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Processo n.º 881/12
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade foi proferida a fls. 1042 e seguintes a Decisão Sumária n.º 597/2012 de não conhecimento do recurso de constitucionalidade com os seguintes fundamentos:
«3. O recurso foi interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (doravante “LTC”). Este preceito prevê a impugnação, em fiscalização concreta, de decisões judiciais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. O conhecimento destes recursos, pese embora a eventual admissão dos mesmos junto do tribunal a quo, exige uma operação prévia de determinação do cumprimento ou observância dos respetivos pressupostos. O Tribunal Constitucional apenas pode conhecer o respetivo mérito, caso esses pressupostos se mostrem devidamente preenchidos, uma vez que não se encontra vinculado à admissão decidida, num primeiro momento, pelo tribunal recorrido (cfr. artigo 76.º, n.º 3 da LTC).
No caso dos autos é manifesta a não verificação de alguns dos requisitos de conhecimento do recurso, pelo que se profere decisão sumária ex vi do artigo 78.º-A, n.º 1 da LTC. Vejamos os fundamentos desta decisão:
Com efeito, no seu requerimento de recurso, os recorrentes suscitam três problemas de constitucionalidade distintos: (i) a interpretação dos artigos 129.º e 356.º, n.º 7, do Código de Processo Penal (doravante “CPP”), “no sentido de que se pode inquirir uma testemunha, nos termos do artigo 129.º do CPP, sobre os factos de que tomou conhecimento através de declarações recebidas, como OPC, quando a leitura dessas declarações não foi permitida, nos termos do artigo 356.º”; (ii) a interpretação dos artigos 412.º, n.os 3 e 4, e 428.º, ambos do CPP, “no sentido de não haver lugar à reapreciação da matéria de facto impugnada pelo Recorrente”; (iii) a interpretação do artigo 417.º, n.º 3, do CPP, “no sentido de que quando o recorrente que impugna a matéria de facto e dá cumprimento ao artigo 412.º, n.º 3, alíneas a), b) e n.º 4 do CPP, mas não identifica em relação a cada ponto concreto da sua discordância as razões dessa discordância e as provas que impunham decisão diversa, tal não deve determinar o convite ao aperfeiçoamento mas a rejeição do recurso quanto à matéria de facto”.
Todavia, nenhuma destas questões pode agora ser objeto de conhecimento, uma vez que não corresponde, qualquer uma delas, ao sentido com que efetivamente os preceitos legais subjacentes foram concretizados e aplicados pela decisão recorrida. Atenta a função instrumental do recurso de constitucionalidade, uma eventual pronúncia sobre o problema sub specie constitutionis exige que a mesma possa vir a ter um reflexo efetivo na decisão da causa, o que não sucede quando não se verifique coincidência entre as normas questionadas e o sentido com que as mesmas foram aplicadas, enquanto fundamento normativo da decisão recorrida.
3.1. Relativamente à primeira questão, resulta claramente da decisão recorrida que não houve sequer convocação e aplicação do artigo 356.º, n.º 7, do CPP. A Relação entendeu expressa e claramente que a leitura das declarações em causa seria permitida no caso vertente, nos seguintes termos: “pese embora não esteja legalmente provado nos autos o falecimento da testemunha A., está mais do que comprovada a impossibilidade de a fazer comparecer em audiência de discussão e julgamento, fundamento este que justifica, igualmente, o depoimento indireto previsto no artigo 129.º do C.P.P. disposição legal, ao abrigo da qual, o tribunal inquiriu as testemunhas B. e C., ambos agentes da Polícia Judiciária que intervieram na investigação dos autos, tendo estes últimos, contactado em sede inquérito com o ofendido que lhes relatou os factos de que teria sido vítima por parte dos arguidos os quais reconheceu nos termos legais, como tudo do inquérito consta (…). Daí que, embora com outro fundamento que não o óbito da testemunha, mas com base na impossibilidade de esta ser encontrada e de a fazer comparecer a julgamento, que não tem de ser absoluta (…), encontrava-se verificado o condicionalismo para que o Tribunal ‘a quo’ se socorresse, como efetivamente sucedeu do disposto no art. 129º, nº 1, do CPP e inquirir as testemunhas agentes da Política Judiciária sobre os factos que ouviram da boca do ofendido/testemunha A., valorando o tribunal, posteriormente, tal prova de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127º, do CPP“ (fls. 991).
Resulta deste trecho decisório que, quanto a este aspeto, o Tribunal recorrido cotejou e aplicou os artigos 129.º e 356.º, n.º 4, do CPP, não relevando, por conseguinte, o n.º 7 desse mesmo preceito, uma vez que não conclui que se tratasse de situação referente a declarações cuja leitura não fosse permitida.
É certo que o dissídio dos recorrentes visa precisamente atingir este entendimento quanto à admissibilidade dessa mesma leitura – mas isso apenas se repercute no plano da interpretação e aplicação do regime infraconstitucional, o qual, como se sabe, é da competência exclusiva do tribunal recorrido.
3.2. Em segundo lugar, os recorrentes questionam a interpretação dos artigos 412.º, n.os 3 e 4, e 428.º, do CPP, «no sentido de não haver lugar à reapreciação da matéria de facto impugnada pelo Recorrente».
O tribunal recorrido entendeu, em concreto, que não conheceria de qualquer aspeto relativo à impugnação da matéria de facto, justificando tal decisão com o não cumprimento dos requisitos previstos no artigo 412.º, n.º 3, do CPP. Na verdade, pode ler-se a fls. 987: “quer nas suas conclusões do recurso quer ao longo da respetiva motivação os recorrentes limitam-se a impugnar a matéria de facto de uma forma genérica, não especificando em relação a cada ponto de facto que consideram incorretamente julgado, as provas que impunham decisão diversa da recorrida, por referência aos respetivos suportes técnicos de gravação, no que respeita à prova testemunhal, uma vez que houve lugar a gravação. Isto é, os recorrentes não identificam em relação a cada ponto concreto da sua discordância as razões da sua discordância e as provas que impõem uma decisão diversa”.
Ou seja, os preceitos legais indicados pelos recorrentes foram aplicados, no sentido de não haver lugar à reapreciação da matéria de facto sempre que não se cumpra o ónus legal de impugnação especificada através da indicação pontual, um por um, dos concretos pontos factos que se reputam como incorretamente provados e de alusão expressa às concretas provas que impelem a uma solução diversa da recorrida e às provas que devem ser renovadas, com a nota de que, se tiver existido gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) se fazem por referência ao consignado na ata, nos termos do artigo 412.º, n.º 4, do CPP. Não existiu, por conseguinte, uma interpretação e aplicação dos artigos 412.º, n.º 3, e 428.º, do CPP “no sentido de [pura e simplesmente] não haver lugar à reapreciação da matéria de facto impugnada pelo Recorrente”, sem qualquer concretização normativa adicional. Tratou-se, diferentemente, de afirmar uma conclusão decisória assente num circunstancialismo específico, traduzido no juízo de não cumprimento, em absoluto, dos ónus previstos no artigo 412.º, n.os 3, alíneas a), b) e c), e 4, do CPP. Esta concretização normativa da omissão processual é que constituiu, precisamente, o fundamento da decisão de não se proceder, em concreto, à reapreciação da matéria de facto. Deste modo, o que os recorrentes impugnam neste segundo problema suscitado, traduz-se numa concretização normativa meramente parcial dos preceitos aplicáveis, que omite, verdadeiramente, a ratio decidendi da decisão recorrida, e sem a qual uma eventual pronúncia sobre o objeto do recurso de constitucionalidade seria, também nesta parte, inevitavelmente supérflua.
3.3. Por fim, os recorrentes suscitam a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 417.º, n.º 3, do CPP, “no sentido de que quando o recorrente que impugna a matéria de facto e dá cumprimento ao artigo 412.º, n.º 3, alíneas a), b) e n.º 4 do CPP, mas não identifica em relação a cada ponto concreto da sua discordância as razões dessa discordância e as provas que impunham decisão diversa, tal não deve determinar o convite ao aperfeiçoamento mas a rejeição do recurso quanto à matéria de facto”.
A este propósito, pode ler-se no acórdão da Relação de 24 de outubro de 2012 (fls. 988): “nestes casos, como o dos presentes autos, em que os recorrentes não dão cumprimento ao ónus de impugnação especificada, nem nas conclusões, nem na motivação de recurso, não há que endereçar-lhes convite para aperfeiçoamento, pois tal equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso”. Resulta deste modo evidente – e o mesmo já decorria também do que acabou de se referir no ponto anterior - que a problemática mencionada pelos recorrentes nesta terceira questão é alheia à valoração que foi efetivamente feita pela decisão recorrida. Remetendo-se para o que se disse já supra em 3.2., não é exato que o artigo 417.º, n.º 3, do citado Código tenha sido aplicado com o sentido implicitamente indicado pelos recorrentes, ou seja, o de que, tendo sido dado cumprimento ao ónus de especificação estabelecido pelo artigo 412.º, n.º 3, alíneas a), b) e c), do CPP, não deve haver lugar ao despacho-convite de aperfeiçoamento nele previsto. Vimos já que, de modo claro e indiscutível, o Tribunal recorrido entendeu precisamente o inverso, isto é, que não foi dado cumprimento desse mesmo ónus. O que conduz, também quanto a esta questão, à conclusão inelutável de que não existe coincidência entre o objeto do recurso, tal como vem delimitado pelos recorrentes, e a ratio decidendi da pronúncia recorrida.»
2. Notificados desta decisão, os recorrentes deduziram reclamação para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, adiante referida como “LTC”), invocando o seguinte:
«Salvo o devido respeito, que é muito, e melhor opinião, no ponto 3.1 da douta decisão sumária, não se aprecia a questão concretamente suscitada, porquanto aquilo que está em causa não é a leitura de declarações, nos termos do art.º 356.º, n.º 4, do CPP, que não ocorreu, face à oposição dos sujeitos processuais interessados, mas sim, a questão de saber se, não tendo essa leitura sido permitida, podia o Tribunal o quo ter admitido o depoimento da testemunha B., nos termos do art.º 129.º, do CPP, porquanto, o mesmo, expressamente, confirmou que o conhecimento dos factos que relatou na audiência (com exceção das diligências de localização do Recorrente Emanuel, buscas e apreensões), resultou da tomada de declarações ao ofendido.
Na verdade, não tendo sido, como não foi, permitida a leitura de tais declarações, nos termos do art.º 356.º, n.º 4, do CPP, a inquirição desta testemunha sobre esses factos não é permitida, conforme está bem plasmado no n.º 7, deste preceito legal.
Em suma, não foi permitida a leitura das declarações dessa testemunha e, ainda assim, o Tribunal ouviu-a e valorou e seu depoimento, quando a mesma expressou apenas ter conhecimento dos factos que relatou com base nas declarações cuja leitura não foi permitida e por isso não pode ser admitida.
Assim, mantemos o nosso entendimento de que a interpretação feita dos artigos 129.º e 356.º, n.º 7, do CPP, além de ilegal, é inconstitucional, por violação do art.º 32.º, nos. 1 e 5, da CRP, na medida em que, ao permitir-se e valorar-se tal depoimento, nos termos do art.º 129.º, do CPP, quando, atento o seu conteúdo, no podia a testemunha ser inquirida, nos termos do art.º 356.º, n.º 7, do CPP, fez-se entrar pela janela, o que não podia entrar pela porta.
NESTES TERMOS
e nos mais e melhores de direito a suprir doutamente, deve o presente recurso ser admitido, por forma a que seja apreciada a questão de constitucionalidade supra mencionada, seguindo-se os ulteriores termos até final.»
3. O Procurador-Geral-Adjunto do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação (fls. 1064 e seguintes).
Cumpre decidir.
II. Fundamentação
4. A decisão de não conhecimento do recurso fundou-se no facto de as três questões de constitucionalidade identificadas no requerimento de recurso não traduzirem aquela que foi a ratio decidendi da pronúncia recorrida. Os recorrentes, ora reclamantes, vêm agora manifestar a sua discordância quanto ao assim decidido. Fazem-no, no entanto, apenas com referência à primeira dessas questões de constitucionalidade, que foi objeto de análise no n.º 3.1. da Decisão Sumária n.º 597/2012. O que significa, portanto, que o objeto da presente reclamação se cinge à apreciação da decisão de não conhecimento do recurso no que toca ao problema relativo à interpretação dos artigos 129.º e 356.º, n.º 7, do Código de Processo Penal (doravante “CPP”), «no sentido de que se pode inquirir uma testemunha, nos termos do artigo 129.º do CPP, sobre os factos de que tomou conhecimento através de declarações recebidas, como OPC, quando a leitura dessas declarações não foi permitida, nos termos do artigo 356.º».
Quanto a tal questão, os reclamantes insistem no entendimento de que a leitura dessas declarações não terá sido permitida, invocando para tanto o disposto no artigo 356.º, n.º 4, do CPP, daí pretendendo fazer decorrer a impossibilidade da sua valoração com fundamento no n.º 7 do mesmo preceito. Não aduzem, no entanto, qualquer fundamento em ordem a afastar a fundamentação expendida, a este propósito, na decisão reclamada, limitando-se a persistir num dissídio quanto à interpretação correta do direito infraconstitucional, nos mesmos termos que vinham já do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade.
5. Como então se disse – e agora se repete – a interpretação do direito infraconstitucional é matéria da exclusiva competência do tribunal da causa. Ao Tribunal Constitucional compete apenas apreciar se tal interpretação – independentemente do problema de saber se corresponderá, ou não, ao melhor direito – viola as regras e princípios fundamentais. E, como também então se frisou, o tribunal a quo não entendeu que a leitura das declarações não foi permitida, como resulta claramente do texto da decisão, nomeadamente do seguinte trecho, cuja transcrição ora se renova: “pese embora não esteja legalmente provado nos autos o falecimento da testemunha A., está mais do que comprovada a impossibilidade de a fazer comparecer em audiência de discussão e julgamento, fundamento este que justifica, igualmente, o depoimento indireto previsto no artigo 129.º do C.P.P. disposição legal, ao abrigo da qual, o tribunal inquiriu as testemunhas B. e C., ambos agentes da Polícia Judiciária que intervieram na investigação dos autos, tendo estes últimos, contactado em sede inquérito com o ofendido que lhes relatou os factos de que teria sido vítima por parte dos arguidos os quais reconheceu nos termos legais, como tudo do inquérito consta (…). Daí que, embora com outro fundamento que não o óbito da testemunha, mas com base na impossibilidade de esta ser encontrada e de a fazer comparecer a julgamento, que não tem de ser absoluta (…), encontrava-se verificado o condicionalismo para que o Tribunal ‘a quo’ se socorresse, como efetivamente sucedeu do disposto no art. 129º, nº 1, do CPP e inquirir as testemunhas agentes da Política Judiciária sobre os factos que ouviram da boca do ofendido/testemunha A., valorando o tribunal, posteriormente, tal prova de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127º, do CPP“ (fls. 991).
O Tribunal não considerou aplicável, por conseguinte, o artigo 356.º, n.º 4, do CPP no sentido de impedir, em concreto, a leitura das declarações – não obstante não estar em causa falecimento da testemunha e sim a impossibilidade de a fazer comparecer em julgamento – não tendo sequer, por conseguinte, cotejado o preceito contido no n.º 7 do mesmo corpo legal, o qual os recorrentes integraram na questão de constitucionalidade tal como a construíram no seu requerimento de recurso. Sendo este, na realidade, o cerne do dissídio, o mesmo não reveste a natureza de questão de constitucionalidade e sim de interpretação do direito infraconstitucional. O que os recorrentes poderiam questionar era se uma tal interpretação feriria os parâmetros constitucionais que invocam – e não forçar uma interpretação que, embora correspondendo à que têm por correta, não traduz a valoração normativa que foi efetivamente aplicada pela decisão recorrida
Pelo que resta concluir pela improcedência da reclamação apresentada.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar os reclamantes nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 9 de janeiro de 2013. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro