tido qualquer oportunidade
processual para a abordar antes [...].
4. O tribunal substitui-se ao legislador em matéria a este reservada
constitucionalmente pelo que, também por esta razão, o acórdão é nulo (art. 207
da CRP).' (a fls. 515 e 516)
6. Importa, face ao exposto, averiguar se se
verificam no caso sub judicio os pressupostos de admissibilidade do recurso de
constitucionalidade, de tal modo que possa conhecer-se do objecto do recurso.
Ressalta logo da leitura dos autos - como se
referiu atrás - que as questões de inconstitucionalidade só foram suscitadas
pelo recorrente após a prolação do acórdão da Relação de Lisboa, de que se
interpôs o presente recurso.
A Lei do Tribunal Constitucional exige, no seu
art. 70º, nº 1, alínea b), que, nesta modalidade de recursos (prevista na alínea
b) do nº 1 do art. 280º da Constituição) a decisão recorrida tenha aplicado
norma 'cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'.
Ora, uma primeira questão se suscita desde já,
qual seja a de saber se a questão de constitucionalidade foi suscitada durante o
processo, isto é, em momento processualmente idóneo, antes de proferida a
decisão final da causa. De facto, segundo uma jurisprudência firme do Tribunal
Constitucional, não deve, em regra, ter-se por suscitada durante o processo uma
questão de constitucionalidade que só o foi numa tramitação 'post-final', como
sucede com o requerimento de arguição de nulidades da sentença ou acórdão
insusceptíveis de recurso ordinário (por todos, vejam-se os Acórdãos nºs 62/85,
90/85 e 94/88, publicados in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs.
497 e segs., pág. 663 e segs. e 11º vol. págs. 1089 e segs., respectivamente).
Segundo esta jurisprudência, o pressuposto respeitante à suscitação da questão
de inconstitucionalidade durante o processo deve ser tomado não em sentido
formal, mas em sentido funcional, de forma tal que essa invocação deva ser feita
antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a
inconstitucionalidade respeita, devendo o poder jurisdicional considerar-se
esgotado, em principio, com a prolação da decisão, razão por que o pedido de
aclaração dela ou a reclamação da sua nulidade não são meios idóneos e atempados
para suscitar a mesma questão de inconstitucionalidade. A mesma jurisprudência
admite como excepção a esta solução de princípio os casos de o poder
jurisdicional não se esgotar com a sentença ou de alguma situação de todo
excepcional em que o interessado não tenha tido a possibilidade ou oportunidade
processual de levantar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a
decisão.
Certamente por conhecer esta jurisprudência, o
recorrente veio alegar, na arguição de nulidade do acórdão da Relação, que este
último abordara questões novas e aplicara a norma da alínea g) do nº 2 do art.
13º do Decreto-Lei nº 260/76 com uma interpretação absolutamente inovadora e
autónoma, sem que as partes tivessem tido qualquer oportunidade processual para
a abordar antes. Haveria, assim, uma situação de todo excepcional em que o
recorrente fora surpreendido com a aplicação dessa norma com uma certa
interpretação e em que não seria exigível um juízo de prognose sobre tal
aplicação.
Terá razão o recorrente quando invoca a
excepcionalidade dessa situação para justificar a suscitação tardia das questões
de constitucionalidade?
Podem suscitar-se fundadas dúvidas sobre a
procedência da tese do recorrente. De facto, desde a contestação que o Banco réu
invocou a suspensão do subsídio determinada pela entidade governamental de
tutela, sustentando a aplicação do disposto no artigo 21º, nº 2, alínea c), do
Decreto-Lei nº 260/76, diploma que visava igualmente as instituições bancárias
nacionalizadas. Face aos termos da discussão na fase de alegações do recurso de
apelação, poder-se-ia entender que o ora recorrente devia ter suscitado a
questão da inconstitucionalidade da norma que acabou por vir a ser aplicada pela
decisão ora recorrida, tanto mais que num dos pareceres juntos com a alegação do
Banco recorrente se discutia a questão da tutela correctiva do Governo.
É, porém, concebível que não seja necessário
chegar a resolver esta questão de natureza processual.
Na verdade, parece não se verificar um outro
pressuposto de admissibilidade do recurso. Se assim for, torna-se despiciendo
determinar se o recorrente suscitou ainda a questão de constitucionalidade em
momento processualmente idóneo.
7. Importa agora verificar se o Tribunal da
Relação de Coimbra aplicou a norma que constitui objecto do presente recurso com
a interpretação alegadamente inconstitucional que lhe imputa o ora recorrente.
De facto, e com base no passo transcrito das
conclusões do parecer do Prof. Doutor Gomes Canotilho, o recorrente considerou
que a alínea g) do nº 2 do art. 13º do Decreto-Lei nº 260/76 não é
inconstitucional em todas as suas interpretações, mas apenas numa certa
interpretação: pressupondo que tal norma necessitaria da mediação concretizadora
do legislador governamental, através da aprovação por decreto-lei dos estatutos
da empresa pública em questão, não poderia o tribunal substituir-se ao
legislador e fixar de forma casuística uma lista de actos de tutela, nem poderia
escolher de forma arbitrária o tipo de controlo a que ficaria sujeito cada acto
de uma determinada empresa, sob pena de haver violação do art. 114º da
Constituição (o nº 1 deste artigo determina que os órgãos de soberania devem
observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição).
Da leitura do acórdão impugnado pelo
recorrente não se alcança, porém, que a norma em causa haja sido aplicada com o
sentido alegadamente inconstitucional. Pelo contrário, aí se resolveu um
problema complexo de interpretação de várias normas de direito ordinário, sobre
o qual diversos jurisconsultos não lograram pôr-se de acordo.
