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Processo nº 23/95
2ª Secção
Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
A CAUSA
1. A., foi sujeito no 2º Juízo de Competência
Especializada Criminal do Tribunal de Guimarães, a julgamento sob a forma de
processo comum/singular, acusado de haver cometido um crime de condução sob o
efeito de álcool, p. e p. pelo artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 124/90, de 14
de Abril [no dia 23 de Outubro de 1993, conduzia o arguido na via pública, um
velocípede com motor, apresentando uma taxa de álcool no sangue (TAS) de 2,90
g/l].
Culminando o julgamento, foi proferida sentença
julgando provada a acusação e condenando o arguido pelo crime nela indicado, na
pena de 80 dias de multa (250$00/dia, com a alternativa de 53 dias de prisão),
e, ainda, 8 meses de inibição de conduzir.
Para atingir tal incriminação, começou a decisão em
causa - que foi proferida em 16 de Novembro de 1994 - por consignar
encontrarem-se, então, revogados os artigos 1º e 2º, do Decreto-Lei nº 124/90,
pelo artigo 87º, do Código da Estrada (CE), aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94,
de 3 de Maio, entretanto entrado em vigor. Porém, não obstante entendê-lo
aplicável, recusou aplicação ao referido artigo 87º, considerando-o
organicamente inconstitucional, sendo em função de tal recusa que, por
represtinação, aplicou o Decreto-Lei nº 124/90.
2. Desta decisão - da recusa de aplicação de uma norma
com fundamento em inconstitucionalidade, dela constante - recorreu o Ministério
Público, para este Tribunal, nos termos da alínea a), do nº 1, do artigo 70º, da
Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (LTC).
Admitido o recurso, foram produzidas neste Tribunal
alegações, apenas pelo Ministério Público, pugnando pelo não conhecimento do
recurso por falta de interesse processual.
Corridos os pertinentes vistos, cumpre decidir.
II
FUNDAMENTAÇÃO
Questão prévia
3. Para resolução da questão prévia ('falta de
interesse processual') suscitada pelo Ministério Público, importa analisar o
percurso interpretativo que levou a decisão recorrida à recusa de aplicação,
com fundamento em inconstitucionalidade, da norma constante do artigo 87º, do
CE.
Descritivamente podemos dizer que, tendo-se considerado
revogada, e por isso inaplicável, a disposição legal típica constante da
acusação (o artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 124/90), recusou-se aplicação, à
disposição entendida como vigente (o artigo 87º, do CE) o que acabou por levar
à aplicação, no final, da norma tida por revogada no primeiro passo do percurso
interpretativo: o mesmo artigo 2º, nº 1, indicado na acusação.
Na base das questões suscitadas neste recurso
encontram-se as dúvidas quanto ao tratamento legal da condução sob o efeito do
álcool, decorrentes da entrada em vigor, em 1 de Outubro de 1994, de um novo CE.
Inquestionável, até então, que a condução de veículos na
via pública com uma TAS igual ou superior a 0,5 g/l e inferior a 1,2 g/l
constituía contravenção (artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 124/90) e com uma
TAS igual ou superior a 1,2 g/l constituía crime (artigo 2º, nº 1, do
Decreto-Lei nº 124/90), passou, com a vigência do artigo 87º, do CE (que
estabelece coimas para a condução 'sob a influência do álcool', definida como
aquela em que o condutor apresenta uma TAS 'igual ou superior a 0,5 g/l'),
passou, dizíamos, a ser discutido se se mantinha o crime do artigo 2º, nº 1, do
Decreto-Lei nº 124/90, reportado à condução com uma TAS igual ou superior a 1,20
g/l, referindo-se a contra-ordenação do artigo 87º, apenas às TAS(s) inferiores
a este valor, até 0,5, ou se, pelo contrário, a definição como contra-ordenação
visava todas as TAS(s) iguais ou superiores a 0,5, com a consequente degradação
de crime em contra-ordenação dos comportamentos (anteriormente, nesse ponto de
vista) descritos como crime no artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 124/90.
Conduziram estas divergências interpretativas à emissão
de um Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República
(publicado no Diário da República, II, de 14 de Dezembro de 1994) que concluiu
não ter o CE, aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, revogado os artigos 1º e 2º,
do Decreto--Lei nº 124/90, mantendo-se, portanto, o crime definido neste
último.
Lê-se, a este propósito nas alegações do Ministério
Público:
'... a decisão recorrida acabou por chegar à mesma conclusão a que chegaria se
tivesse interpretado a norma questionada nos termos em que o fizeram o Conselho
Consultivo da Procuradoria-Geral da República ou o Tribunal da Relação do Porto
(referência feita a uma decisão deste Tribunal no mesmo sentido do Parecer). Ou
seja, e por outras palavras, quer se parta de uma, quer de outra interpretação,
chega-se ao mesmo resultado; o arguido seria punido, em qualquer caso, pela
prática do mesmo crime e com a mesma pena'.
E conclui-se:
'... sendo assim, inexiste interesse processual no conhecimento do objecto do
recurso'.
É sabido que o recurso de constitucionalidade, em sede
de fiscalização concreta, assumindo natureza instrumental, pressupõe a
susceptibilidade da decisão a tomar, sobre a questão de constitucionalidade,
ser operante relativamente à questão de fundo.
Como se referiu no Acórdão nº 454/91 (Diário da
República, II, Suplemento, de 24 de Abril de 1992, e Boletim do Ministério da
Justiça, nº 412, pág. 88):
'É jurisprudência constante do Tribunal Constitucional que «o julgamento da
questão de constitucionalidade desempenha, sempre, (...) uma função
instrumental, apenas se justificando que a ela se proceda se o mesmo tiver
utilidade para a decisão da questão de fundo. Ou seja: o sentido do julgamento
da questão de constitucionalidade há-de ser susceptível de influir na decisão
destoutra questão, pois, de contrário, estar-se-ia a decidir uma pura questão
académica»'.
Significa isto que, sendo a decisão de
constitucionalidade inócua relativamente à questão de fundo, nomeadamente
porque a solução dada a esta sempre se manteria fosse qual fosse o julgamento
de constitucionalidade, o recurso carece de efeito útil, perde carácter
instrumental naquele processo, e isso obsta ao seu conhecimento.
Não é essa, porém, a situação que aqui se configura.
Vejamos porquê.
Um aspecto do problema importa aqui reter. Prende-se
este com a necessária restrição do recurso, como decorre dos artigos 280º, nº 6,
da Constituição e 71º, da LTC, à questão de inconstitucionalidade, sendo neste
processo, a da inconstitucionalidade orgânica do artigo 87º, do CE.
Verifica-se que a solução da questão de
constitucionalidade não é de todo insusceptível de influenciar o sentido da
decisão recorrida. Com efeito, tendo subjacente esta que o artigo 87º, do CE
revogou o artigo 2º, do Decreto- Lei nº 124/90 e sendo tal aspecto insindicável
pelo Tribunal Constitucional, uma decisão deste Tribunal considerando conforme
à Constituição o referido artigo 87º, eliminando a decisão de recusa, sempre
levará - a manter-se o percurso interpretativo seguido na decisão recorrida - a
que o arguido, em vez de ser, como foi, punido pelo crime p. e p. pelo artigo
2º, do Decreto-Lei nº 124/90, venha a ser punido pela contra-ordenação descrita
no artigo 87º, CE.
Tanto basta para que se não possa afirmar a ausência de
utilidade da decisão do recurso, relativamente à questão de fundo, sendo, por
isso, de desatender, a questão prévia a propósito suscitada.
Questão de Fundo.
4. Como se viu, a decisão recorrida, depois de entender
revogado pelo artigo 87º, do CE o artigo 2º, do Decreto-Lei nº 124/90, acabou
por recusar aplicação ao primeiro, considerando-o organicamente
inconstitucional.
Lê-se no trecho da decisão que justifica tal
entendimento:
'Este diploma (referindo-se a decisão ao CE) foi publicado no uso da autorização
legislativa concedida pela Lei nº 63/93, de 21 de Agosto.
Esta Lei de autorização legislativa, no seu ponto 5, autoriza o Governo a rever
as normas constantes do Decreto-Lei nº 124/90 apenas na medida do alargamento
dos respectivos pressupostos à punição da condução sob a influência de
estupefacientes, psicotrópicos, estimulantes ou outras substâncias similares.
