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Processo: n.º 632/95.
1ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Nunes de Almeida.
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I — Relatório
1 — O Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Loures deduziu acusação
contra A. pela prática, em autoria material e concurso real, de dois crimes de
ofensas corporais simples, previstos e punidos pelo artigo 142.º, n.º 1, do
Código Penal, e de dois crimes de ameaças, previstos e punidos pelo artigo
155.º, n.º 2, do mesmo Código, com base em factos apurados na instrução, tendo
requerido o seu julgamento em processo comum e por tribunal singular.
Os participantes, B. e C., vieram constituir-se assistentes e deduziram acusação
particular, tendo formulado um pedido de indemnização civil.
Distribuído o processo, o juiz proferiu o despacho a que se refere o artigo
311.º do Código de Processo Penal (CPP) e, depois de ter admitido a constituição
dos assistentes, veio a julgar-se incompetente para proceder ao julgamento, por
entender que aos crimes em causa poderia ser aplicada, em termos abstractos e no
seu conjunto, pena superior a oito anos de prisão, pelo que entendeu ser o
julgamento da competência do Tribunal Colectivo.
Remetido o processo ao Juiz de Círculo, veio este a exarar um despacho pelo qual
decidiu não designar data para o julgamento, por entender que a competência
cabia ao Tribunal Singular, recusando aplicação ao preceituado no artigo 15.º do
CPP, com fundamento na inconstitucionalidade da interpretação que levaria à
atribuição da competência ao Tribunal Colectivo.
2 — É deste despacho que vem interposto o presente recurso pelo representante do
Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Loures, reportado à questão de
constitucionalidade do artigo 15.º do CPP e interposto nos termos dos artigos
70.º, n.º 1, alínea a), 71.º, n.º 1, e 79.º da Lei do Tribunal Constitucional.
Neste Tribunal, apenas o Procurador-Geral Adjunto apresentou alegações, tendo
formulado as seguintes conclusões:
1.º A norma do artigo 15.º do Código de Processo Penal, na parte em que
estabelece que para efeitos do disposto no artigo 14.º, na determinação da pena
abstractamente aplicável são levadas em conta todas as circunstâncias que possam
elevar o máximo legal da pena a aplicar no processo, e na interpretação de que
entre estas circunstâncias se encontra o concurso de infracções, respeito o
sentido da autorização legislativa contida no n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º
43/86, de 26 de Setembro;
2.º A mesma norma, na mesma interpretação, não enferma de
inconstitucionalidade, designadamente por violação do princípio do «juiz
natural» e restantes garantias de defesa consagradas no artigo 32.º da
Constituição;
3.º Deve, em conformidade, conceder-se provimento ao recurso, determinando-se
a reforma da decisão recorrida, na parte impugnada.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II — Fundamentos
3 — Importa, antes de mais, delimitar o âmbito do recurso. Efectivamente, o
despacho recorrido é expresso na recusa de aplicação do artigo 15.º do CPP, mas
apesar da extensão do despacho em causa, não se define claramente qual o
entendimento de tal norma que se julga inconstitucional, embora o mesmo possa
descobrir-se ao longo de tal despacho, e bem assim, quais as normas que em tal
despacho se consideram violadas e fundamentam o julgamento de
inconstitucionalidade.
O artigo 15.º, em questão, sob a epígrafe «Determinação da pena aplicável»,
estabelece que «para o efeito do disposto nos artigos 13.º e 14.º, na
determinação da pena abstractamente aplicável são levadas em conta todas as
circunstâncias que possam elevar o máximo legal da pena a aplicar no processo».
Segundo o despacho recorrido, entre tais circunstâncias não poderiam nunca ser
considerados os vários crimes que integram a pluralidade subjacente ao concurso
de infracções.
Assim, será a norma do artigo 15.º inconstitucional na medida em que seja
interpretado como considerando que o concurso de infracções é uma das
circunstâncias que podem elevar o máximo legal da pena a aplicar no processo. E
sê-lo-ia por tal interpretação violar e reserva de competência da Assembleia da
República [artigo 168.º, n.º 1, alínea c), da Constituição], na medida em que o
Código não respeitara o sentido da autorização legislativa, violando também o
princípio do juiz natural, ínsito no artigo 32.º, n.º 7, da Constituição da
República Portuguesa (adiante, CRP).
É, pois, este o âmbito do recurso que importe tratar e resolver.
4 — Em causa está apenas o artigo 15.º do CPP, mas o certo é que esta disposição
reporta-se aos artigos 13.º e 14.º do mesmo diploma, pelo que importa referir o
teor destas disposições legais.
Artigo 13.º
(Competência do tribunal do júri)
1 — Compete ao tribunal do júri julgar o processos que, tendo a intervenção do
júri sido requerida pelo Ministério Público, pelo assistente ou pelo arguido,
respeitarem a crimes previstos no Título II e no Capítulo I do Título V, do
Livro II do Código Penal.
2 — Compete ainda ao tribunal do júri julgar os processos que, não devendo ser
julgados pelo tribunal singular, e tendo a intervenção do júri sido requerida
pelo Ministério Público, pelo assistente ou pelo arguido, respeitarem a crimes
cuja pena máxima abstractamente aplicável, for superior a oito anos de prisão.
3 — O requerimento do Ministério Público e o do assistente devem ter lugar no
prazo para a dedução da acusação e o do arguido no prazo de 5 dias a contar da
notificação da acusação, ou da pronúncia se a ela houver lugar.
4 — O requerimento de intervenção do júri é irretratável.
Pelo seu lado, o artigo 14.º estabelece que:
Artigo 14.º
(Competência do tribunal colectivo)
1 — Compete ao tribunal colectivo, em matéria penal, julgar os processos que,
não devendo ser julgados pelo tribunal do júri, respeitarem a crimes previstos
no Título II e no Capítulo I do Título V, do Livro II do Código Penal.
2 — Compete ainda ao tribunal colectivo julgar os processos que, não devendo ser
julgados pelo tribunal singular, respeitarem a crimes:
a) Dolosos, ou agravados pelo resultado, quando for elemento do
tipo a morte de uma pessoa; ou
b) Cuja pena máxima, abstractamente aplicável, for superior a
três anos de prisão.
É também importante para o entendimento do artigo 15.º que os transcreva o teor
do artigo 16.º do CPP e que é o seguinte:
Artigo 16.º
(Competência do tribunal singular)
1 — Compete ao tribunal singular, em matéria penal, julgar os processos que por
lei não couberem na competência dos tribunais de outra espécie.
2 — Compete também ao tribunal singular, em matéria penal, julgar os processos
que respeitarem a crimes:
a) Previstos no Capítulo II do Título V, do Livro II do Código
Penal;
b) De emissão de cheques sem provisão, ou
c) Cuja pena máxima, abstractamente aplicável, for igual ou
inferior a três anos de prisão.
3 — Compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos
no artigo 14.º, n.º 2, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o
Ministério Público, na acusação ou em requerimento, quando for superveniente o
conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena
de prisão superior a três anos ou medida de segurança de internamento por mais
do que esse tempo.
4 — No caso previsto, no número anterior, o tribunal não pode aplicar pena de
prisão ou medida de internamento superior a três anos.
O conjunto destas normas delimita o âmbito de competência dos tribunais do júri,
colectivo e do tribunal singular, em execução do estabelecido nos n.os 56, 57 e
58 do n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro, que concedeu
autorização legislativa ao Governo para aprovar um novo Código de Processo Penal
e revogar a legislação vigente sobre tal matéria.
Estabelecem os pontos acima mencionados o seguinte:
56) Restrição do julgamento com o júri aos processos em que a acusação ou a
defesa irretractavelmente o requeiram e em que estejam em causa crimes contra a
paz e a humanidade e contra a segurança do Estado e àqueles cuja pena máxima,
abstractamente aplicável, for superior a oito anos de prisão;
57) Distribuição da competência entre o tribunal colectivo e o singular em
função da gravidade do crime imputado, atribuindo-se àquele o conhecimento de
crimes graves, como são os crimes contra a paz e a humanidade e contra o Estado,
os crimes dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo
incriminador a morte, e, como regra, aqueles cuja pena máxima, abstractamente
aplicável, for superior a três anos de prisão;
58) Possibilidade de fazer julgar pelo tribunal singular certos tipos legais de
crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável for superior a três anos de
prisão mas em que a apreensão da prova não ofereça grande dificuldade, bem como
os crimes que não sejam, na óptica do Ministério Público, passíveis em concreto
de pena de prisão ou medida de segurança de duração superior a três anos.
5 — A competência dos tribunais criminais é objecto de normas constitucionais.
Assim, o artigo 210.º da Constituição, relativo ao júri, estabelece no seu n.º 1
que «o júri é composto pelos juízes do tribunal colectivo e por jurados, e
intervém no julgamento dos crimes graves, com excepção dos de terrorismo, quando
a acusação ou a defesa o requeiram».
Por outro lado, o n.º 4 do artigo 211.º estabelece que «Sem prejuízo do disposto
quanto aos tribunais militares, é proibida a existência de tribunais com
competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes». Pelo
seu lado, no artigo 213.º, determina-se que «os tribunais judiciais são os
tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as
áreas não atribuídas a outras ordens judiciais». Os n.os 2 e 3 desta última
disposição reportam-se à especialização dos tribunais, prevendo a existência de
tribunais de competência específica e de tribunais especializados para o
julgamento de matérias determinadas, na primeira instância, podendo funcionar as
relações e Supremo Tribunal de Justiça em secções especializadas.
Por último, uma das garantias constitucionais do processo criminal é a proibição
de que qualquer causa possa ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja
fixada em lei anterior (artigo 32.º, n.º 7, da Constituição).
Respeitados estes princípios, a regulamentação da repartição de competência
material entre os diversos tribunais pertence ao legislador ordinário.
6 — Segundo Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, 1.º vol., Coimbra,
1974), são essencialmente dois os métodos de «repartir as causas penais pelas
diferentes espécies de tribunais penais de 1.ª instância».
De um lado, o «método de determinação abstracta da competência, através do qual
se faz decorrer a competência material imediata ou incondicionalmente da lei»,
método que pode ainda revestir duas vertentes diferentes ou a lei «dá a cada
tribunal competência para conhecimento e decisão de certos tipos de crime», ou,
«não curando do singular tipo de crime, dá a cada tribunal competência para o
conhecimento e decisão de crimes a que corresponda, em abstracto, uma pena até
um certo máximo — mesmo que depois traduza esta pena aplicável através da
utilização de uma certa forma de processo (v. g., os crimes com penas aplicáveis
até dois anos serão da competência do juiz singular, os crimes com penas
superiores serão da competência do Tribunal Colectivo)».
De outro, o método dito da «determinação concreta da competência, segundo o qual
não haverá que atender directamente ao tipo de crime ou à pena máxima que lhe
seja aplicável, mas ao crime tal como é de esperar que venha a ser definido
concretamente na sentença ou à pena que previsivelmente lhe virá a ser
aplicada», método este não isento de objecções por a sua aplicação poder
contrariar a garantia do juiz natural, segundo a qual «só à lei anterior deve
pertencer a instituição de um (e um só) tribunal competente» (ibidem, p. 334).
7 — Passando à análise do processo penal vigente verifica-se que, relativamente
ao tribunal do júri, este detém competência para julgar os processos
respeitantes a crimes contra a paz e a humanidade (Título II do Livro II do
Código Penal), crimes previstos no Capítulo I do Título V do mesmo Livro —
crimes contra o Estado — e ainda os processos respeitantes a crimes cuja pena
máxima abstractamente aplicável for superior a oito anos de prisão.
Assim, quanto ao tribunal do júri (artigo 13.º do CPP), o legislador processual
penal utilizou como critério de delimitação da competência o da determinação
abstracta da competência, combinando o critério qualitativo (espécie do crime ou
natureza de algum dos seus elementos) e o critério quantitativo (gravidade da
pena aplicável ao crime), complementando estes critérios com uma exigência
subjectiva: o júri só intervirá se existir uma manifestação de vontade do
Ministério Público, do arguido ou do assistente, expressa em requerimento.
Quanto ao tribunal colectivo, a sua competência decorrente do artigo 14.º do
CPP, abrange, por um lado, o conhecimento dos processos emergentes dos mesmos
crimes da competência do tribunal do júri, em que a intervenção deste não tenha
sido requerida (Título II e Capítulo I do Título V do Livro II do Código Penal)
— n.º 1 do artigo —, e compete-lhe ainda julgar os processos respeitantes a
crimes dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte
de uma pessoa e todos os que a pena máxima, abstractamente aplicável, for
superior a três anos de prisão, desde que não devam ser julgados pelo tribunal
singular [alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 14.º]
Constata-se, de novo, que o legislador na delimitação da competência do tribunal
colectivo deu preferência ao método de determinação abstracta, conjugando,
novamente, o critério qualitativo [n.º 1 e n.º 2, alínea a)], com o critério
quantitativo [n.º 2, alínea b), do artigo 14.º].
No que se refere ao tribunal singular, o legislador começa por lhe atribuir uma
competência genérica residual: o tribunal singular julga todos os processos que,
por lei, não forem atribuídos à competência de outros tribunais (n.º 1 do artigo
16.º)
Estabelece depois este preceito, o princípio comum de competência do tribunal
singular: compete-lhe julgar os processos respeitantes a crimes cuja pena
máxima, abstractamente aplicável seja igual ou inferior a três anos de prisão
[alínea c) do n.º 2 do artigo 16.º] e ainda os crimes previstos no Capítulo II
do Título V, do Livro II do Código Penal (dos crimes contra a autoridade
pública) e os crimes de emissão de cheque sem provisão [alíneas a) e b) do
artigo 16.º].
Por último, de acordo com o n.º 3 do artigo 16.º, ao tribunal singular compete
ainda julgar os processos por crimes previstos no artigo 14.º, n.º 2, mesmo em
caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação, ou em
requerimento, quando for superveniente o conhecimento do concurso, entender que
não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a três anos ou
medida de segurança de internamento por mais do que esse tempo, caso em que o
tribunal não pode aplicar pena de prisão ou medida de segurança de internamento
superior a três anos (n.º 4).
Esta norma constitui uma afloração do método de determinação concreta da
competência e tem sido motivo de uma abundante jurisprudência deste Tribunal
(ainda que com votos de vencido) no sentido de que tal norma não viola nem o
princípio da reserva da função jurisdicional (artigos 205.º e 206.º da
Constituição), nem o princípio da legalidade a acção penal constante do artigo
224.º da Constituição, nem o princípio do juiz natural ou legal (artigo 32.º,
n.º 7, da CRP), nem o princípio das garantias de defesa, ínsito no n.º 1 do
artigo 32.º da Constituição.
Em conclusão, retira-se desta análise do processo penal, que a competência para
o julgamento dos processos por crimes cuja pena máxima, abstractamente
aplicável, seja superior a três anos de prisão, compete, em princípio, ao
tribunal colectivo [artigo 14.º, n.º 2, alínea b), do CPP].
Porém, esta regra sofre três importantes excepções.
Duas delas foram inteiramente assumidas pelo legislador trata-se dos casos
previstos directamente nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 16.º (crimes
contra a autoridade pública e crimes de emissão de cheque sem provisão), em
conjugação com o preceituado no artigo 14.º, n.º 2 — casos em que o julgamento
compete sempre ao tribunal singular, mesmo que a pena máxima, abstractamente
aplicável, seja superior a três anos de prisão —, e do caso do n.º 3 do artigo
16.º, em que a intervenção do tribunal singular depende do facto de o Ministério
Público entender que a pena de prisão aplicada, em concreto, não deve ser
superior a três anos.
Por outro lado, o tribunal colectivo não julga apenas crimes a que correspondam
penas cujo máximo seja superior a três anos de prisão. Por força do preceituado
no artigo 14.º, n.º 1, do CPP, o tribunal colectivo julga crimes puníveis com
penas de prisão de seis meses a três anos (caso do artigo 186.º do Código
Penal); crimes punidos com pena de prisão de três anos — os dos artigos 343.º,
n.º 4, 345.º, n.º 2, 347.º, n.º 1, 360.º, 363.º, 365.º, 368.º, n.º 4, 2.º
período, 369.º, 371.º, 373.º, 374.º, 376.º e 380.º; crimes puníveis com dois
anos de prisão, como é o caso dos previstos nos artigos 337.º, n.os 1 e 2,
364.º, 367.º, 368.º, n.º 3, 375.º e 381.º, n.os 2 e 3; crimes puníveis com
dezoito meses de prisão, como é o caso dos previstos no artigo 354.º; e crimes
puníveis com um ano de prisão, como é o caso dos previstos nos artigos 351.º,
368.º, n.º 4, 3.º período, 370.º, 372.º, 377.º e 378.º
Verifica-se, assim, que a competência do tribunal colectivo, vistas as coisas em
perspectiva quantitativa por referência à moldura penal, tal como aliás a do
tribunal singular, tanto surge alargada como restringida. Alarga-se quanto ao
tribunal colectivo na medida em que se lhe atribui competência para conhecer de
processos de cuja pena máxima, abstractamente aplicável, é igual ou inferior a
três anos de prisão, restringindo-se simultaneamente a competência do tribunal
singular. Quanto ao tribunal singular, a sua competência é alargada quando se
lhe atribui competência para julgar processos cuja pena máxima, abstractamente
aplicável, seja superior a três anos de prisão, verificando-se uma
correspondente limitação da competência do tribunal colectivo.
Assim, admitida como regra geral de repartição de competência material entre o
tribunal colectivo e o singular, a norma que estabelece caber àquele o
julgamento dos processos relativos a crimes em que a pena máxima abstractamente
aplicável, seja superior a três anos de prisão e ao singular, os crimes com pena
máxima abstractamente aplicável igual ou inferior a três anos de prisão, é o
próprio legislador que introduz excepções em sentido oposto, a ponto de ser
possível o tribunal singular poder julgar crimes puníveis até dez anos de prisão
e impor que o tribunal colectivo julgue crimes puníveis com penas até um ano de
prisão, como penas máximas abstractamente aplicáveis.
8 — Importa agora considerar o preceito questionado do artigo 15.º do CPP.
Esta norma limita-se a fixar o critério que permite a determinação da pena
abstractamente aplicável nos casos a que se reportam os artigos 13.º e 14.º e
que o legislador estabeleceu por forma a terem de ser consideradas «todas as
circunstâncias que possam elevar o máximo legal da pena a aplicar no processo»,
partindo-se da pena assim calculada para saber qual o tribunal competente (júri,
colectivo ou tribunal singular).
Do teor do preceito decorre que todas as circunstâncias que pudessem elevar o
máximo da pena deviam ser levadas em conta, fosse qual fosse a sua natureza e
quer estivessem previstas na parte geral do Código Penal quer na parte especial
ou em qualquer outro diploma. Ponto é que pudessem elevar o máximo legal da
pena a aplicar no processo.
Com esta referência ao processo quis-se abranger as hipóteses de concurso de
crimes, em que o arguido responde, no mesmo processo, por vários crimes,
afastando-se as hipóteses de se atender a penas aplicáveis em outros processos.
A este respeito, escreve Maia Gonçalves (Código de Processo Penal Anotado, 4.ª
ed., 1991, p. 72):
Trata-se de uma disposição específica de matéria relativa à competência, e não à
forma de processo, com ela se estabelecendo um limite acima do qual o tribunal
singular não tem competência para a aplicação de quaisquer penas, ainda que em
cúmulo jurídico. O preceito parece mesmo ter sido introduzido tendo em vista os
casos de cúmulo jurídico, que suscitaram dificuldades e jurisprudência
contraditória no regime anterior, mas é evidentemente aplicável a outros casos.
Assim, em face deste preceito, quem, no mesmo processo responder por dois ou
mais crimes a que corresponda pena de prisão até dois anos (v. g., furto de uso
de veículo, do artigo 304.º do CP); terá que ser julgado em tribunal colectivo
(ou eventualmente pelo júri), uma vez que perante o CP o cúmulo jurídico tem
como limite máximo a soma material das penas parcelares (no caso 4 anos, se se
tratar de dois crimes).
Efectivamente, de acordo com o preceituado no artigo 78.º, n.º 2, do Código
Penal, a pena aplicável, em caso de concurso de crimes, tem como limite superior
a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Assim, o texto do artigo 15.º do CPP, devidamente esclarecido pelos textos
preparatórios do Código de Processo Penal que estiveram na sua génese — conforme
desenvolvidamente é referido nas alegações do Procurador-Geral Adjunto há-de ter
o sentido de atribuir a competência ao tribunal colectivo sempre que,
verificando-se no mesmo processo concurso de infracções criminais, a soma das
penas que abstractamente cabe a cada uma delas ultrapassar os três anos de
prisão.
Importa referir que, tal como aconteceu no domínio do Código de Processo Penal
de 1929, também agora esta questão tem obtido soluções jurisprudenciais
contraditórias. De facto, existem decisões que atribuem a competência ao juiz
singular (v. g., acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2 de Maio de 1990
na Revista do Ministério Público, n.º 44, p. 147, e acórdão do Tribunal da
Relação de Coimbra, de 31 de Março de 1993, in Colectânea de Jurisprudência, ano
xviii, 1993, tomo ii, p. 68) e as que atribuem a competência ao colectivo
(acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15 de Maio de 1991, e do
Tribunal da Relação de Lisboa, de 16 de Janeiro de 1991, o primeiro não
publicado e o segundo publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano xvi, tomo
i, p. 178), assim se decidindo em sentido oposto à questão da cumulação de
infracções.
O sentido a atribuir à norma do artigo 15.º do CPP não pode ser separado do
actual teor do n.º 3 do artigo 16.º Com efeito, esta norma é expressa na
referência que faz ao concurso de infracções, pelo que, quando o Ministério
Público, na acusação ou após conhecer o concurso, conclui que, em concreto, não
deve ser aplicada pena de prisão superior a três anos, o julgamento pertencerá
ao tribunal singular.
Ora, seria bem absurdo que para delimitação da competência do colectivo ou do
júri, feita ao abrigo do artigo 15.º do CPP, se não atendesse também à
circunstância da cumulação de infracções. Existiria aqui um desequilíbrio de
critérios que o legislador não teria querido e que a história dos preceitos
delimitadores de competência desmente, como claramente resulta das alegações do
Procurador-Geral Adjunto, no passo que se transcreve:
Com vista à moderação da intervenção excessiva daqueles tribunais colegiais
(refere-se ao júri e ao colectivo) elevou-se, do Projecto para o Código, de três
para oito anos o limite máximo da pena de prisão abstractamente aplicável aos
crimes relativamente aos quais se consente requerimento de intervenção do
tribunal do júri e alargou-se o campo de utilização da faculdade prevista no
artigo 16.º, n.º 3, tendo desaparecido a possibilidade de oposição do arguido e
do assistente ou de discordância do tribunal singular; deste modo, a eficácia
desta última medida potenciou-se notoriamente ao ficar dependente apenas do
entendimento do Ministério Público, com os consequentes benefícios, em termos de
política judiciária e criminal, de evitar a intervenção do colectivo em casos em
que a mesma não se justifica, e, assim, obter-se um funcionamento da justiça
criminal menos oneroso e mais célere, sem quebra das garantias de defesa.
Tem, pois, de se concluir por uma exigência de interpretação unitária do
sistema, que a competência do tribunal, em matéria criminal, se determina em
função da pena unitária abstractamente aplicável ao concurso de infracções,
quando este ocorrer.
O facto de, nos termos do artigo 78.º, n.º 2, do Código Penal, a moldura de um
concurso de crimes só se definir depois de concretizadas as penas particulares,
não pode constituir obstáculo a tal entendimento do artigo 15.º
Na verdade, a este entendimento do preceito apenas interessa apurar o máximo que
a pena unitária pode alcançar no processo, o que pode ser facilmente
determinável: basta somar os máximos legais que as penas parcelares podem
atingir no processo, em aplicação concreta e que correspondem afinal ao limite
superior da respectiva moldura abstracta. Assim, a pena máxima abstractamente
aplicável em caso de concurso será o resultado da soma das penas máximas
abstractamente aplicáveis a cada um dos crimes em relação aos quais se deva
efectuar, no processo, o cúmulo infraccional.
9 — Importa agora averiguar se um tal entendimento do artigo 15.º do CPP viola o
preceituado no artigo 168.º, n.º 1, alínea q), da Constituição, por não ter
respeitado o sentido da autorização legislativa concedida pela Assembleia da
República através da Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro.
O n.º 57 da Lei n.º 43/86 definiu os parâmetros a que devia obedecer o diploma
autorizado, quanto à determinação do tribunal aplicável, recte, quanto «à
distribuição de competência entre o tribunal colectivo e o singular», pela forma
atrás (v. ponto 4 deste acórdão) referida, e que assenta essencialmente na
gravidade do crime, quer a que é reportada ao quantum da pena quer a reportada à
natureza do crime — crimes contra a paz e a humanidade e contra o Estado, crimes
dolosos ou agravados pelo resultado, quando a morte for elemento do tipo — sendo
que, como regra geral, serão julgados em colectivo os processos respeitantes a
crimes cuja pena máxima, abstractamente aplicável, for superior a três anos de
prisão.
Vimos já que quer esta regra quer a regra relativa ao tribunal singular
comportam excepções, sendo possível que o tribunal colectivo julgue processos em
que a pena máxima abstractamente aplicável é igual ou inferior a três anos de
prisão e o tribunal singular proceda ao julgamento de processos relativos a
crimes em que a pena máxima, abstractamente aplicável, é superior a três anos de
prisão.
O Tribunal Constitucional ao apreciar a questão da constitucionalidade do n.º 3
do artigo 16.º, que sempre entendeu não ser violador da Lei Fundamental, embora
com votos de vencido, afirmou:
Do que vem de dizer-se (exemplificavam-se os casos em que o tribunal colectivo
intervinha, julgando crimes cujo máximo era igual ou inferior a três anos de
prisão) já resulta claro que o facto de a lei subtrair ao tribunal colectivo o
julgamento de crimes puníveis com prisão cujo máximo excede três anos para o
cometer ao tribunal singular, não é, em si mesmo, susceptível de violar qualquer
norma ou princípio constitucional. Questão é que, desse modo, se não
encurtassem inadmissivelmente as garantias de defesa que o processo penal de um
Estado de Direito deve assegurar, como processo justo e leal que tem de ser (a
due process of law, a fair process) (Acórdão n.º 393/89, in Diário da República,
II Série, de 14 de Setembro de 1989).
Tendo o Tribunal concluído no sentido da não inconstitucionalidade de tal norma,
decerto que concluirá também inexistir qualquer inaceitável diminuição de
garantias de defesa decorrente do facto do tribunal singular poder julgar tipos
legais de crimes cuja pena máxima abstractamente punível for superior a três
anos de prisão, mesmo em concurso de infracções.
O facto de o tribunal colectivo poder julgar tipos legais de crime cuja pena de
prisão é igual ou inferior a três anos, desde logo, não implica qualquer
diminuição de garantias, muito ao contrário, como bem se compreenderá.
Mas também não implica qualquer desvio ou entorse à realização do sentido da lei
de autorização legislativa em causa. Com efeito, o entendimento exposto quanto
ao sentido do artigo 15.º do CPP na fixação da pena máxima abstractamente
aplicável no processo, não só realiza o essencial do critério plasmado no n.º
57.º da Lei n.º 43/86, que assenta na gravidade do crime, entendida esta não
apenas na sua vertente quantitativa mas também na vertente qualitativa, como
também ao atender a essa gravidade quantitativa convoca a que corresponda a um
conjunto de crimes, pela consideração, na distribuição de competência, da soma
das penas máximas abstractamente aplicáveis a cada um dos crimes que integram a
cumulação de infracções.
Não existe, assim, qualquer violação do sentido e da extensão da Lei n.º 43/86,
de 26 de Setembro, pelo artigo 15.º do CPP.
10 — Também não viola o referido artigo 15.º o princípio do juiz natural ou do
juiz legal.
Este princípio constitucional consagrado no n.º 7 do artigo 32.º, tem, segundo
Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3.ª ed., p. 207), as seguintes dimensões:
a) exigência de determinabilidade, o que implica que o juiz (ou juízes)
chamados a proferir decisões num caso concreto estejam previamente
individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível
inequívoca; b) princípio da fixação da competência, o que obriga à fixação das
competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz e à aplicação dos
preceitos que de forma mediata ou imediata são decisivos para a determinação do
juiz da causa; c) observância das determinações de procedimento referentes à
divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para a
fixação de um plano de distribuição de processos (embora esta distribuição seja
uma actividade materialmente administrativa, ela conexiona-se com o princípio da
administração judicial).
A norma do artigo 15.º do CPP, com a interpretação que vem questionada nos
autos, no sentido de que na determinação da pena máxima abstractamente aplicável
deve ser tida em conta a cumulação de crimes, quando ocorra, não viola qualquer
das vertentes referidas.
Efectivamente, quer se trate do tribunal colectivo quer do tribunal singular, a
determinação da pena máxima em caso de concurso de infracções há-de fazer-se, em
princípio, pela soma das penas máximas abstractamente previstas para cada crime
que, no processo, integram tal concurso, daí resultando a definição do tribunal
previamente estabelecido como competente, sem qualquer margem de arbitrariedade
ou de discricionaridade.
Há aqui que ressalvar no que ao tribunal singular respeita, a possibilidade da
sua intervenção por força da utilização da faculdade prevista no n.º 3 do artigo
16.º do Código de Processo Penal, caso em que intervém um juízo de
discricionariedade vinculado, a realizar pelo Ministério Público com base em
critérios legalmente estabelecidos de determinação da medida da pena, mas cuja
aplicação tem vindo a ser julgada plenamente conforme à Constituição. Mas, no
caso, nem esta norma está questionada nem a estatuição constante do artigo 15.º
é afectada pela aplicação do n.º 3 do artigo 16.º do Código de Processo Penal.
Tem, pois, de se concluir que o princípio do juiz natural ou legal não é
afectado pela norma do artigo 15.º, mesmo no entendimento que vem questionado.
III — Decisão
11 — Nestes termos, julga-se que a norma do artigo 15.º do Código de Processo
Penal, na interpretação que considera o concurso de infracções uma das
circunstâncias que pode elevar o máximo legal da pena a aplicar no processo para
efeitos de determinar o tribunal competente, respeita o sentido da autorização
legislativa da Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro, e não viola o artigo 32.º, n.º
7, da Constituição, pelo que não estando tal norma afectada de
inconstitucionalidade, decide-se conceder provimento ao recurso e, em
consequência, determina-se a reformulação do despacho recorrido, na parte
impugnada.
Lisboa, 8 de Novembro de 1995. — Vítor Nunes de Almeida — Armindo Ribeiro Mendes
— Antero Alves Monteiro Diniz — Alberto Tavares da Costa — José Manuel
Cardoso da Costa.
(1) Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Abril de
1996.