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Proc. nº 404/88
Plenário
Cons. Rel.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - Um grupo de deputados do Partido Comunista Português requereu ao
Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 281º, nº 1, alínea a) da
Constituição da República, com a redacção da Lei Constitucional nº 1/82 [agora
correspondendo ao artigo 281º, nº 2, alínea f)], e nos termos do artigo 51º
da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a declaração de inconstitucionalidade, com
força obrigatória geral, das normas dos artigos 3º, nº 1, 4º, nº 1, 5º, nº 1,
6º, nº 1, 7º, 9º e 10º, nºs. 2 e 3, da Lei nº 97/88, de 17 de Agosto, sobre
afixação e inscrição de mensagens de publicidade e propaganda.
O pedido é assim fundamentado:
' 1 - A Lei nº 97/88, elaborada na sequência de um longo e complexo processo de
normação (cfr. Diário da Assembleia da República, V Legislatura, II Série nºs
10, 19, 25, 90 e I Série, nºs 43, 45 e 111; IV Legislatura, DAR, II Série nºs 15
e 21; I Série, nºs 22, 28, 29 e 30) veio delimitar, com carácter inovador,
aspectos essenciais do regime de exercício da liberdade de expressão.
Por força da aprovação de propostas de alteração do projecto de lei
nº 25/V, o texto votado na especialidade pela Comissão de Assuntos
Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias opera uma distinção entre o
regime aplicável à publicidade e o quadro respeitante à propaganda
(político-partidária, sindical ou de outras organizações representativas de
trabalhadores ou de carácter social).
É este último que através do presente requerimento se questiona.
2- Com efeito, a Lei nº 97/88, de 17 de Agosto, não regulando a
utilização de todos os meios de expressão do pensamento para efeitos de
propaganda (não abrangendo, designadamente, o cinema, a imprensa, as formas de
difusão propiciadas por novas tecnologias nem mesmo, na versão final, os meios
sonoros), disciplina, por um lado, o uso dos meios 'não amovíveis' que impliquem
inscrição ou afixação, e, por outro lado, a aplicação de meios 'amovíveis';
delimita, quanto a uns e outros, um regime geral e um regime especial aplicável
em períodos de campanha eleitoral; configura ilícitos e define o respectivo
regime.
Na vertente em apreço, o diploma opera as seguintes inovações
relevantes para os efeitos do presente requerimento:
a) proíbe em absoluto a utilização dos meios a que se refere em
relação a determinados edifícios e áreas precisamente identificados (artigo 4º,
nº 2 e 6º);
b) prevê a existência, em cada município, de lugares e espaços
públicos destinados à afixação ou inscrição de mensagens de propaganda (artigo
3º, nº 1), os quais, em período eleitoral, deverão ser criados segundo regras
específicas (artigo 7º);
c) clarifica o regime de afixação ou inscrição de mensagens de
propaganda em lugares e espaços que constituam propriedade privada (artigos 3º,
nº 2 e 8º);
d) regula especialmente a utilização de meios 'amovíveis' de
propaganda (artigo 6º);
e) permite sujeitar a licenciamento prévio comum, a título de 'obras
de construção civil', eventuais operações técnicas necessárias à afixação ou
inscrição de formas de propaganda (artigo 5º, nº 1);
f) devolve às assembleias municipais (artigo 11º) o poder de fixar
os critérios a que deve obedecer, em concreto, o exercício das actividades de
propaganda a que a Lei se refere, limitando-se a enunciar (artigo 4º, nº 1) os
objectivos (genéricos) a prosseguir para esse efeito;
g) institui a obrigação de remoção dos meios de propaganda afixados
em lugares públicos (artigos 9º e 6º), admitindo (mas não tipificando) casos em
que há-de ser realizada por 'serviços públicos' que, a expensas da entidade que
for responsável pela acção de propaganda 'ou que lhe tiver dado causa' (artigo
9º, in fine), poderão, a esse título, destruir, rasgar, apagar ou por qualquer
forma inutilizar cartazes, inscrições, pinturas ou objectos amovíveis;
h) prevê que, em caso de contra-ordenação, tanto os respectivos
agentes como 'quem der causa' ao ilícito sejam solidariamente responsáveis pela
reparação dos prejuízos causados a terceiros (artigo 10º, nº 2).