Por uma lado, o Tribunal da Relação de Coimbra
não tomou qualquer posição sobre o pressuposto de que seria indispensável a
mediação concretizadora do legislador governamental para determinar quais os
actos sujeitos a tutela governamental, no que se refere às instituições
bancárias nacionalizadas (note-se, aliás, que, como se refere no parecer do
Prof. Doutor Gomes Canotilho junto aos autos pelo recorrente, o Decreto-Lei nº
260/76 previa que a criação de empresas públicas se fizesse por decreto
referendado pelo Primeiro-Ministro e por certos membros do Governo, decreto esse
que conteria em anexo os estatutos da empresa pública, sendo duvidoso na
doutrina se a Constituição impõe neste caso a reserva de lei).
Tendo em atenção o acórdão recorrido, daí se
retira que, por interpretação do nº 2 do art. 49º do Decreto-Lei nº 260/76, o
Tribunal da Relação de Coimbra entendeu que se aplicavam ao Banco ora recorrido
os princípios desse diploma, entre os quais o de sujeição à tutela em matéria de
fixação de remunerações do seu pessoal. E, segundo o mesmo acórdão, o subsídio
de valorização teria a natureza jurídica de uma retribuição remuneratória, pelo
que a respectiva atribuição teria de ter sido autorizada ou aprovada pelos
Ministros das Finanças e do Trabalho.
Na sequência de tal entendimento,
considerou-se que o Banco recorrido estava sujeito ao disposto na Resolução do
Conselho de Ministros nº 163/80, não podendo o respectivo Conselho de Gestão
proceder a aumentos genéricos de remunerações nas empresas públicas abrangidas
por instrumento de regulamantação colectiva, salvo através de novo instrumento.
E, no acórdão que recai sobre a arguição de
nulidades e inconstitucionalidades, a Relação de Coimbra precisou que o autor
não tinha alegado que o Banco recorrido dispunha da autorização tutelar referida
no artigo 13º, nº 2, alínea g), do Decreto-Lei nº 260/76, considerando que essa
autorização era um dos pressupostos do direito invocado pelo ora recorrente. Por
outro lado, sustentou que a referência à Resolução do Conselho de Ministros nº
163/80 se configurava como 'um dos argumentos a que se poderia lançar mão para a
aplicação da lei - DL 260/76 - no qual se fundamentou a decisão; para a
interpretação do sentido daquela já falada al. g) do nº 2 do art. 13 do DL
260/76'. E, mais à frente, afirmou-se que na decisão arguida de nula se tinha
aplicado uma norma que estabelece a necessidade de autorização tutelar, norma
legal emanada do órgão competente, pelo que não poderia ocorrer substituição do
juiz ao legislador, indiciadora da violação de norma constitucional.
Daqui resulta, pois, que o Tribunal da Relação
de Coimbra considerou que, por força do disposto no nº 2 do art. 49º do
Decreto-Lei nº 260/76, as instituições de crédito nacionalizadas (caso, na
altura, do Banco réu) - que não dispunham de estatutos próprios nos termos da
regulamentação constante do Decreto-Lei nº 729-F/75 - estavam sujeitas a tutela
do Governo, no que toca à fixação de remunerações a pagar ao pessoal, sendo-lhes
aplicável o princípio legal constante da alínea g) do nº 2 do art. 13º do
primeiro diploma, o qual não tinha de ser particularizado por qualquer estatuto
específico.
É, assim, seguro que a interpretação de normas
de direito ordinário pela Relação de Coimbra - interpretação cuja bondade o
Tribunal Constitucional não tem competência para apreciar - não foi feita com o
sentido inconstitucional que o recorrente lhe imputa. A Relação não se arrogou
qualquer poder de, casuisticamente, suprir uma qualquer omissão estatutária, nem
se substituiu ao legislador, violando eventual reserva de estatuto. Considerou
que, da concatenação das disposições legais referidas, resultava a necessidade
de autorização ou aprovação tutelar, cuja falta acarretava a ineficácia da
decisão.
8. Em recurso interposto para este Tribunal de
uma decisão proferida pela Relação de Coimbra, numa acção intentada por outro
trabalhador bancário contra o Banco ora recorrido, a 2ª Secção de Tribunal
Constitucional absteve-se igualmente de conhecer do objecto desse recurso. Na
exposição do relator confirmada pelo Acórdão nº 243/95, ainda inédito, pode
ler-se:
'Não foi, assim, por apelo às directivas constantes de qualquer Resolução do
Conselho de Ministros (particularmente a Resolução nº 163/80) que o acórdão sub
specie veio a entender que a deliberação em causa, tomada pelo Conselho de
Gestão da Ré, havia de estar sujeita à fiscalização tutelar. O que vale por
dizer que não interpretou a alínea g) do nº 2 do art. 13º do D.L. nº 260/76 por
forma a daí decorrer que seria por uma intervenção resolutiva do Conselho de
Ministros que se iria saber quais os actos dos cabidos órgãos das «instituições
públicas de crédito» que seriam objecto de intervenção tutelar (de fiscalização,
enfim)'.
E daí se retirou a conclusão de que o acórdão
sub judicio não havia interpretado a norma impugnada com o sentido invocadamente
inconstitucional, pelo que não se verificaria o requisito exigido para a
abertura de via de recurso contemplada na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei
do Tribunal Constitucional.
As considerações feitas nesse acórdão são
transponíveis para a presente situação.
III
9. Termos em que decide o Tribunal
Constitucional não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de
justiça em quatro (4) unidades de conta.
Lisboa, 21 de Novembro de 1995
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa