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Proc.Nº 83/95
Sec. 1ª
Rel. Cons.
Vítor Nunes de
Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. - Por despacho do Secretário Adjunto para os
Transportes e Obras Públicas de Macau foi autorizado o assalariamento, de A.,
para a prestação de serviços no Instituto ------------- de MACAU como oficial
administrativo principal, do 1º escalão. O contrato foi assinado em 8 de Agosto
de 1994, com a duração prevista de um ano.
Solicitado ao Tribunal de Contas o respectivo 'visto',
veio o mesmo a ser inicialmente concedido.
Porém, o Ministério Público junto daquele Tribunal, não
se conformando com tal decisão, interpôs recurso para o Tribunal Colectivo.
Na sequência deste recurso, veio a ser proferido um
acórdão pelo qual se concedeu provimento ao recurso, anulando a decisão
recorrida e recusando o visto à contratação de A..
Na decisão foi recusada a aplicação do artigo único do
Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de Fevereiro, com fundamento na sua
inconstitucionalidade orgânica e material, por violação simultânea do disposto
nos artigos 13º, nº 2, e 47º, nº 2, da Constituição.
2. - Deste acórdão, interpôs o Ministério Público junto
daquele Tribunal recurso obrigatório para este Tribunal Constitucional.
Aqui, apenas o Ministério Público produziu alegações,
nas quais propugnou pelo provimento do presente recurso. No entender do
Procurador-Geral Adjunto, o regime estabelecido no artigo único do Decreto-Lei
nº 5/93/M, de 8 de Fevereiro incide sobre a regulamentação do recrutamento no
exterior do pessoal da função pública de Macau e, não se situando no âmbito da
competência legislativa reservada da Assembleia Legislativa de Macau, contem
matéria sobre a qual o Governador de Macau poderia ter legislado, como o fez, no
exercício da sua competência legislativa própria. Por sua vez, a diferenciação
de regimes decorrente da norma em apreciação mostra-se com fundamento razoável e
suporte material bastante, não incorrendo em violação dos princípios
constitucionais da igualdade e da não discriminação no acesso à função pública.
Nessas alegações, o Procurador-Geral adjunto em
exercício neste Tribunal formulou as seguintes conclusões:
'1º - O regime estabelecido no artigo único do Decreto‑Lei nº 5/93/M, de 8 de
Fevereiro, não inova no que se refere ao regime jurídico aplicável ao pessoal
dos quadros próprios do território de Macau, plasmado no Estatuto dos
Trabalhadores da Administração Pública de Macau (aprovado pelo Decreto‑Lei nº
87/89/M, de 21 de Dezembro, no exercício da autorização legislativa constante da
Lei nº 9/89/M, de 23 de Outubro).
2º - Na verdade, a norma constante daquele artigo único incide sobre um
aspecto específico da regulamentação do recrutamento de pessoal no exterior,
revogando parcialmente o nº 3 do artigo 1º do Decreto‑Lei nº 60/92/M, de 24 de
Agosto, ao estabelecer que a capacidade profissional dos agentes recrutados no
exterior não tem de obedecer aos condicionalismos previstos no artigo 13º, nº 1,
do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
3º - O estabelecimento da disciplina jurídica do recrutamento de pessoal no
exterior, mediante densificação e regulamentação da norma constante do artigo
69º, nº 1, do Estatuto Orgânico de Macau, não se situa no âmbito da competência
legislativa reservada da Assembleia Legislativa de Macau, tendo, aliás, o
Decreto‑Lei nº 60/92/M sido editado pelo Governador de Macau, no exercício da
sua competência legislativa própria.
4º - Assim sendo, o esgotamento e caducidade da autorização legislativa
concedida pela Lei nº 9/89/M não pode implicar a inconstitucionalidade orgânica
da norma constante do referido artigo único.
5º - A diferenciação de regimes decorrente do artigo único do Decreto‑Lei nº
5/93/M, não viola os princípios constitucionais da igualdade e da não
discriminação do acesso à função pública, por na sua base se encontrar um
fundamento razoável, que constitui suporte material bastante do regime
instituído quanto à capacidade profissional dos agentes recrutados no exterior.
6º - Tal diferenciação é consentida pelos artigos 68º a 70º do Estatuto
Orgânico de Macau, que instituem uma diversidade de regimes e uma tendencial
estanquicidade entre os quadros do funcionalismo próprios do território e os
quadros dependentes dos órgãos de soberania e das autarquias da República.
7º - O recrutamento de pessoal no exterior, nos termos do artigo 69º, nº 1,
do Estatuto Orgânico de Macau e do estatuído no Decreto‑Lei nº 60/92/M, tem
carácter excepcional e visa realizar um interesse público da Administração,
suprindo as carências do território em pessoal dotado das qualificações
necessárias ao cargo a prover.
8º - O regime constante do citado artigo único do Decreto‑Lei nº 5/93/M não
implica tratamento discriminatório arbitrário e desrazoável para os funcionários
dos quadros próprios de Macau, prevendo a lei as formas e procedimentos
adequados para voluntariamente poderem reingressar na função pública.
Corridos que forma os vistos legais, cumpre apreciar e
decidir.
II - FUNDAMENTOS :
3. - A questão da conformidade constitucional do artigo
único do Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de Fevereiro, não é nova neste Tribunal,
que sobre ela já se pronunciou a 2ª Secção nos Acórdãos, nºs 75/95, 76/95,
publicados no DR, II série, de 12.06.95 e 14.06.95 respectivamente, e nºs 77/95,
78/95, 79/95 e 147/95, ainda inéditos.
Não se encontram agora aduzidas novas razões que levem a
divergir da solução então adoptada, motivo pelo qual o Tribunal se limitará a
proceder à síntese da fundamentação que conduziu à conclusão da não
inconstitucionalidade daquela norma.
4. - É de assinalar em primeiro lugar que as decisões do
Tribunal de Contas, designadamente do Tribunal de Contas de Macau, relativas ao
'visto' prévio, constituem verdadeiras decisões judiciais para os efeitos do
artigo 280º da Constituição, ou seja, para o efeito de delas se poder interpor
um recurso de constitucionalidade. Por sua vez, o Tribunal Constitucional é
competente para o julgamento dos recursos de constitucionalidade interpostos de
decisões proferidas por tribunais de Macau (cfr. o Acórdão nº 214/90, in DR,
IIS, de 17/9/1990, quanto às decisões de 'visto' do Tribunal de Contas, e
acórdãos nºs 284/89, in DR, IIS, de 12/6/89, e 245/90, in DR, IIS, de 22/1/1991,
sobre a competência do Tribunal Constitucional).
Mais concretamente quanto às decisões do Tribunal de
Contas de Macau que recusem o 'visto' à contratação de alguém para exercer
funções públicas no território, delas cabe recurso que só pode ser interposto
pelo Governador para o Tribunal de Contas da República (cfr. o artigo 10º, nº6,
da Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau - Lei nº 112/91, de 29 de
Maio -, e os artigos 46º, nº 2, e 49º, nº 4, do Decreto-Lei nº 18/92/M, de 2 de
Março).
No entanto, não há razões que levem a poder entender-se
que não será aplicável às decisões do Tribunal de Contas de Macau o mesmo regime
que é aplicável às decisões do Tribunal Superior de Justiça daquele território.
Com efeito, embora este último Tribunal seja o órgão superior da hierarquia dos
tribunais de Macau, acrescenta o artigo 11º da citada Lei de Bases que a
respectiva competência deixa imprejudicada a 'competência [...] do Tribunal
Constitucional em matéria de recursos'. Há portanto que concluir pela
admissibilidade dos recursos, directos para o Tribunal Constitucional, de
decisões do Tribunal de Contas de Macau que recusem a aplicação de uma norma
legal com fundamento na sua inconstitucionalidade.
5. - Nada obstando ao conhecimento do objecto do
recurso, passemos à apreciação dos vícios de inconstitucionalidade que são
apontados à norma em causa, a qual preceitua o seguinte:
Artigo único. As situações constituídas no âmbito dos quadros dependentes dos
órgãos de soberania ou das autarquias da República Portuguesa, nomeadamente de
licença de curta ou longa duração, licença ilimitada, aposentação, reforma ou
reserva não constituem incapacidade para o exercício de funções públicas no
território de Macau em qualquer dos regimes previstos no Estatuto dos
Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei nº
87/89/M, de 21 de Dezembro.
Resulta do disposto no artigo 31º, nº 1, alínea q), do
Estatuto Orgânico de Macau - aprovado pela Lei nº 1/76, de 17 de Fevereiro, com
as alterações introduzidas pela Lei nº 13/90, de 10 de Maio - conjugado com o
nº 3 do mesmo artigo e com o nº 3 do artigo 13º, que, em matéria de 'criação de
novas categorias ou designações funcionais, alteração das tabelas que definem
aquelas categorias e fixação dos vencimentos, salários e outras formas de
remuneração do pessoal dos quadros' [alínea q) citada, com sublinhados agora
introduzidos] o Governador do território só poderá legislar se para o efeito
tiver recebido autorização legislativa da Assembleia Legislativa.
No caso presente, em que o Governador legislou ao abrigo
de competências próprias, cabe perguntar se não terá sido invadida a esfera de
competência legislativa reservada da Assembleia, sendo irrelevante neste
contexto apurar se o Decreto-Lei em causa tem ou não a natureza interpretativa
que expressamente lhe é atribuída no respectivo preâmbulo, reportada ao nº 1 do
artigo 13º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau,
aprovado pelo Decreto-Lei nº 87/89/M, de 21 de Dezembro. De facto, e quanto a
este último ponto, dúvidas não existem de que a interpretação autêntica integra
o próprio exercício da função normativa - o que se extrai do nº 5 do artigo 115º
da Constituição - e de que, em consequência, só terá competência para
interpretar o órgão competente para a aprovação da norma interpretanda (v. entre
repetida jurisprudência, os Acórdãos nºs 32/87 e 805/93 deste Tribunal, in,
respectivamente, DR, IIS, de 7/4/1987 e IS-A, de 4/1/1994). Mais claramente
ainda, assim será a respeito da lei materialmente não interpretativa, à qual o
legislador mais não terá pretendido que conferir eficácia retroactiva.
Do que ficou dito, e tendo em conta a transcrição da
alínea q) a que se procedeu, resulta que a competência legislativa própria do
Governador nas matérias em questão, não abrange o regime jurídico do pessoal dos
quadros do território, o qual, na economia do Estatuto, se não confunde com o
pessoal dos quadros dependentes dos órgãos de soberania ou das autarquias da
República.
A distinção entre estas duas categorias de pessoal,
indiciada na alínea q) do nº 1 do artigo 31º, já transcrita, é acolhida nos
artigos 69º e 70º do Estatuto e tem relevância para a questão em apreço,
precisamente na medida em que o regime aplicável ao pessoal dos quadros
dependentes dos órgãos de soberania ou das autarquias da República constitui
matéria sobre a qual, por não estar abrangida por alguma das especificações
constantes do artigo 31º, o Governador poderá legislar independentemente de
autorização legislativa, nos termos do nº 1 do artigo 13º.
Nesta perspectiva, a referência contida no preâmbulo do
Decreto-Lei nº 5/93/M à intenção de proceder à interpretação autêntica do
Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública não traz consigo implicações
no domínio da determinação do órgão com competência legislativa. O referido
Estatuto, e a norma nele contida sobre capacidade profissional com interesse
para a presente questão, que é a alínea a) do nº 1 do artigo 13º, na parte em
que porventura pudesse entender-se aplicável a pessoal proveniente do exterior
(na terminologia do direito da função pública de Macau), sempre poderá ser
alterado ou interpretado por Decreto-Lei, sem necessidade de prévia autorização
legislativa.
É que, como resulta do artigo 1º, nº 1, deste Estatuto,
o mesmo aplica-se directamente apenas ao pessoal dos quadros próprios dos
serviços de Macau. O pessoal dos quadros dependentes dos órgãos de soberania ou
das autarquias da República, ao qual se refere o artigo 69º do Estatuto Orgânico
de Macau, é aquele a que o Decreto-Lei nº 53/89/M, de 28 de Agosto, editado no
exercício da competência legislativa própria do Governador, chama pessoal
recrutado no exterior, cujo regime de prestação de serviço em Macau regula, com
aplicação supletiva do regime da função pública de Macau, conforme é disposto no
seu artigo 1º, nº 3. O Decreto-Lei nº 5/93/M, em apreciação, filia-se
materialmente naquele Decreto‑Lei nº 53/89/M, mais tarde revogado e substituído
pelo Decreto-Lei nº 60/92/M, de 24 de Agosto.
A norma do artigo único do Decreto-Lei nº 5/93/M, cuja
aplicação foi recusada com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, contém,
portanto, disciplina referente ao recrutamento no exterior de pessoal para
exercer funções públicas em Macau. Mais do que interpretar, veio esta norma
restringir o âmbito de aplicação supletiva do Estatuto dos Trabalhadores da
Administração Pública de Macau. Mas nessa medida, reportando-se apenas ao
pessoal recrutado no exterior, não interferiu na área de aplicação específica
daquele mesmo Estatuto, coberta pela reserva de competência legislativa da
Assembleia Legislativa de Macau.
Tal diploma legislativo não é, por isso, organicamente
inconstitucional.
6. - Quanto aos vícios de inconstitucionalidade material
apontados à norma em questão, há que concluir que também aqui a razão está com o
Ministério Público.
É certo que o artigo único do Decreto-Lei nº 5/93/M abre
uma distinção de tratamento que aparentemente, por referência ao território de
origem, será contrária ao princípio da igualdade no acesso à função pública
(artigo 47º, nº 2, da Constituição), o qual por sua vez constitui uma aplicação
específica do princípio geral da igualdade, consagrado no artigo 13º da
Constituição.
A verdade porém é que tal distinção, desde logo
reportável em última instância ao Estatuto Orgânico de Macau como ficou visto,
não representa uma solução arbitrária ou discriminatória.
Filia-se a norma em questão no regime jurídico do
pessoal recrutado no exterior, contido no Decreto-Lei nº 60/92/M, de 24 de
Agosto, e o seu alcance deve ser, em consequência, apreciado nesse contexto. O
recrutamento de pessoal no exterior tem carácter excepcional, faz-se para
períodos curtos de tempo, é rodeado de cautelas procedimentais acrescidas e,
sobretudo, visa suprir carências do próprio território, ou seja, faz-se no
interesse do próprio território (cfr. artigos 3º, 4º e 7º do Decreto-Lei nº
60/92/M, de 24 de Agosto). O fundamento da distinção de tratamento não tem assim
por base o território de origem. Funda-se, antes, no facto de os funcionários
recrutados no exterior possuírem qualificações ou habilitações que permitem a
satisfação de interesses públicos que, de outro modo, ficariam por satisfazer,
ou pelo menos seriam mais imperfeitamente satisfeitas, por não haver no
território pessoal quem tivesse as qualificações necessárias para o efeito
pretendido.
Não ocorre, assim, qualquer violação do artigo 13º da
Constituição da República Portuguesa.
III - DECISÃO :
Nestes termos e de acordo com o exposto, decide-se
conceder provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido
quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade, a fim de ser reformulado
em conformidade com o aqui decidido sobre essa questão.
Lisboa. 1995.09.28
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Luís Nunes de Almeida