3 - Os Deputados signatários entendem plenamente compatíveis a
defesa da liberdade de expressão e a garantia de livre exercício de outros
direitos e a protecção de outros interesses, designadamente relacionados com o
ambiente ou a preservação do património. Tal compatibilização não é, porém,
operada pela Lei nº 97/88, que infringe importantes normas constitucionais.
Assim:
a) a previsão de lugares públicos reservados, durante períodos não
eleitorais, a afixações, inscrições e colocações (artigo 3º, nº 1), tendo o
efeito de viabilizar a circunscrição a esses lugares da prática de acções
propagandísticas, sem que a lei estabeleça garantias mínimas quanto à dimensão e
localização dos espaços (um contraste com o regime previsto para períodos
eleitorais !), faculta às Câmaras Municipais a possibilidade de inteiro arbítrio
na disponibilização e localização de espaços e descriminação na sua atribuição,
operando uma restrição constitucionalmente ilegítima, face ao disposto no artigo
18º nºs 2 e 3 da Constituição, violando-se assim, o artigo 37º, nº 1 da
Constituição da República;
b) as regras do artigo 7º para afixação e distribuição dos lugares
públicos reservados à propaganda em períodos de campanha eleitoral, ainda que
tenham densidade normativa superior às aplicáveis em épocas eleitorais, afectam
em excesso o conteúdo do direito de expressão, configurando, na proporção
respectiva, violação da Constituição nos termos referidos na parte final da
alínea anterior e, ainda, infracção ao disposto no artigo 116º, nº 3, a);
c) a norma que permite sujeitar a licenciamento prévio operações
técnicas necessárias à propaganda (artigo 5º, nº 1) viabilizando, a pretexto de
autorização de obras, uma forma ínvia de censura prévia (dados os seus efeitos
virtualmente impeditivos da efectivação da propaganda) viola, também, o artigo
37º, nº2 da Constituição;
d) ao dispor como dispõe o artigo 4º, nº 1 e ao não definir a Lei os
conceitos de propaganda e publicidade, nem o conceito de meio amovível, nem o
regime da remoção da propaganda por serviços públicos a expensas dos
responsáveis (nem aliás o regime de identificação destes) - a Lei nº 97/88
devolve aos órgãos deliberativos dos municípios poderes de definição normativa,
materialmente inovatória, das limitações concretas ao exercício da liberdade de
propaganda. A Lei remeteu para regulamentos matérias e aspectos inseridos na
reserva de competência parlamentar. Tais regulamentos não se limitariam, pois, a
conter os pormenores de execução da disciplina legal da propaganda:
concretizariam, regulamentariam e restringiriam preceitos constitucionais
relativos à liberdade de expressão! Não definindo a Lei, como não define, os
critérios das limitações a fixar (mas tão só muito genéricos objectivos), a
credencial legal com que se quis habilitar as Assembleias Municipais contém tais
ambiguidades, omissões e indefinições que os órgãos autárquicos ficariam com o
poder de emitir inovadoramente - em matéria de direitos, liberdades e garantias!
- regulamentos autónomos proscritos em geral pelo artigo 115º da Constituição e
aqui vedados , ademais, por se tratar de domínio indelegável pela a Assembleia
da República às autarquias (artigo 114º, nº 2) e reservado à Lei, nos termos do
artigo 18º, nº 2 e 168º, nº 1 alínea b), pelo que, também por esta via, se
infringe a Constituição e se viabilizam centenas de novas infracções (tantas
quantos os regulamentos que, invocando a presente lei, sejam elaborados!);
e) as normas que instituem a obrigação da remoção e a
responsabilidade solidária por prejuízos, ao envolverem 'quem der causa' à
propaganda, além de incorrerem no mesmo vício identificado na alínea anterior
(uma vez que foi devolvida, inconstitucionalmente, para o regulamento a fixação
de aspectos substanciais do respectivo regime), permitem cominar a associações,
partidos políticos e cidadãos uma sanção não fundada em culpa, estabelecendo, de
facto, uma responsabilidade objectiva ou presunção de autoria que (além de
susceptível de originar fenómenos de provocação política) viola o princípio da
culpa, tal qual se deduz das normas constitucionais sobre política criminal
(designadamente as que protegem a dignidade de pessoa humana e o direito à
integridade), bem como os direitos especiais dos partidos políticos e
organizações de trabalhadores;
f) a norma que pretendeu definir por via remissiva o regime
aplicável aos montantes das coimas, às sanções acessórias e às regras de
processo (artigo 10º, nº 3) é, também, susceptível de infringir a Constituição.
Na verdade, tal norma
- ou institui um esquema inoperativo na parte sancionatória por se
entender que fica dependente de ulterior lei a determinação, por exemplo, de que
possa haver lugar a sanções acessórias nas contra-ordenações em apreço (cfr.
artigo 21º, nºs 1 e 3 do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro);
- ou tem o significado de conceder de imediato a autoridades
administrativas (para efeitos de combate a contra-ordenações de propaganda)
poderes tanto na detenção de cidadãos (artigo 49º do Decreto-Lei nº 433/82, de
27 de Outubro ex vi do artigo 10º, nº 3 da Lei), com ofensa manifesta do direito
à liberdade e à segurança (artigo 27º da Constituição), como de aplicação de
sanções acessórias, designadamente de apreensão de objectos (artigo 21º do
Decreto-Lei citado, ex vi do mesmo artigo 10º, nº 3;
- ou aponta para a ampliação, por via regulamentar, do âmbito
normativo da lei sancionadora, o que é inconstitucional, como atrás se
demonstrou.
4 - Quer tomados isoladamente, nos termos descritos, quer na sua
conjugação, os preceitos em causa da Lei nº 97/88, de 17 de Agosto, põem em
causa, gravemente, o direito de livre expressão do pensamento pela palavra, pela
imagem ou por qualquer outro meio (artigo 37º), e o direito dos partidos
políticos a concorrerem para a organização e a expressão da vontade popular
(artigo 10º), bem como o direito dos cidadãos a participarem na vida pública
(artigo 48º), comprometem o exercício eficaz dos direitos das associações e
partidos políticos (estatuídos no artigo 51º) e permitem a supressão de
importantes meios de expressão das associações sindicais e outras organizações
de trabalhadores (artigos 57º e 54º), pelo que devem ser declarados
inconstitucionais com força obrigatória geral.
O Presidente da Assembleia da República, notificado para se
pronunciar sobre o pedido, nos termos do artigo 54º da Lei do Tribunal
Constitucional, ofereceu o merecimento dos autos.
II - A fundamentação
1. A caracterização jurídico-constitucional da liberdade de
propaganda política
1.1. A Constituição, no artigo 37º, garante a todos 'o direito de
exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por
qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser
informado, sem impedimentos nem discriminações'. Incluindo-se no domínio
especialmente protegido dos direitos, liberdades e garantias enunciados no
título II, este direito apresenta uma dimensão essencial de defesa ou liberdade
negativa: é, desde logo, um direito ao não impedimento de acções, uma
posição
subjectiva fundamental que reclama espaços de decisão livres de interferências,
estaduais ou privadas.
Esta natureza de liberdade que, em primeira linha, caracteriza o
direito e que vai ligada à sua dimensão individual-subjectiva não afasta
definitivamente o papel do Estado na promoção de condições que o tornem
efectivo. O direito não tem uma dimensão única individual-subjectiva. Tem ainda
uma dimensão funcional ou institucional que o liga aos desafios de
legitimidade-legitimação da ordem constitucional‑democrática. A liberdade de
expressão [e a de propaganda política que nela se radica] constitui mesmo um
momento paradigmático de afirmação do duplo carácter dos direitos fundamentais,
de direitos subjectivos e de elementos fundamentantes de ordem objectiva da
comunidade. É que a regulação constitucional da liberdade de expressão não está
só a determinar, delimitar e assegurar o estatuto jurídico do indivíduo. Por ela
adquire realidade e 'toma forma a ordem da Democracia e do Estado de Direito'
(Konrad Hesse, Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland,
16ª edição, Heidelberga, 1988, pág. 119). Elementos constitutivos desta ordem,
como a legitimação do domínio político através de um processo de escolha livre
e aberto, a igual oportunidade das minorias de acesso a esse domínio e a
pluralidade crítica de uma 'opinião pública racionante', recebem em grande
medida o seu conteúdo da normação do direito fundamental de liberdade de
expressão.
A relação entre publicidade (Öffentlichkeit), direitos do homem e
legitimação do domínio político constitui mesmo a estrutura de fundamentação da
ideia de Democracia.
Em 'A Paz Perpétua', Kant propõe a 'fórmula transcendental do
direito público: são injustas todas as acções que se referem ao direito de
outros homens, cujas máximas não se harmonizem com a publicidade'. E, em a
'Resposta à Pergunta: o que é o Iluminismo?', funda a ideia de um 'uso público
da razão' (räsonierende Öffentlichkeit) em que os homens 'expõem publicamente ao
mundo as suas ideias sobre a melhor formulação da legislação, inclusive por meio
de uma ousada crítica da legislação que já existe', fazendo actuar sobre os
princípios do Governo a sua 'vocação para o pensamento livre'. (cf. Immanuel
Kant, A Paz Perpétua e outros Opúsculos, Lisboa, 1990, págs. 16 e segs.).
Schlözer, um constitucionalista contemporâneo de Kant, dizia da publicidade que
ela 'é parte da definição de Constituição' e que 'sem ela não há espírito geral
nem confiança do povo nos seus representantes' (cf. August Ludwig von Schlözer,
Allgeimene Staatsrecht und Staatverfassungslehre, 1793).
Rawls retoma a ideia Kantiana de 'uso público da razão' como
argumento central da sua doutrina filosófica de legitimação política: as linhas
orientadoras da razão pública - afirma - têm a mesma base dos princípios
substantivos de justiça. Elas dão os critérios de 'julgamento, inferência e
evidência' à luz dos quais os cidadãos decidem se os princípios de justiça estão
a ser adequadamente aplicados e identificam as leis e as políticas que melhor os
satisfazem (cf. John Rawls, Political Liberalism, Nova Iorque, 1993, págs. 213 e
segs.). Também a concepção de Popper, de democracia como 'sociedade aberta' ou
a teoria normativa da democracia de Habermas, como reconstrução formal das
condições de uma discussão livremente argumentada, assentam nesta ideia
legitimadora de uma publicidade crítica.
E justamente a propósito do direito de exprimir e divulgar
livremente o pensamento, o Tribunal Constitucional Alemão considerou no acórdão
Lüth, em ordem ao princípio democrático, que a liberdade de opinião política tem
um nível especialmente elevado em face de um menor peso daquela informação que
apenas serve ao interesse particular de quem a manifesta e à curiosidade e
sensação dos cidadãos (cf. BVerfGE 7, 198, 210).
Enquanto 'forma de vida' e 'forma de legitimação do poder' (C. J.
Friedrich), a democracia institucionaliza, pois, as condições do exercício de
uma discussão pública e aberta. O direito de exprimir e divulgar livremente o
pensamento ganha aí um significado objectivo de 'fundamento funcional' da ordem
democrática (G. Canotilho), um significado de norma-valor, que, enquanto valor
de nível constitucional, é susceptível de um efeito de irradiação
(Ausstrahlungswirkung) sobre o sistema jurídico.
1.2. Este efeito de irradiação implica que a norma jusfundamental de
liberdade de expressão limita os conteúdos possíveis do direito ordinário que se
lhe refere. O que não quer dizer, como afirma Alexy, que, por essa via, a
Constituição está a estabelecer todo o conteúdo do mesmo direito ordinário, mas
que 'exclui alguns conteúdos como jusfundamentalmente impossíveis e exige outros
como jusfundamentalmente necessários' (cf. Robert Alexy, Theorie der
Grundrechte, Baden-Baden, 1985, págs. 493-494).
Isso está em relação com a especial densidade das normas sobre
direitos, liberdades e garantias. São normas de uma 'normatividade qualificada',
a definir imediatamente, ao nível da Constituição, a existência e o conteúdo de
posições subjectivas fundamentais, que, assim, são susceptíveis de invocação
directa. Além disso, constituem directrizes para a legislação que só pode
restringir essas posições nos casos de necessidade de asseguramento da sua
concordância prática com outros valores constitucionalmente protegidos (cf.
C.R.P., artigo 18º).
2. A Lei nº 97/88, de 17 de Agosto, regula a afixação e inscrição de
mensagens de publicidade comercial e de propaganda política, mas só às normas
sobre propaganda política são referidas as questões de constitucionalidade.
A delimitação de quais sejam essas normas não é, porém, clara no
pedido. É que aí são, em primeiro lugar, indicadas todas as normas sobre
propaganda que integram a Lei nº 97/88, de 17 de Agosto, com a afirmação de que
elas contêm 'inovações relevantes para os efeitos do presente requerimento' e,
depois, a arguição de inconstitucionalidade é concretamente referida a apenas
algumas dessas normas.
Uma interpretação razoável do que se requer faz que se delimite o
objecto do pedido nestas normas, sem, no entanto, perder de vista a sua
sistemacidade, o que é dizer, as outras normas da mesma lei que a essas dão o
contexto de sentido. E a linha de análise dos problemas orientar-se-á à ordem
das conclusões do pedido. São assim arguidas de inconstitucionais as seguintes
normas:
- do artigo 3º, nº 1 [disponibilização pelas câmaras de
espaços e lugares de propaganda]
- do artigo 4º, nº 1 [critérios de exercício das actividades
de propaganda]
- do artigo 5º, nº 1 [licenciamento cumulativo quando a
afixação ou inscrição de mensagens de propaganda exigir a execução de obras de
construção civil]
- do artigo 6º, nº 1 [remoção dos meios de propaganda]
- do artigo 7º, [afixação de propaganda em campanha
eleitoral]
- do artigo 9º, [custos da remoção dos meios de
propaganda]
- do artigo, 10º, nº2 [reparação dos prejuízos causados a
terceiros]
- do artigo 10º, nº 3 [contra-ordenações: montantes das coimas,
sanções acessórias e regras de processo, com remissão para o Decreto‑Lei nº
433/82, de 27 de Outubro].
3. A norma do artigo 3º, nº1, da Lei nº 97/88, de 17 de Agosto
A norma do artigo 3º, nº 1, dispõe assim:
'A afixação ou inscrição de mensagens de propaganda é garantida, na área de cada
município, nos espaços e lugares públicos necessariamente disponibilizados para
o efeito pelas Câmaras Municipais'.
A questão de constitucionalidade desta norma fundam-na os
recorrentes numa interpretação que lhe atribui 'o efeito de viabilizar a
circunscrição a esses lugares da prática de acções propagandísticas'. Segundo a
formulação do pedido, o poder que por tal norma se atribui às câmaras municipais
abre-se a um 'inteiro arbítrio [destas] na disponibilização e localização de
espaços e discriminação na sua atribuição sem que a lei estabeleça garantias
mínimas'. Isso, acrescenta-se, opera uma 'restrição ilegítima' da liberdade de
propaganda, afrontando, assim, os artigos 37º, nº 1, e 18º, nºs. 2 e 3, da
Constituição.
Mas do enunciado da norma do artigo 3º, nº 1, aqui em apreço, e do
seu contexto de sentido, não pode derivar-se um qualquer sentido de limitação do
exercício da liberdade de propaganda constitucionalmente consagrada. E não pode
porque essa norma está aí tão-só a desenvolver a funcionalidade de imposição de
um dever às câmaras municipais. Este dever de disponibilização de espaços e
lugares públicos para afixação ou inscrição de mensagens de propaganda - que
radica, afinal, na dimensão institucional desta liberdade e na
corresponsabilização das entidades públicas na promoção do seu exercício - não
está, por qualquer modo, a diminuir a extensão objectiva do direito. Se assim
fora, não teria sentido a determinação contida no artigo 3º, nº 2: 'A afixação
ou inscrição de mensagens de propaganda nos lugares ou espaços de propriedade
particular depende do consentimento do respectivo proprietário ou possuidor e
deve respeitar as normas em vigor sobre protecção do património arquitectónico e
do meio urbanístico, ambiental e paisagístico'. E, ainda, não teriam sentido as
determinações do artigo 4º sobre o 'exercício das actividades de propaganda' (nº
1).
Essas determinações - que em ambos os preceitos indubitavelmente se
dirigem aos titulares do direito e ordenam o seu exercício - não teriam, com
efeito, sentido se, à partida, esse mesmo exercício houvesse de confinar-se (e,
assim, de ser pré-determinado) aos espaços e lugares públicos disponibilizados
pelas câmaras municipais.
A norma do artigo 3º, nº 1 não vem perturbar o domínio de protecção
do direito fundamental de liberdade de propaganda. Ao impôr às câmaras
municipais um dever de disponibilização de espaços e lugares públicos para o
exercício desse direito, a mesma norma está tão-só a abrir possibilidades de
comportamento no quadro de uma posição livre dos sujeitos.
4. A norma do artigo 4º, nº 1, da Lei nº 97/88
Sob a epígrafe 'Critérios de licenciamento e de exercício', dispõe
assim:
'1 - Os critérios a estabelecer no licenciamento da publicidade
comercial, assim como o exercício das actividades de propaganda, devem
prosseguir os seguintes objectivos:
a) Não provocar obstrução de perspectivas panorâmicas ou afectar a
estética ou o ambiente dos lugares ou da paisagem;
b) Não prejudicar a beleza ou o enquadramento de monumentos
nacionais, de edifícios de interesse público ou outros susceptíveis de ser
classificados pelas entidades públicas;
c) Não causar prejuízos a terceiros;
d) Não afectar a segurança das pessoas ou das coisas, nomeadamente
na circulação rodoviária ou ferroviária;
e) Não apresentar disposições, formatos ou cores que possam
confundir-se com os da sinalização de tráfego;
f) Não prejudicar a circulação dos peões, designadamente dos
deficientes'.
Destas normas diz-se no pedido que elas não são suficientemente
densas, por isso proporcionando uma abertura à intervenção regulamentar dos
órgãos das autarquias locais incompatível com a reserva de lei em matéria de
direitos fundamentais.
Esta abordagem do problema, porém, leva pressuposto um errado
enfoque da incidência do preceito sobre o facto propaganda. Neste plano da
propaganda, o artigo 4º não se dirige às câmaras municipais nem, pois, a uma sua
qualquer actividade regulamentar. O que a lei aí faz é ordenar por objectivos a
actuação de diferentes entidades: das câmaras municipais, quanto aos critérios
de licenciamento da publicidade [o que não está em questão] e dos sujeitos
privados, quanto ao exercício da propaganda.
Mas, sendo esta a incidência das normas do artigo 4º, perde sentido
o argumento que na formulação do pedido aponta para uma inconstitucional
distribuição das tarefas de legislação e das tarefas de administração. A Lei nº
97/88 está ali a regular ela própria e definitivamente o exercício cívico da
liberdade de propaganda; explicita, afinal, os limites que o projecto de lei nº
25/V [Diário da Assembleia da República, V Legislatura, 2ª Série, nº 10, de 17
de Outubro de 1987] afirmava já na exposição de motivos - os que decorrem do
direito a um ambiente de vida sadio e equilibrado, do direito de propriedade, do
ordenamento do território, da segurança do tráfego, do património cultural,
histórico e artístico - numa interpretação que não prescinde, como não pode
prescindir, 'do conteúdo global da Constituição' (G. Canotilho).
5. A norma do artigo 5º, nº 1, da Lei nº 97/88
Esta norma dispõe assim:
'1 - Se a afixação ou inscrição de formas de publicidade ou de
propaganda exigir a execução de obras de construção civil sujeitas a licença,
tem esta de ser obtida, cumulativamente, nos termos da legislação aplicável'.
2 - ...'.
Uma interpretação que se basta com ser literal da norma faz, desde
logo, concluir pela 'indiferença constitucional' do que nela se determina, na
perspectiva, é claro, da liberdade de propaganda política.
O procedimento de obtenção de licenças de obras de construção civil
implicadas em certos meios de propaganda tem que ver com uma realidade própria
que a norma devolve aos 'termos da legislação aplicável'. Já não é pois o
facto-propaganda que a norma está ali a regular, mas um outro que com ela entra
em relação ocasional, consistente na execução de obras de construção civil.
E, aqui, não pode reconhecer-se o que o pedido refere como
possibilidade de 'uma forma ínvia de censura' pela negação da propaganda à custa
do pretexto de negação do licenciamento de obras. É que o licenciamento não é
um acto administrativo desvinculado da lei - a 'legislação aplicável' -, capaz
de contornar a liberdade de propaganda [cf. o Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de
Novembro, e, designadamente, a enumeração taxativa dos casos de indeferimento
previstos no artigo 63º].
Do que se conclui que a norma do artigo 5º, nº 1, não é contrária à
Constituição.
6. As normas do artigo 7º da Lei nº 97/88
O artigo 7º dispõe assim:
'1 - Nos períodos de campanha eleitoral as câmaras municipais devem
colocar à disposição das forças concorrentes espaços especialmente destinados à
afixação da sua propaganda.
2 - As câmaras municipais devem proceder a uma distribuição
equitativa dos espaços por todo o seu território de forma a que, em cada local
destinado à afixação de propaganda política, cada partido ou força concorrente
disponha de uma área disponível não inferior a 2 m2.
3 - Até 30 dias antes do início de cada campanha eleitoral, as
câmaras municipais devem publicar editais onde constem os locais onde pode ser
afixada propaganda política, os quais não podem ser inferiores a um local por
5000 eleitores ou por freguesia'.
Destas normas diz-se no pedido que elas 'afectam em excesso o
conteúdo do direito de expressão', se bem que tal afirmação não venha sustentada
em qualquer fundamento.
A diferença específica das normas do artigo 7º no sistema da Lei nº
97/88 está apenas na funcionalidade que elas desenvolvem de conformação da
propaganda em tempo de campanha eleitoral. Desde logo, ordenando a mesma
propaganda à exigência qualificada de igualdade e imparcialidade que decorre do
artigo 116º, nº 3, alíneas b) e c) da Constituição. Com efeito, 'o princípio da
igualdade não só no âmbito do direito eleitoral em sentido estrito, mas também
nesta antecâmara da formação da vontade política deve ser entendido em sentido
rigorosamente formal'. Assim se exprimiu o Tribunal Constitucional Alemão
(acórdão nº 8, de 1956, in BVerfGE, 1956, 51).
O dever de os órgãos autárquicos organizarem os espaços de
propaganda surge então, vinculado à directiva constitucional de asseguramento
das condições de igualdade e universalidade constitutivas do sufrágio.
Afora isto, subentram aqui as considerações que sobre a norma do
artigo 3º e a ideia que dela se deriva, de articulação dos deveres funcionais
das câmaras com o exercício livre da propaganda, se deixaram antes expendidas.
Pelo que não são inconstitucionais as normas do artigo 7º da Lei nº 97/88.
7. As normas dos artigos 6º, nº 1, 9º e 10º nº 2, da Lei nº
97/88
Dispõem assim:
Artigo 6º
'1 - Os meios amovíveis de propaganda afixados em lugares públicos
devem respeitar as regras definidas no artigo 4º, sendo a sua remoção da
responsabilidade das entidades que a tiverem instalado ou resultem
identificáveis das mensagens expostas.
2 - ...'.
Artigo 9º
'Os custos da remoção dos meios de publicidade ou propaganda, ainda
quando efectivada por serviços públicos, cabem à entidade responsável pela
afixação que lhe tiver dado causa.'
E a norma do artigo 10º, nº 2, dispõe assim:
'1 - ...
2 - Quem der causa à contra-ordenação e os respectivos agentes são
solidariamente responsáveis pela reparação dos prejuízos causados a terceiros.
3 - ...
4 - ...'.
Das normas transcritas diz-se no pedido que 'ao envolverem 'quem der
causa' à propaganda', não só abrem à intervenção de regulamento aspectos
substanciais do próprio regime como 'violam o princípio da culpa tal como se
deduz das normas constitucionais sobre política criminal'.
O pedido leva pressuposta a ideia de que essas normas tratam uma
responsabilidade criminal (ou contra-ordenacional). Mas o que se deriva de uma
interpretação corrente e normal das suas determinações é que é a
responsabilidade civil que aí está em causa.
A norma do artigo 6º, nº 1, prescreve um dever de prestação de facto
[remoção dos meios amovíveis de propaganda]. A norma do artigo 9º estabelece uma
regra de responsabilidade relativamente aos custos da remoção que tem como
pressuposto, justamente, a violação do dever consagrado no artigo 6º, nº 1: no
caso de inadimplemento do devedor existe uma sub-rogação ope legis que implicará
que aquele que realizou a prestação se venha a ressarcir perante o obrigado. A
norma do artigo 10º, nº 2, refere-se estritamente a um problema de dever de
indemnizar os prejuízos causados a terceiros. Fá-lo em termos semelhantes
àqueles em que o comitente responde pelos actos do comissário (cf. Código Civil,
artigo 500º, nº 1), ou seja, estabelece uma garantia solidária perante o lesado,
relativamente aos danos culposamente causados pelos comissários.
É claro que isso não invalida que tais regras vão associadas à
prática de ilícitos contra-ordenacionais (cf. o artigo 10º, nº 1, da Lei). Mas
nem por isso a responsabilidade civil se confunde com a responsabilidade
contra-ordenacional, como não se confunde com outras formas de responsabilidade
[criminal, disciplinar]. Como afirma Inocêncio Galvão Teles, elas 'giram em
órbitas diversas. Podem existir separadamente umas das outras mas também podem
coexistir' (Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra, 1986, pág. 170).
A lógica do direito civil é diferente da lógica do direito criminal
ou contra-ordenacional. Ela pode excluir a culpa e fundar formas de
responsabilidade assentes numa ideia de distribuição dos riscos inerentes à
interacção social (cf. Código Civil, artigos 499º e segs.).
Não valem, pois, aqui, como parâmetro de avaliação as normas
constitucionais de direito penal, nem, assim, a omnipresença do princípio da
culpa que nesse mesmo domínio se exige à lei.
8. A norma do artigo 10º, nº 3, da Lei nº 97/88
Dispõe assim:
'1 - ...
2 - ...
3 - Ao montante da coima, às sanções acessórias e às regras de
processo aplicam-se as disposições constantes do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de
Outubro'.
É esta norma uma norma remissiva. Ela só seria inconstitucional em
si mesma se mandasse aplicar às contra‑ordenações previstas na Lei nº 97/88 um
regime vedado constitucionalmente ao ilícito de mera ordenação social. Ora, não
é isso que se passa com o Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, agora com a
redacção do Decreto-Lei nº 356/89, de 17 de Outubro, e o Decreto-Lei nº 244/95,
de 14 de Setembro.
No pedido existe quanto à norma transcrita do artigo 10º, nº 3, um
quadro argumentativo em várias linhas:
- A primeira chama a atenção para a redundância da determinação que
nela se contém quanto às sanções acessórias. Essa redundância é demonstrada com
a remissão para os enunciados do artigo 21º, nºs. 1 e 3, do Decreto-Lei nº
433/82, de 27 de Outubro, que, eles mesmos, remetem para a lei a determinação de
sanções acessórias por contra‑ordenação.
Ora, a referência que é feita, na forma do artigo 10º, nº 3, da Lei
às sanções acessórias, podendo ser - ou sendo neste caso - ineficaz, não é, por
isso, inconstitucional. É que a ineficácia da lei não gera, por si,
inconstitucionalidade.
- A segunda linha de argumentação aponta para que as possibilidades
de sentido da norma, em razão ainda da remissão para o Decreto-Lei nº 433/82 e,
designadamente, para o artigo 49º, na parte em que prevê a detenção das pessoas
para identificação levam a que seja posto em causa 'o direito à liberdade e à
segurança' [Este preceito, lembra-se, já nem tem a mesma redacção no Decreto-Lei
nº 244/95, de 14 de Setembro].
Mas aqui não pode falar-se de violação dos direitos à liberdade e
segurança porquanto - reitera-se - a remissão para o Decreto-Lei nº 433/82 é uma
remissão compatível com o ilícito criado na Lei nº 97/88.
Aliás, é absolutamente comum, mesmo no âmbito do direito penal, a
técnica da remissão quanto a sanções. Veja-se a frequência com que essa técnica
é usada nos casos dos crimes de desobediência. É verdade que a remissão já não
vale aí onde se trata de definir o facto típico. Assim o exige o princípio da
legalidade. Mas não é esse o caso. A norma do artigo 10º, nº 3, da Lei nº 97/88
tem em si a previsão das contra-ordenações em causa.
- Com a terceira linha de argumentação, afirma-se no pedido que a
norma do artigo 10º, nº 3, 'aponta para a ampliação, por via regulamentar, do
âmbito normativo da lei sancionadora'. Não se vê em quê.
Já vimos, antes, que é sempre a lei a determinar as sanções
acessórias [cf. Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, e Decreto-Lei nº
356/91, de 17 de Outubro, que lhe dá nova redacção, Decreto-Lei nº 244/95, de 17
de Setembro]. E o sentido corrente da norma em apreço não permite concluir por
qualquer abertura, nesse plano, à intervenção de regulamento!
Do que se conclui que a norma do artigo 10º, nº 3, não é contrária à
Constituição.
9. Os fundamentos que se dão ao controlo de constitucionalidade das
normas em apreço da Lei nº 97/88, em ordem à liberdade fundamental de
propaganda, valem, por consequência, para o confronto das mesmas normas com os
artigos 10º [sufrágio universal e partidos políticos], 48º [participação na vida
pública] e 51º [associações e partidos políticos] da Constituição da República.
III - A decisão
Nestes termos, decide-se não declarar a inconstitucionalidade das
normas dos artigos 3º, nº 1, 4º, nº 1, 5º, nº 1, 6º, nº 1, 7º, 9º e 10º, nºs. 2
e 3, da Lei nº 97/88, de 17 de Agosto.
Lisboa, 15 de Novembro de 1995
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Messias Bento
José de Sousa e Brito
Maria Fernanda Palma
Luís Nunes de Almeida