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Proc. 589/92
1ª Secção
Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., residente na Avenida --------------, nº
-----------, em -----------, recorreu, em 15 de Julho de 1991, para a Secção de
Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo do despacho do
Secretário de Estado do Tesouro, publicado no exercício de competência delegada
do Ministro das Finanças, que não homologou a decisão proferida pela Comissão
Arbitral, constituída nos termos do Decreto-Lei nº 51/86, de 14 de Março, para
avaliação dos valores da indemnização devida pela nacionalização de empresa
denominada B.. Sustentou que as referidas comissões arbitrais eram autênticos
tribunais, com competência decisória, não podendo o Governo alterar tais
decisões, sob pena de intolerável usurpação de poder, sendo certo que outra
leitura da lei conduzia à inconstitucionalidade do nº 6 do art. 16º da Lei nº
80/77, de 26 de Outubro, na versão introduzida pelo Decreto-Lei nº 343/80, de 2
de Setembro. A título subsidiário, invocou o vício de desvio de poder que
afectaria o acto recorrido.
A entidade recorrida apresentou resposta, a que
se seguiram alegações do recorrente e do recorrido.
No seu visto, o representante do Ministério
Público preconizou que o recurso devia ter provimento, louvando-se na
jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal Administrativo.
Por acórdão de 3 de Junho de 1992, tirado com um
voto de vencido, foi concedido provimento ao recurso contencioso, sendo
declarado nulo o acto impugnado pela verificação do vício de usurpação de poder.
Para tal, o Supremo Tribunal Administrativo julgou inconstitucionais as normas
do nº 6 do art. 16º da Lei nº 80/77 e do art. 24º do Decreto-Lei nº 51/86, por
violação dos arts. 205º e 206º da Constituição, recusando-se a aplicar esses
dispositivos legais.
Pode ler-se nesta decisão:
'... compete constitucionalmente aos tribunais dirimir conflitos entre
particulares e entre eles e entidades públicas, e consistindo a atribuição das
indemnizações em causa, por acto administrativo, a resolução de um conflito
daquele tipo, atribuir a sua solução à Administração por acto autoritário
constitui violação dos arts. 205º e 206º da Constituição da República. Claro que
nem sempre se torna fácil a distinção entre actividade jurisdicional e
actividade administrativa - à míngua de um critério legalmente estabelecido que
limite tais conceitos - dificuldade de que, aliás, se faz eco o acórdão desta
Secção de 10-10-79, in Ap. D. Rep. pág. 2288, citado pelo aresto em cuja cola
vimos prosseguindo.
Na esteira da jurisprudência supracitada, subjacente ao acto
jurisdicional encontra-se sempre um objecto de realização do direito ou da
justiça, relevando aqui o interesse público directamente conexionado com a
composição de um dado conflito de interesses em concreto [...].
Voltando à hipótese dos autos, e face às sobreditas
considerações, torna-se claro que a pessoa colectiva Estado, aqui representada
pelo membro do Governo com competência legal definida para tornar definitivo o
cômputo indemnizatório controvertido, é parte directamente interessada no
confronto de interesses que se gerou entre o expropriado e a Administração. A
entidade decidente, não sendo alheia ao conflito, não pode ser considerada
imparcial para a correcta composição dos interesses em jogo, composição essa
que, por isso, terá que constituir apanágio exclusivo de órgãos dotados da
necessária independência e equidistância, ou sejam, os tribunais - conf. art.
208º da C.R. Portuguesa [...].
Destarte, ao atribuir a um órgão administrativo o poder de, em
decisão final, resolver, por via autoritária e unilateral, um conflito de
interesses em que a própria Administração é parte directamente interessada -
assim lhe deferindo poderes próprios da função jurisdicional - manifesta se
torna a violação dos mencionados preceitos constitucionais [art. 205º, nº 2, e
206º] por parte do nº 6 do art. 16º da Lei nº 80/77 de 26/10, na redacção que
lhe foi dada pelo art. único do Dec.Lei nº 343/80 de 2/9 e, bem assim, por parte
do art. 24º do Dec-Lei nº 51/86 de 14/3 de idênticos conteúdo e redacção.
E como são materialmente inconstitucionais tais normas, devem os
Tribunais recusar a respectiva aplicação - conf. art. 207º da C.R.P.' (a fls. 59
a 62).
Notificado deste acórdão, veio o representante do
Ministério Público interpor dele recurso para o Tribunal Constitucional, nos
termos do art. 70º, nº 1, alínea a), de Lei do Tribunal Constitucional. Idêntico
recurso interpôs a autoridade recorrida.
Ambos os recursos foram admitidos por despacho de
fls. 73.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
O Ministério Público, nas suas alegações,
concluiu do seguinte modo:
'1º Não são inconstitucionais, pois não violam qualquer princípio ou preceito
constitucional, designadamente os artigos 205º e 206º da Lei Fundamental, as
normas constantes do nº 6 do artigo 16º da Lei nº 80/77, de 26 de Outubro, na
redacção dada pelo Decreto-Lei nº 343/80, de 2 de Setembro, e do artigo 2º do
Decreto-Lei nº 51/86, de 14 de Março, na medida em que estabelecem que as
decisões das comissões arbitrais terão validade após homologação, por despacho
do Ministro das Finanças e do Plano.
2º Deve, em consequência conceder-se provimento ao recurso, determinando-se a
reforma da decisão recorrida, na parte impugnada'. (a fls. 93 dos autos).
O Secretário do Estado de Orçamento concluiu, nas
suas alegações, que as normas desaplicadas não estavam 'feridas de
inconstitucionalidade porque a fixação da indemnização inclui-se ainda no
exercício da função administrativa do Estado, que realiza, por esta forma, um
dos interesses públicos ligados ao acto de nacionalização - garantir a paz
social pela salvaguarda do direito fundamental do cidadão à imediata atribuição
de um sucedâneo, quando despojado, legitimamente e no interesse público, do seu
direito de propriedade' (a fls. 97.98 dos autos).
O recorrido, por seu turno, propugnou pela
improcedência dos recursos, sustentando a bondade da tese do acórdão recorrido.
3. Foram corridos os vistos legais.
Por não haver motivos que a tal obstem, importa
conhecer do objecto do recurso.
II
4. Sucede que, num recurso inteiramente idêntico
ao presente, em que igualmente haviam sido desaplicadas pelo Supremo Tribunal
Administrativo as normas desaplicadas no presente acórdão recorrido, o plenário
do Tribunal Constitucional - cuja intervenção fora determinada nos termos do
art. 79º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional - veio a julgar procedentes
os recursos oportunamente interpostos, revogando o acórdão recorrido, por julgar
que as normas desaplicadas não estavam afectadas de inconstitucionalidade. O
acórdão em causa - a que foi atribuído o nº 226/95 - acha-se publicado no Diário
da República, II Série, nº 172, de 27 Julho de 1995.
Importa, por isso, dar aqui por reproduzida a
tese que aí fez vencimento - não obstante o ora relator ter ficado vencido no
mesmo acórdão - remetendo integralmente para a fundamentação dele constante, de
forma a conceder provimento aos presentes recursos.
III
5. Nestes termos e pelos fundamentos indicados,
decide o Tribunal Constitucional conceder provimento a ambos os recursos,
revogando-se o acórdão recorrido, o qual deverá ser reformulado em conformidade
com o julgamento em matéria de constitucionalidade.
Lisboa, 28 de Novembro de 1995
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Luís Nunes de Almeida