Por outro lado, a Lei nº 35/94, de 15 de Setembro, que autorizou o Governo a
rever o Código Penal, prevê no seu ponto 146 a inclusão naquele diploma legal de
um artigo 292º que prevê como criminosa a conduta daquele que conduzir veículos
na via pública com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l.
O constante da Lei nº 35/94 constitui importante elemento interpretativo dos
limites da autorização concedida neste ponto pela Lei nº 63/93.
À 'definição dos crimes, penas, medida de segurança e respectivos pressupostos'
é da exclusiva responsabilidade da Assembleia da República - artigo 168º, nº 1,
alínea d), da Constituição da República.
Do que se conclui que, na parte que nos ocupa, o Governo legislou sobre matéria
criminal, excedendo os limites da autorização legislativa concedida pela
Assembleia da República.
Em consequência, a norma do artigo 87º, do C. Estrada, na parte em que prevê e
pune a condução sob a influência de álcool com uma taxa igual ou superior a 1,2
g/l, revogando o constante do Decreto-Lei nº 124/90, é inconstitucional -
artigo 277º, nº 1, da Constituição da República.
A sua aplicação deve, assim, ser afastada, com aquele fundamento - artigo 280º,
nº 1, alínea a), da Constituição da República.'
4.1. Passemos em revista os textos legais relevantes
para a apreciação da questão.
Editou o Governo o CE, aprovando o Decreto-Lei nº
114/94, de 3 de Maio, ao abrigo da autorização legislativa consusbstanciada na
Lei nº 63/93, de 21 de Agosto.
Desta, no que aqui nos interessa, consta:
'Artigo 2º
............................................
4 - O Governo poderá proceder à revisão ou revogação das normas
penais incriminadoras relativas à violação das normas sobre o trânsito, visando
a sua adaptação às normas do Código da Estrada, desde que não sejam alterados os
tipos de crime ou agravados os limites das sanções aplicáveis.
5 - O Governo poderá proceder à revisão das normas penais
incriminadoras relativas à condução sob influência do álcool constantes do
Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, podendo alargar os pressupostos de
punição à condução sob influência de estupefacientes, psicotrópicos,
estimulantes ou outras substâncias similares e do procedimento para sua
detecção e controlo, observando os limites máximos da punição estabelecidos
nesse decreto-lei e assegurando aos suspeitos garantias de controlo dos testes
de detecção da influência das referidas substâncias.'
A norma do CE, aprovada ao abrigo desta autorização,
referente à condução sob o efeito do álcool, diz o seguinte.
'Artigo 87º
Condução sob o efeito do álcool
ou de estupefacientes
1 - É proibido conduzir sob a influência do álcool,
considerando-se como tal a condução com uma taxa de álcool no sangue igual ou
superior a 0,5 g/l.
2 - Quem conduzir sob a influência do álcool será punido com
coima de 20 000$ a 100.000$, salvo se a taxa de álcool no sangue for igual ou
superior a 0,8 g/l, caso em que a coima será de 40 000$ a 200 000$.
.............................................'
O Decreto-Lei nº 124/90, por sua vez, após considerar
que se encontra sob a influência do álcool o condutor que apresentou uma TAS
igual ou superior a 0,50 g/l, contém as seguintes disposições:
'Artigo 2º
Crime
1 - Quem conduzir veículos, com ou sem motor, em via pública ou
equiparada, apresentando uma TAS igual ou superior a 1,20 g/l será punido com
pena de prisão até um ano ou multa até 200 dias, se pena mais grave não for
aplicável.
2 - Se o facto for imputável a título de negligência, a pena será
de prisão até seis meses ou multa até 100 dias.
Artigo 3º
Contravenção
1 - Constituem contravenção os factos descritos no nº 1 do
artigo 2º quando o condutor apresentar uma TAS inferior a 1,20 g/l e igual ou
superior a 0,50 g/l.
2 - Sendo a TAS igual ou superior a 0,80 g/l, a multa será de 30
000$ a 150 000$.
3 - Sendo a TAS igual ou superior a 0,50 g/l e inferior a 0,80
g/l, a multa será de 15 000$ a 75 000$'.
Igualmente relevante para a decisão de recusa foi o teor
da lei de autorização legislativa relativa à revisão do Código Penal (Lei nº
35/94, de 15 de Setembro), cujo nº 147º, do artigo 3º, autoriza a edição duma
norma (posteriormente incluída no texto revisto aprovado pelo Decreto-Lei nº
48/95, de 15 de Março), nos seguintes termos:
'Artigo 292º
Condução de veículo em estado de embriaguez
Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem
motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou
superior a 1,2 g/l é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa
até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição
legal'.
4.2. Pressupõe a decisão recorrida abranger o artigo
87º, toda a condução sob a influência do álcool (toda a condução com uma TAS
igual ou superior a 0,50 g/l) incluindo aquela que no Decreto-Lei nº 124/90 era
definida como crime (aquela em que o condutor apresentasse uma TAS igual ou
superior a 1,20 g//l).
Haveria, com efeito, seguindo este entendimento, uma
degradação do comportamento criminal descrito no artigo 2º do Decreto-Lei nº
124/90 em comportamento contra-ordenacional, fora dos limites estabelecidos na
lei de autorização que, como se viu, no que concerne à condução sob influência
do álcool, não autorizou a revogação de 'normas penais incriminadoras', apenas
permitindo a sua revisão, de modo a abranger na respectiva previsão a condução
sob influência de estupefacientes e substâncias similares.
O decreto-lei autorizado não cumpriria, assim, o
sentido da autorização, legislando divergentemente dela, com a consequente
inconstitucionalidade orgânica da disposição em causa.
Note-se, porém, que toda esta construção interpretativa
cai pela base se se entender que o artigo 87º, do CE visa apenas a condução em
que a TAS, sendo igual ou superior a 0,50 g/l seja inferior a 1,20 g/l,
mantendo-se para os valores superiores o crime constante do artigo 2º, do
Decreto-Lei nº 124/90.
Vejamos, então, qual a interpretação correcta.
4.3. Encontramos no processo de formação da Lei nº
63/93, importantes argumentos interpretativos quanto à caracterização do
sentido da autorização e, logicamente, de apreciação do comportamento do
legislador autorizado.
Entre esses elementos avulta (como, aliás, é sublinhado
no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República
anteriormente referido) a exposição de motivos introdutora da proposta de Lei
nº 62/VI que viria a originar a lei de autorização do CE (v. DAR-II-A de 5 de
Junho de 1993), em cujo texto se pressupõe inequivocamente a manutenção das
normas penais existentes, relativas à condução sob o efeito do álcool, ou seja,
o Decreto-Lei nº 124/90: 'Neste domínio (diz-se em referência à condução sob o
efeito de estupefacientes), há estados de intoxicação que, pela sua
extraordinária perigosidade, deverão ser objecto de normas penais
incriminadoras, como sucede já com a condução sob a influência do álcool'
(sublinhado nosso).
A este acrescem outros elementos colhidos no processo de
discussão parlamentar da lei de autorização (v. ponto 3.1. do citado Parecer da
PGR) todos eles sugerindo que o regime a instituir pelo CE, relativo à condução
sob o efeito do álcool, limitar-se-ia a inserir-se no sistema anteriormente
instituído pelo Decreto-Lei nº 124/90, a saber: definição da condução com uma
TAS igual ou superior a 1,20 g/l como crime; definição da condução com TAS(s)
inferiores como ilícito extra-penal (contravenção até então, contra-ordenação
daí em diante).
Este entendimento sai igualmente reforçado da
consideração do teor do artigo 292º do Código Penal, autorizado pela Lei nº
35/94: manteve-se claramente o sistema decorrente do Decreto-Lei nº 124/90,
transferindo-se apenas para o Código Penal o tipo até aí inserido numa lei
avulsa.
Constituiria, assim, um absurdo criar um sistema que
implicasse a discriminalização da condução sob o efeito do álcool apenas pelo
escasso tempo que iria decorrer até à entrada em vigor do Código Penal revisto
(note-se que os trabalhos preparatórios do Código Penal e, concretamente, o
teor do futuro artigo 229º, eram ao tempo da publicação do CE do domínio
público - v. nota 29 ao citado Parecer da PGR).
4.4. Fundamental na lógica da decisão recorrida foi,
assumidamente, uma alegada impossibilidade de conferir 'um mínimo' de
correspondência interpretativa à letra da lei que referisse o artigo 87º, do CE
apenas a TAS(s) inferiores a 1,20 g/l. Sendo certo que a letra da lei, ao não
fixar os limites máximos correspondentes ao comportamento contra-ordenacional,
poderá não se mostrar inequívoca, afigura-se-nos manifestamente exagerado dizer
que uma interpretação, que recorrendo aos elementos genéticos (ou históricos),
possuidores, como vimos, de um apreciável grau de explicitação, e a um
inquestionável elemento sistemático e racional, afigura-se-nos manifestamente
exagerado, dizíamos, afirmar que tal interpretação não tem na letra da lei um
mínimo (e sublinhamos que o artigo 9º, do Código Civil se basta com um mínimo)
de correspondência verbal.
Aceitando-se que o artigo 87º, do CE abre um espaço de
interpretação onde, em termos abstractos, é admissível a configuração de mais
que um entendimento interpretativo, o que a decisão recorrida parece procurar é
a interpretação não conforme à Constituição. Porém, não é este o procedimento
constitucionalmente aceitável, havendo antes que optar pelo entendimento
conforme ao texto constitucional (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional,
5ª edição, Coimbra 1992, pág. 235/236; Jorge Miranda, Manual de Direito
Constitucional, Tomo II, 3ª edição, Coimbra 1991, pág. 263/266).
Tal entendimento - o entendimento conforme à
Constituição - não pode deixar de ser aquele que veja no artigo 87º, do CE
apenas as TAS(s) não abrangidas pela descrição típica do artigo 2º, do
Decreto-Lei nº 124/90, que o mesmo é dizer, o cumprimento pelo Governo do
mandato recebido do legislador autorizante, mandato esse que foi o de não
discriminalizar a condução sob o efeito do álcool.
Não existe, assim, fundamento para a opção pela
interpretação que na sentença recorrida motivou a recusa, por
inconstitucionalidade orgânica do artigo 87º, do CE.
5. A decisão que ora se tomou sobre a questão de
constitucionalidade leva-nos de alguma forma a retomar a questão prévia já
atrás resolvida.
Constata-se, com efeito, que a decisão do problema de
inconstitucionalidade que fundou a recusa é objecto de uma decisão de não
provimento por este Tribunal e que tal decisão, fundando-se em determinada
interpretação da norma recusada, torna vinculativa neste processo tal
interpretação 'conforme à Constituição' (artigo 80º, nº 3, da LTC).
O problema adquire especial significado ao vermos que o
processo interpretativo que nos permitiu fixar a interpretação
constitucionalmente conforme do artigo 87º, do CE, levaria no caso à punição do
arguido pelo crime p. e p. pelo artigo 2º, do Decreto-Lei nº 124/90,
directamente (e não por represtinação como o fez a decisão recorrida) aplicável
à situação, ou seja, a entender como não aplicável o artigo 87º, por só prever
TAS(s) inferiores a 1,20 g/l.
Seria então inútil o recurso, por insusceptível de
produzir efeito prático?
O Tribunal continua a responder negativamente. É que, na
decisão, há que cindir dois momentos interpretativos: o primeiro, sem qualquer
referência constitucional, entende revogado pelo CE o artigo 2º, do Decreto-Lei
nº 124/90; o segundo, interpretando, como vimos de forma não conforme à
Constituição o artigo 87º, do CE, recusa aplicação a este.
Só este último momento interpretativo pode ser objecto
de pronunciamento por este Tribunal e é quanto a ele, que a decisão deste
Tribunal forma caso julgado, por força do disposto nos artigos 280º, nº 6, da
Constituição, 71º, nº 1 e 80º, nºs 1 e 2, da LTC, mesmo que, como aqui sucede, o
percurso interpretativo que conduziu à decisão de não provimento, se transposto
para o falado primeiro momento interpretativo da decisão recorrida, a
conduzisse a uma solução diversa.
A decisão do Tribunal Constitucional vincula a não
considerar inconstitucional o artigo 87º, do CE, na base de uma interpretação
conforme à Constituição, vinculando também o tribunal recorrido a aplicar essa
norma com a interpretação conforme com a Constituição definida pelo Tribunal.
III
DECISÃO
6. Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao
recurso e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida a fim de ser
reformada, interpretando-se o artigo 87º, nº2, do Código da Estrada com o
sentido que se deixa indicado como sendo conforme à Constituição.
Lisboa, 8 de Novembro de 1995
José de Sousa e Brito
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Messias Bento
Luís Nunes de Almeida