Imprimir acórdão
Processo: n.º 417/91.
Plenário
Relator: Conselheiro Alves Correia.
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I — Relatório
1 — O Provedor de Justiça requereu ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto nos artigos 281.º, n.º 2, alínea d), da Constituição e 51.º, n.º 1, da
Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro), a declaração
de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos
artigos 1.º a 7.º e 8.º a 11.º do Decreto-Lei n.º 332/91, de 6 de Setembro, e,
bem assim, de todas as normas revogadas pelo artigo 12.º do mesmo diploma legal.
Depois de sustentar, em observação preliminar, que o facto de o Tribunal
Constitucional já haver apreciado e decidido, a requerimento do Provedor de
Justiça, no Acórdão n.º 39/88, de 9 de Fevereiro de 1988 (publicado no Diário da
República, I Série, de 3 de Março de 1988), e matéria relativa às indemnizações
conferidas aos ex-titulares de direitos sobre bens nacionalizados não impede que
o mesmo órgão suscite a reapreciação e a declaração de inconstitucionalidade de
normas já anteriormente consideradas, aduziu o requerente, como suporte do
pedido, entre outros, os seguintes fundamentos:
a) Editado no uso da autorização legislativa contida na Lei n.º 40/91,
de 27 de Julho, o Decreto-Lei n.º 332/91 veio estabelecer o novo processo de
cálculo das indemnizações conferidas aos ex-titulares de direitos sobre bens
nacionalizados.
b) Embora a Constituição ainda relegue para o legislador comum os
critérios de fixação da indemnização correspondente à apropriação colectiva dos
meios de produção (artigo 83.º), o processo calculatório (na terminologia do
preâmbulo daquele diploma) terá que conduzir à atribuição de uma «justa
indemnização», em homenagem ao direito de propriedade privada consagrado no
artigo 62.º, n.º 1, da Lei Fundamental.
c) Certo é que assim não o entendeu o Tribunal Constitucional no
Acórdão n.º 39/88, louvando-se, em essência, na distinção conceitual entre
expropriação e nacionalização.
d) Será a nacionalização um acto político, com carácter excepcional,
impelido por razões ideológicas. E daí que o n.º 2 do artigo 62.º da
Constituição somente preveja o pagamento da justa indemnização para o instituto
expropriativo.
Só que a tal ideia terá de ser aditada uma outra: a de que essa indemnização
parcial só terá lógica e coerência se o circunstancialismo ideológico
prevalecente ao tempo da nacionalização subsistir no momento em que a
indemnização venha a ser efectivamente computada e atribuída.
e) A ideologia subjacente ao «processo calculatório» das indemnizações
já não é a do «processo revolucionário», mas a de um Estado de direito
normalizado e consonizado com o espaço comunitário em que se insere.
f) A Constituição não estabelece uma diferenciação dogmática entre o
instituto expropriativo e o instituto da nacionalização.
O artigo 83.º do texto constitucional saído de revisão de 1989 não
pode dissentir do critério nuclear da garantia da propriedade privada, que se
exprime, além do mais, na hipótese de transferência forçada de um bem privado
para o Estado, numa conversão de valores patrimoniais, através de justa
indemnização.
g) A justa indemnização terá de conduzir à reposição actual no
património daquele que foi objecto de uma apropriação estatal dos seus bens do
respectivo valor integral.
Este não pode ser apurado através de critérios tabelares e
formalizantes, mas com apelo e regras substanciais de justiça: ora o
retardamento verificado nas operações de aplicação dos mecanismos do Decreto-Lei
n.º 528/76, de 7 de Julho, e legislação subsequente esvaziaram de sentido, em
decisiva medida, o princípio da justa indemnização.
h) O resultado obtido foi, em muitos casos, por completo
desproporcionado e irrisório.
Não permitindo que se lance mão de qualquer dispositivo correctivo dos valores
apurados, o «processo calculatório», desdobrado nos artigos 1.º a 7.º do
Decreto-Lei n.º 332/91, é, assim, inconstitucional.
i) Alterando substancialmente o regime anterior, que provinha, com
vicissitudes várias, da Lei n.º 80/77, de 26 de Outubro, o Decreto-Lei n.º
332/91 atribui ao Ministro das Finanças, apoiado no parecer de uma comissão
mista (que tem um significado meramente processual, de arbitramento não
vinculante), competência para fixar, por despacho definitivo, o valor da
indemnização.
Tem-se como flagrante que, desta sorte, violado fica o n.º 2 do
artigo 205.º da Constituição, na medida em que se comete ao Governo uma função
caracterizadamente jurisdicional.
j) Do despacho definitivo do Ministro das Finanças caberá recurso
contencioso, que cobre uma das vertentes da garantia da via judiciária.
Só que essa garantia não corresponde ao princípio da reserva de
jurisdição de que apenas os tribunais são detentores. Ela imporia que, como
acontece com as expropriações, fossem os tribunais a fixar o quantum das
indemnizações.
l) É o contencioso administrativo um contencioso de anulação, e não de
plena jurisdição, e apenas pode declarar ilegal o acto administrativo em que se
traduz o despacho do Ministro das Finanças.
A margem de sindicabilidade será sempre restrita: o exercício do
poder jurisdicional primário é cometido ao Governo.
m) Aliás, o sistema tem vindo, desde a Lei n.º 80/77, sempre a
retroceder, na sua comportabilidade constitucional.
Esta lei previa um regime alternativo de acesso aos tribunais
comuns, de recurso para a comissão arbitral ou directamente para o STA e de
recurso da comissão arbitral para o STA.
O Decreto-Lei n.º 343/80, de 2 de Setembro, ao dar ao artigo 16.º daquela lei
uma nova redacção, conferiu aos particulares, além da via jurisdicional comum, a
possibilidade de requererem ao Ministro das Finanças a constituição de uma
comissão arbitral para resolver «quaisquer litígios relativos à titularidade do
direito à indemnização e à sua fixação, liquidação e efectivação».
n) Só que as decisões das comissões arbitrais — que eram órgãos
caracterizadamente jurisdicionais — para ganharem validade teriam de ser
homologadas por despacho do Ministro das Finanças, traduzindo-se esta
homologação administrativa de uma decisão jurisdicional em patente
inconstitucionalidade.
No sistema do Decreto-Lei n.º 332/91, as comissões mistas não são,
de todo em todo, órgãos jurisdicionais, limitando-se a emitir meros pareceres ou
juízos opinativos, como elemento prévio de uma decisão administrativa
materialmente definitiva.
o) E este diploma expurga por completo da apreciação casuística dos
critérios legais os meios jurisdicionais comuns.
Certo é que se trata de uma reapreciação de valores já fixados mas
o Ministro das Finanças não actua, obviamente, como uma instância de recurso,
mas em ordem à fixação de um novo valor de indemnização.
p) E não poderá chamar-se aqui à colação a abertura que o artigo 205.º,
n.º 4, na actual versão da constituição, perspectiva quanto à possível criação,
pelo legislador comum, de instrumentos e formas de composição não jurisdicional
de conflitos.
q) Do que vem de se ponderar decorre que todas as normas revogadas pelo
artigo 12.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 332/91 — as normas constantes dos artigos
1.º a 7.º do Decreto-Lei n.º 528/76, de 7 de Julho; dos artigos 14.º e 16.º da
Lei n.º 80/77, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 343/80, de 2 de Setembro;
da Portaria n.º 786-A/77, de 23 de Dezembro; do Decreto-Lei n.º 206/78, de 24 de
Julho; da Portaria n.º 610/78, de 7 de Outubro; do Decreto-Lei n.º 51/86, de 14
de Março; e as normas constantes da Portaria n.º 497/86, de 8 de Setembro — se
encontram feridas de inconstitucionalidade, pelo que não podem ser
repristinadas.
2 — Notificado o Primeiro-Ministro, nos termos e para os efeitos do disposto nos
artigos 54.º e 55.º, n.º 3, de Lei do Tribunal Constitucional, apresentou o
mesmo resposta, na qual começou por suscitar a questão prévia da falta de
legitimidade activa do requerente para apresentar o presente pedido de
fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade.
Na sua óptica, tendo o Tribunal Constitucional analisado, no Acórdão n.º 39/88,
a requerimento do Provedor de Justiça, a questão da constitucionalidade de
diversas normas cuja reapreciação agora é proposta e tendo decidido não declarar
a sua inconstitucionalidade, não pode a mesma entidade recolocar ao Tribunal
Constitucional a mesma questão de constitucionalidade, uma vez que «a aceitação
da tese da possibilidade de repropositura das mesmas questões, pelas mesmas
entidades, parece configurar um uso infundado do direito de desencadear o
processo de fiscalização abstracta da Constituição».
Não deixou, porém, o Primeiro-Ministro, para a eventualidade de não atendimento
da questão prévia, de invocar a falta de fundamento do pedido do Provedor de
Justiça e de sustentar a conformidade com a Constituição das normas impugnadas.
Os argumentos avançados na resposta do Primeiro--Ministro são, em síntese, os
seguintes:
a) O Decreto-Lei n.º 332/91 vem estabelecer o novo processo de cálculo
das indemnizações conferidas aos ex-titulares de direitos sobre bens
nacionalizados.
Nessa conformidade, procedeu à revogação das disposições anteriores
que estabeleciam critérios diferentes de cálculo.
b) Não veio aquele diploma alterar o substracto anterior inerente às
nacionalizações, mas tão-só alterar, para melhor, o cálculo das indemnizações a
atribuir aos detentores dos bens nacionalizados.
c) Por ser assim, mantém-se intocada a filosofia dos anteriores
diplomas, cuja inconstitucionalidade não foi declarada pelo Tribunal
Constitucional no Acórdão n.º 39/88.
d) Pretende o Provedor de Justiça que os artigos 1.º a 7.º do
Decreto-Lei n.º 332/91 violam a protecção constitucional do direito de
propriedade e o princípio da justa indemnização.
e) O direito de propriedade, de que é elemento essencial o direito de
não ser dela privado, não goza de protecção constitucional em termos absolutos.
O que está garantido é apenas «um direito de não ser
arbitrariamente privado da propriedade e de ser indemnizado no caso de
desapropriação» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 2.ª ed., anotação ao artigo 62.º).
f) O Decreto-Lei n.º 332/91 não põe em causa o princípio
constitucionalmente consagrado do direito à propriedade privada consagrado no
artigo 62.º, n.º 1, da Constituição, não o violando pois.
g) No que concerne à violação do direito à justa indemnização dos
titulares dos bens nacionalizados, «o fundamento do direito à indemnização por
nacionalização há-de encontrar-se no artigo 82.º (actual artigo 83.º) da
Constituição e não, como pretende o requerente, no artigo 62.º, n.º 2, da Lei
Fundamental», como bem se refere no já mencionado Acórdão n.º 39/88.
h) É abundante a doutrina que aponta para um diferente entendimento das
indemnizações por nacionalização e por expropriação (cfr., por todos, Gomes
Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., em anotação ao artigo 83.º).
i) Consequentemente, não poderá proceder a invocada
inconstitucionalidade das normas dos artigos 1.º a 7.º do Decreto-Lei n.º
332/91.
j) Pretende-se de seguida que os artigos 8.º a 11.º transgridem a regra
de que a função jurisdicional cabe, em exclusivo, aos Tribunais, violando,
assim, a norma do n.º 2 do artigo 205.º da Constituição.
O que parece estar em questão é a fixação da indemnização
definitiva por despacho do Ministro das Finanças e a revisão do cálculo daquele
valor ficar a cargo de uma comissão mista.
l) A lei limita-se a determinar a quem compete a fixação dos montantes
indemnizatórios e a composição da comissão mista, em substituição das Comissões
Arbitrais previstas na Lei n.º 80/77, cujo parecer servirá de base ao despacho
definitivo do Ministro das Finanças quanto à fixação do valor da indemnização.
m) Sendo tal despacho contenciosamente impugnável, nos termos legais,
sempre caberá ao tribunal a decisão, ou seja, não resulta das disposições
questionadas a usurpação ou subtracção aos tribunais das suas competências de
administração da justiça.
E por ser claramente assim, não resulta qualquer violação da norma
do n.º 2 do artigo 205.º da Constituição.
n) Por último, ataca-se a constitucionalidade da norma revogatória do
artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 332/91, pretendendo-se que não ressurja, por
repristinação, a legislação ali expressamente revogada.
O que se pretende é a própria declaração de inconstitucionalidade
das normas revogadas pelo artigo 12.º, que sejam repristinadas.
o) Para além da duvidosa possibilidade de o Tribunal Constitucional
conhecer e declarar a inconstitucionalidade das normas revogadas pelo artigo
12.º do Decreto-Lei n.º 332/91, a questão só se colocaria se o Tribunal
concluísse pela inconstitucionalidade das normas revogadas.
Ora, os «males» apontados no pedido a essas normas, se existiam,
ficaram remediados com a revogação.
p) Com efeito, o Decreto-Lei n.º 332/91 vem efectivamente melhorar a
situação dos titulares dos bens nacionalizados, quer permitindo a alteração dos
valores da indemnização em termos mais favoráveis — já que nunca poderão ser
fixados em valor inferior ao anteriormente atribuído —, quer determinando a
constituição de comissões mistas, cujo parecer servirá de base à fixação do
valor da indemnização.
Por ser assim, a norma do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 332/91 não
viola qualquer norma constitucional, que, aliás, não vem referida.
3 — Concluída a discussão do memorando apresentado pelo relator e tomada a
decisão do Tribunal, foi aquele substituído pelo primeiro juiz vencedor, para
efeitos de elaboração do acórdão, nos termos do artigo 65.º, n.º 3, da Lei do
Tribunal Constitucional.
II — Fundamentos
4 — A primeira tarefa que imediatamente se depara ao Tribunal é a da apreciação
e decisão da questão prévia suscitada pelo Primeiro-Ministro, a qual consiste na
falta de legitimidade activa do Provedor de Justiça para apresentar o presente
pedido de fiscalização abstracta da constitucionalidade. Na verdade, segundo o
entendimento expresso na resposta do Primeiro-Ministro, tendo o Tribunal
Constitucional, no Acórdão n.º 39/88, analisado, a requerimento do Provedor de
Justiça, a questão da conformidade com a Constituição de diversas normas
relativas à indemnização por nacionalização e tendo concluído pela não
declaração da sua inconstitucionalidade, não pode a mesma entidade recolocar ao
Tribunal Constitucional a questão da constitucionalidade das mesmas normas
jurídicas, isto é, reeditar um pedido em que anteriormente tinha decaído.
Que dizer desta argumentação?
4.1 — O Tribunal Constitucional vem acentuando, na sua jurisprudência, que as
únicas decisões capazes de precludirem a possibilidade de nova apreciação
judicial da constitucionalidade de uma norma são as que, sendo proferidas em
sede de fiscalização abstracta sucessiva, declaram a sua inconstitucionalidade
(cfr. o Acórdão n.º 66/84, publicado no Diário do República, II Série, de 9 de
Agosto de 1984) e que, no caso de acórdãos que não se pronunciem pela
inconstitucionalidade, o Tribunal não fica impedido de voltar a pronunciar-se
sobre a mesma matéria, quer o Acórdão tenha sido produzido em fiscalização
preventiva, quer também o tenha sido em fiscalização sucessiva (cfr. o Acórdão
n.º 85/85, publicado no Diário da República, II Série, de 25 de Junho de 1985).
Uma tal jurisprudência baseia-se no sistema de controlo da constitucionalidade,
tal como é gizado na Constituição Portuguesa, em que ao Tribunal Constitucional
é atribuída competência para apreciar e declarar (ou não) a
inconstitucionalidade e não para declarar a constitucionalidade de normas
jurídicas ou para emitir uma declaração positiva da sua conformidade com a
Constituição.
As decisões de não declaração de inconstitucionalidade de uma norma jurídica não
têm, assim, efeito preclusivo da possibilidade de ser novamente solicitada ao
Tribunal Constitucional a apreciação e declaração da inconstitucionalidade da
norma anteriormente não declarada inconstitucional. Efeito preclusivo dessa
possibilidade têm-no apenas as decisões de declaração de inconstitucionalidade,
pela simples razão de que, por efeito de tal declaração, as normas são banidas
do ordenamento jurídico, desaparecendo, por isso, a possibilidade de ser de novo
fiscalizada a sua constitucionalidade.
O entendimento que vem de ser exposto tem vindo a ser sustentado, sem
discrepância pela doutrina constitucionalista portuguesa [cfr. Jorge Miranda,
Manual do Direito Constitucional, tomo ii, 3.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora,
1991, pp. 482-483; J. M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em
Portugal, 2.ª ed., Coimbra, 1992, pp. 61-62; M. Rebelo de Sousa, «As
Indemnizações por Nacionalização e as Comissões Arbitrais em Portugal», in
Revista de Ordem dos Advogados, 49 (1989), pp. 384-385; e J. J. Gomes Canotilho,
Direito Constitucional, 6.ª ed., Coimbra, Almedina, 1993, pp. 1079-1080). É
certo que este último autor, depois de acentuar que a conclusão de ausência de
efeito preclusivo das decisões de não declaração de inconstitucionalidade
proferidas pelo Tribunal Constitucional «é, de resto, a única defensável quando
se coloca o problema em termos jurídico-constitucionais e jurídico-dogmáticos»,
afirma que, «enquanto a declaração de inconstitucionalidade determina a nulidade
ipso jure, eliminando a possibilidade de recursos por via incidental, a não
declaração carece de quaisquer efeitos purgativos, sendo admissível a
repropositura de uma acção directa (fiscalização abstracta) por outras
entidades, constitucionalmente legitimadas, e a interposição de recursos em via
incidental». Mas a expressão «repropositura de uma acção directa por outras
entidades» deve ser entendida no contexto da globalidade do discurso
argumentativo daquele autor, o qual vai no sentido de não existir qualquer
obstáculo constitucional ou legal a que o novo pedido, versando sobre matéria
constante de uma decisão de rejeição de inconstitucionalidade proferida
anteriormente pelo Tribunal Constitucional, possa ser formulado pelo requerente
do primitivo pedido.
Refira-se que o figurino da nossa Constituição quanto à negação da eficácia
preclusiva das decisões de não declaração de inconstitucionalidade
proferidas pelo Tribunal Constitucional e quanto à recusa de efeito de caso
julgado material em relação ao requerente não é adoptado em alguns ordenamentos
jurídicos europeus. Assim, na República Federal da Alemanha, o Tribunal
Constitucional, sendo o caso, «declara» a conformidade constitucional da norma
sujeita ao controlo, declarando que tem eficácia idêntica à da declaração de
inconstitucionalidade; na Áustria, as decisões em sentido inverso ao da
inconstitucionalidade têm eficácia geral no tocante às questões de
constitucionalidade apreciadas (produzindo uma correspondente força de caso
julgado nos respectivos «fundamentos»); na Espanha, a lei prevê que as
declarações de negação de provimento produzam um «efeito preclusivo»
relativamente à apreciação do mesmo problema de constitucionalidade; na Turquia,
as decisões de não provimento, no âmbito do controlo concreto, implicam um
julgamento de «conformidade constitucional», que exclui a possibilidade de a
questão ser reapreciada durante 10 anos; finalmente, na Bélgica, as decisões de
rejeição de um «recurso de constitucionalidade» (controlo abstracto) são
obrigatórias para os tribunais no que respeita à questão decidida (cfr. J. M.
Cardoso da Costa, «Justiça Constituciona1 no Quadro das Funções do Estado Vista
à Luz das Espécies, Conteúdo e Efeitos das Decisões sobre a Constitucionalidade
de Normas Jurídicas», in Justiça Constitucional e Espécies, Conteúdo e Efeitos
das Decisões sobre a Constitucionalidade de Normas, Lisboa, Tribunal
Constitucional, 1987, pp. 64-65).
A caracterização do modelo português quanto aos efeitos das decisões do Tribunal
Constitucional de não declaração de inconstitucionalidade de normas jurídicas
leva inexoravelmente ao desatendimento da questão prévia suscitada pelo
Primeiro-Ministro.
4.2 — Acrescente-se, ainda, que não se pode dizer com rigor que as normas
objecto do presente pedido de declaração de inconstitucionalidade já foram
apreciadas pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 39/88, tendo aí este
órgão de administração da justiça em matérias de natureza
jurídico-constitucional decidido não declarar a sua inconstitucionalidade. Na
verdade, o pedido de declaração de inconstitucionalidade que agora este Tribunal
tem entre mãos tem como objecto primário as normas constantes do Decreto-Lei n.º
332/91 — diploma legal surgido posteriormente àquele aresto do Tribunal
Constitucional e que reformula os critérios e o processo de cálculo das
indemnizações a atribuir aos titulares de acções ou partes de capital de
empresas nacionalizadas — e como objecto secundário as normas revogadas pelo
artigo 12.º daquele diploma legal — normas essas cuja conformidade com a
Constituição apenas será analisada pelo Tribunal Constitucional se concluir pela
inconstitucionalidade das constantes do Decreto-Lei n.º 332/91. Ora, somente
algumas das normas revogadas por aquele artigo do Decreto-Lei n.º 332/91 — mais
precisamente, as normas dos artigos 2.º, 3.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 528/76, de
7 de Julho, as normas dos artigos 14.º e 16.º da Lei n.º 80/77, de 26 de
Outubro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 343/80, de 2 de Setembro, e as
normas das Portarias n.os 786-A/77, de 23 de Dezembro, e 610/78, de 7 de Outubro
— fazem parte do elenco de normas apreciadas no citado Acórdão n.º 39/88.
Verificando-se, como acaba de ver-se, tão-só uma coincidência parcial entre o
objecto do actual pedido e o daquele que esteve na génese do Acórdão n.º 39/88,
nunca a ilegitimidade activa do Provedor de Justiça para apresentar o presente
pedido de declaração de inconstitucionalidade, a ser admitida — o que não é o
caso, como se acentuou —, poderia abranger as normas constantes do Decreto-Lei
n.º 332/91, mas, somente, de entre o grupo das revogadas pelo artigo 12.º
daquele diploma legal, as que já foram analisadas no Acórdão n.º 39/88 e nele
não declaradas inconstitucionais.
Eis, pois, como deve o Tribunal Constitucional concluir pelo desatendimento da
questão prévia suscitada na resposta do Primeiro-Ministro.
5 — Outro problema deve ser esclarecido, desde já, que é o de saber se o
Tribunal tem competência para apreciar a questão da constitucionalidade de
normas repristinadas, em consequência da declaração de inconstitucionalidade (ou
de ilegalidade) com força obrigatória geral. Trata-se de uma questão que, é
certo, só se colocará ao Tribunal Constitucional, na hipótese de concluir pela
inconstitucionalidade de alguma ou algumas das normas do Decreto-Lei n.º 332/91.
Só nesse caso é que se verifica a repristinação de algumas ou de todas as
normas revogadas pelo artigo 12.º daquele diploma legal. Mas se o Tribunal
Constitucional entender que lhe está, de todo, vedado conhecer da conformidade
com a Constituição de normas repristinadas por efeito da declaração de
inconstitucionalidade, então serão imediatamente excluídas do objecto do
presente pedido de fiscalização abstracta da constitucionalidade as normas
revogadas pelo Decreto-Lei n.º 332/91, cuja declaração de inconstitucionalidade
com força obrigatória geral é expressamente solicitada pelo requerente. Vejamos
então.
5.1 — O Tribunal Constitucional já se pronunciou no sentido de lhe assistir
competência para limitar os efeitos da inconstitucionalidade, no que respeita à
repristinação das normas revogadas pela norma declarada inconstitucional.
Fê-lo, no Acórdão n.º 56/84 (publicado no Diário da República, I Série, de 9 de
Agosto de 1984), em matéria penal, «por razões de segurança jurídica, dentro do
espírito do artigo 29.º, n.os 1 e 3, da Constituição, e na linha do disposto no
artigo 282.º, n.º 4, da Lei Fundamental», a fim de evitar a aplicação das normas
repristinadas durante o período de vigência das normas declaradas
inconstitucionais.
Todavia, até hoje ainda não foi colocado perante a necessidade de decidir a
questão de saber se é competente para conhecer da eventual inconstitucionalidade
das normas repristinadas, quer para o efeito de declarar essa
inconstitucionalidade, quer apenas para restringir os efeitos da
inconstitucionalidade, em termos de, em tal caso, impedir a repristinação.
Esta problemática já foi abordada pela doutrina. Assim, J. J. Gomes Canotilho
escreveu, no citado Direito Constitucional, p. 1075:
Embora não se estabeleçam restrições aos efeitos repristinatórios, estes não
devem aceitar-se incondicionalmente. Tendo em conta a sua razão de ser, é
lógico que: (i) existam esses efeitos quando entre nenhuma norma e a norma
repristinada seja esta a solução mais razoável; (ii) não existam quando a norma
declarada inconstitucional não tiver revogado qualquer norma anterior. No caso
de a norma repristinada ser inconstitucional não está vedada ao TC a
possibilidade de conhecer dessa inconstitucionalidade para fundamentar nela a
recusa de efeitos repristinatórios (cfr. Acórdão do TC n.º 56/84). Mais
duvidoso (por violar o princípio do pedido) é a possibilidade de o TC conhecer e
declarar a inconstitucionalidade das normas repristinadas.
Debruçando-se sobre o mesmo tema, o autor mencionado, juntamente com Vital
Moreira, teve o ensejo de referir o seguinte (cfr. Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 1040):
Nas hipóteses de repristinação de uma norma anterior, coloca-se o problema de
saber se o TC pode conhecer da inconstitucionalidade das normas repristinadas.
Em sentido negativo pode invocar-se o princípio da congruência ou da limitação
do TC ao pedido; em sentido positivo é lícito argumentar-se com o carácter
consequencial da apreciação da inconstitucionalidade das normas repristinadas.
A solução afirmativa comporta ainda duas variantes: (1) o TC conhece da
inconstitucionalidade das normas repristinadas, podendo declará-las
inconstitucionais, evitando a sua repristinação; (2) o TC conhece apenas da
inconstitucionalidade das normas repristinadas, mas não a declara, podendo
apenas invocar a inconstitucionalidade juntamente para evitar o efeito
repristinatório (ao abrigo do n.º 4). A primeira variante, embora pudesse
trazer certeza ao ordenamento jurídico, implicaria ou poderia implicar um
alargamento ad infinitum do pedido (possibilidade de ter de enfrentar a
repristinação de normas que por sua vez tenham revogado outras).
Mas parece ser admissível um pedido de fiscalização de inconstitucionalidade
que, a título subsidiário e cumulativo, solicite também a apreciação das normas
revogadas que, eventualmente, possam vir a ser repristinadas.
5.2 — No caso vertente, o Provedor de Justiça incluiu no âmbito do pedido de
declaração de inconstitucionalidade as normas revogadas pelo artigo 12.º do
Decreto-Lei n.º 332/91, as quais serão repristinadas, nos termos do artigo
282.º, n.º 1, da Constituição, na hipótese de o Tribunal declarar a
inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas constantes daquele
diploma legal. Ora, em situações destas, nas quais é o próprio requerente a
solicitar, a título subsidiário e cumulativo, a apreciação e a declaração de
inconstitucionalidade das normas revogadas pelas normas cuja declaração de
inconstitucionalidade é pedida, a título principal, com o objectivo de evitar a
sua repristinação, nenhum obstáculo processual existe ao conhecimento da
eventual inconstitucionalidade de tais normas. Um tal conhecimento da
conformidade com a Constituição das normas apontadas não implica, nas referidas
situações, qualquer desrespeito do princípio do pedido — princípio esse cuja
observância é imposta ao Tribunal Constitucional pelos n.os 1 e 5 do artigo 51.º
da Lei do Tribunal Constitucional nos processos de fiscalização abstracta da
constitucionalidade e da legalidade.
5.3 — Chegados a este ponto, está o Tribunal em condições de afirmar que o
objecto do presente processo de fiscalização sucessiva de constitucionalidade
abrange, a título principal, as normas constantes dos artigos 1.º a 11.º do
Decreto-Lei n.º 332/91, de 6 de Setembro, e, a título, subsidiário e cumulativo,
as normas revogadas pelo artigo 12.º daquele diploma legal. A natureza
subsidiária desta última parte do pedido resulta, como facilmente se percebe, da
circunstância de o conhecimento da questão da constitucionalidade das normas
revogadas pelo artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 332/91 estar dependente da
declaração de inconstitucionalidade das normas deste diploma legal.
6 — O actual quadro jurisprudencial e doutrinário em matéria de indemnizações
por nacionalização.
Antes de apreciar e decidir as questões de constitucionalidade colocadas a este
Tribunal no requerimento do Provedor de Justiça, é de primordial importância
traçar o actual quadro jurisprudencial e doutrinário em matéria de indemnizações
por nacionalização, tarefa que passa pela indicação das linhas gerais do Acórdão
n.º 39/88, no qual foram analisadas várias questões relacionadas com a
indemnização por nacionalização, por uma referência às reacções doutrinárias
suscitadas por aquele aresto e, finalmente, por uma alusão a alguns acórdãos
tirados pelo Supremo Tribunal Administrativo e pelo Tribunal Constitucional
sobre os artigos 14.º, 15.º e 16.º, n.º 6, da Lei n.º 80/77, de 26 de Outubro
(na sua versão originária e na redacção do Decreto-Lei n.º 343/80, de 2 de
Setembro), e 24.º do Decreto-Lei n.º 51/86, de 14 de Março, respeitantes ao
princípio da reserva do juiz no domínio das indemnizações por nacionalização.
6.1 — Como é do conhecimento geral, procedeu-se, no nosso país, após a Revolução
de 25 de Abril de 1974, à nacionalização de um significativo número de empresas.
O processo iniciou-se, em meados de 1974, com a nacionalização dos bancos
emissores (Banco de Angola, Banco Nacional Ultramarino e Banco Portugal,
respectivamente, pelos Decretos-Leis n.os 450/74, 451/74 e 452/74, todos de 15
de Maio) e foi encerrado com a nacionalização de vários meios de comunicação
social (Sociedades Nacional de Tipografia, Industrial de Imprensa e Gráfica de A
Capital, S.A.R.L., e a Empresa Nacional de Publicidade), pelo Decreto-Lei n.º
639/76, de 29 de Julho.
Não se vai, por razões compreensíveis, fazer aqui o elenco das empresas objecto
de nacionalização (a lista das nacionalizações operadas entre aquelas duas datas
— 15 de Maio de 1974 e 29 de Julho de 1976 — pode, aliás, ser consultada no
Acórdão n.º 39/88 e, bem assim, em F. Pinto Bronze, «As Indemnizações em Matéria
de Nacionalizações», in Revista de Direito e Economia, ano ii, n.º 2, pp. 47 e
segs.). Dir-se-á apenas, para se ficar com uma ideia global do alcance do
movimento nacionalizador, que foram nacionalizadas a quase totalidade das
empresas dos sectores bancário e dos seguros, dos petróleos, petroquímica,
siderurgia, electricidade, celulose, adubos e cimentos, transportes aéreos,
marítimos e fluviais, ferroviários e terrestres, tabacos e da comunicação social
(televisão, principais estações de rádio e alguns jornais diários) e, bem assim,
outras empresas dispersas por vários sectores de actividade, tais como as
cervejas, os vidros e os estaleiros navais.
O decreto-lei foi a forma utilizada para as nacionalizações.
Nos diplomas nacionalizadores eram indicadas as razões que motivaram, em cada
caso, aquele acto ablativo. Mas, no seu conjunto, pode afirmar-se que o
movimento nacionalizador obedeceu a uma filosofia político-económica de cariz
colectivista e socialista, levada à prática num contexto revolucionário (cfr. A.
Carlos Santos-M. Eduarda Gonçalves-M. M. Leitão Marques, Direito Económico,
Coimbra, Almedina, 1991, pp. 160-161; e M. Afonso Vaz, Direito Económico, 3.ª
ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1994, p. 181).
Do processo nacionalizador foram excluídas, em geral (designadamente, no sector
financeiro), as empresas estrangeiras, bem como as participações estrangeiras,
tendo aquelas, por isso, continuado a existir e a operar, mesmo nos sectores
que, posteriormente, vieram a ser definidos como vedados à iniciativa privada.
Traço peculiar das nacionalizações portuguesas — e que espelha bem a «ambience»
política e social em que elas ocorreram — é constituído pela ausência nos
diplomas legais que decretaram aquelas medidas privativas da propriedade —
anteriores, quase todos eles, à Constituição de 1976 — da indicação dos
critérios de determinação das indemnizações aos titulares dos direitos
nacionalizados. Em todos eles, foi reconhecido o direito à indemnização dos
titulares do capital das empresas nacionalizadas, mas foi relegada para
legislação posterior a fixação dos critérios de cálculo do quantum
indemnizatório.
A nota acabada de assinalar constitui uma marca (de entre várias) distintiva das
nacionalizações realizadas em Portugal no período de 1974/1976 em relação às que
tiveram lugar, por exemplo, em consequência da Lei Francesa de Nacionalização
n.º 82-155, de 11 de Fevereiro de 1982 — lei esta que continha critérios
precisos de determinação da indemnização (os quais foram aperfeiçoados em
consequência da decisão do 10 de Janeiro de 1982 do Conselho Constitucional).
Cfr. L’Actualité Juridique, Droit Administratif (AJDA), n.º 38 (1982), pp. 202 e
segs., e Nota de Jean Rivero, ibidem, pp. 209 e segs.
Paralelamente ao processo de nacionalizações de empresas, desenvolveu-se o
fenómeno da reforma agrária, a qual foi iniciada com a ocupação de vastas
extensões de terra.
6.2 — Como já foi referido, as nacionalizações foram feitas, entre nós, na quase
totalidade, antes da promulgação da Constituição de 1976. Ora, esta consagrou,
no seu artigo 82.º, n.º 1, o direito de indemnização por nacionalização, ao
estatuir que «a lei determinará os meios e as formas de intervenção e de
nacionalização e socialização de meios de produção, bem como os critérios de
fixação de indemnizações». É certo que o n.º 2 deste preceito abria a
possibilidade de a lei determinar que as expropriações de latifundiários e de
grandes proprietários e empresários ou accionistas não dessem lugar a qualquer
indemnização. Mas esta faculdade de exclusão da indemnização, para além de ter
sido eliminada na 1.ª Revisão Constitucional (1982), nunca foi utilizada pelo
legislador ordinário.
Foi neste quadro — e também na lógica do reconhecimento do direito de
indemnização aos proprietários de bens ou direitos nacionalizados constante dos
vários diplomas que decretaram as nacionalizações — que viu a luz do dia a Lei
n.º 80/77, de 26 de Outubro (alterada pelo Decreto-Lei n.º 343/80, de 2 de
Setembro, por sua vez ratificado, com alterações, pela Lei n.º 36/81, de 31 de
Agosto), a qual veio consagrar os direitos de indemnização a atribuir aos
ex-accionistas, ex-sócios ou ex-proprietários de bens económicos nacionalizados,
os quais foram regulamentados em diplomas subsequentes quanto a metodologias e
parâmetros a ter em conta no cálculo do valor a indemnizar. Antes, porém, já o
Decreto-Lei n.º 528/76, de 7 de Julho, tinha vindo estabelecer critérios para o
cálculo e pagamento das indemnizações devidas pelas nacionalizações.
Entretanto, com a 2.ª Revisão Constitucional (1989), o artigo 82.º da
Constituição passou a 83.º, com o seguinte conteúdo: «A lei determinará os meios
e as formas de intervenção e de apropriação colectiva dos meios de produção e
solos, bem como os critérios de fixação da correspondente indemnização». Foi já
no domínio da actual versão do artigo 83.º da Lei Fundamental que viu a luz do
dia o Decreto-Lei n.º 332/91, de 6 de Setembro (aprovado no uso de autorização
legislativa concedida pela Lei n.º 40/91, de 27 de Julho), cujas normas são
impugnadas no requerimento do Provedor de Justiça.
6.3 — As grandes linhas do Acórdão n.º 39/88, no qual o Tribunal Constitucional
se debruçou sobre alguns pontos do regime jurídico das indemnizações por
nacionalização, consagrado nos diplomas que antecederam o Decreto-Lei n.º
332/91, podem ser epitomadas nas seguintes proposições:
a) No plano constitucional, e no que concerne ao direito à indemnização,
existem sensíveis diferenças de regime entre o instituto da nacionalização —
acto ablativo do Estado que incide sobre empresas, entendidas como uma unidade e
uma universalidade (constituída por bens imóveis, móveis, direitos incorpóreos,
etc.), transferindo-as da propriedade privada para a propriedade pública, e do
qual resulta um alargamento do sector público dos meios de produção — e o da
expropriação — com o qual se pretende que um bem individualizado seja afecto a
um fim específico de utilidade pública ou de interesse público e que se traduz
numa modificação de situações jurídicas singulares, sem que haja uma alteração
estrutural do sistema jurídico relativo ao domínio dos bens [cfr. F. Alves
Correia, As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública,
Coimbra, 1982, pp. 49-59; os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 11/84
(publicado no Diário da República, II Série, de 8 de Maio de 1984) e 39/88; e
André de Laubadère/Pierre Delvolvé, Droit Public Économique, 5.ª ed., Paris,
Dalloz, 1986, pp. 727-728].
Enquanto a indemnização por expropriação encontra o seu fundamento no artigo
62.º, n.º 2, da Constituição («a requisição e a expropriação por utilidade
pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa
indemnização» — repare-se que a 2.ª Revisão Constitucional eliminou o inciso
«fora dos casos previstos na Constituição»), a indemnização por nacionalização
alicerça-se no artigo 82.º (hoje, artigo 83.º).
b) A indemnização por nacionalização não tem que obedecer às mesmas
características da indemnização por expropriação.
Se a Constituição impõe para o acto expropriativo uma compensação completa,
total ou integral do dano suportado pelo expropriado (é este seguramente o
sentido principal da expressão «justa indemnização» — cfr. F. Alves Correia, O
Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, Almedina, 1990, pp. 532 e
segs., Formas de Pagamento da Indemnização na Expropriação por Utilidade Pública
— Algumas Questões, Coimbra, 1991, pp. 16-18, e Código das Expropriações e Outra
Legislação sobre Expropriações por Utilidade Pública — Introdução, Lisboa,
Aequitas/Diário de Notícias, 1992, pp. 20-25), já o mesmo não sucede com a
indemnização por nacionalização: para esta não é exigida uma full composition,
basta apenas uma indemnização razoável ou aceitável (não meramente irrisória ou
simbólica), que cumpra as exigências mínimas de justiça que vão implicadas na
ideia de Estado de Direito.
De igual modo, se a expressão «mediante o pagamento» de justa indemnização por
expropriação, inserta no artigo 62.º, n.º 2, da Constituição, exige uma paridade
temporal entre a aquisição pelo expropriante do bem e o pagamento da
indemnização ao expropriado, impedindo que entre estes dois momentos se
intercale um lapso temporal de certa duração — o que levará a que o pagamento da
indemnização seja, pelo menos, contemporâneo à expropriação — [cfr., sobre este
tema, F. Alves Correia, Formas de Pagamento, cit., pp. 41 e segs., e Código das
Expropriações, cit., pp. 14, 26 e 27, e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
108/92 (publicado no Diário de República, II Série, de 15 de Julho de 1992)], já
na indemnização por nacionalização não vale princípio tão exigente, sendo o
princípio da justiça, que deve reger o dever de indemnizar, perfeitamente
compatível com formas de pagamento diferido, como, por exemplo, a entrega de
títulos de dívida pública livremente negociáveis e amortizáveis em prazos
razoáveis.
c) São inconstitucionais, por violação dos artigos 82.º e 29.º, n.os 1 e 3, da
Constituição (versão de 1982), as normas do artigo 3.º, n.os 1, alíneas a) e b),
e 2, da Lei n.º 80/77, na medida em que exceptuam do direito a indemnização os
ex-sócios ou ex-accionistas de empresas nacionalizadas, os ex-proprietários e
outros titulares de direitos sobre bens nacionalizados ou expropriados que se
encontrem nalguma das situações nelas descritas, isto é, que tenham praticado
actos dolosos ou gravemente culposos no exercício de funções empresariais ou que
tenham beneficiado daqueles actos, de modo directo ou indirecto, em termos que
permitam indiciar co-autoria material ou moral, cumplicidade ou encobrimento.
d) Não são inconstitucionais as normas [constantes dos artigos 2.º, n.º 3, 3.º
e 4.º do Decreto-Lei n.º 528/76, de 7 de Julho, do artigo 14.º da Lei n.º 80/77
(com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 343/80, de 2 de Setembro) e das
Portarias n.os 786-A/77, de 23 de Dezembro, e 610/78, de 7 de Outubro] que
versam sobre o modo de determinar o valor de cada acção ou parte de capital das
empresas nacionalizadas, para o efeito de indemnização definitiva — valor esse
que é fixado por despacho do Ministro das Finanças em relação a cada empresa —
que toma por base o valor contabilístico da empresa (a que cabe a ponderação de
0,85) — um valor «real» determinado por exame à escrita da empresa nacionalizada
— e o valor de cotação (a que corresponde a ponderação de 0,15) — um valor que é
o resultante da média ponderada das cotações máximas e mínimas durante cada um
dos anos de um período de dez imediatamente anteriores a 24 de Abril de 1974 (se
as acções não tiverem sido cotadas durante todo este período, a média apurada é
objecto de ajustamentos segundo critérios a fixar com base no índice de cotação
e, tratando-se de empresas sem acções cotadas, o valor de cotação é substituído
pelo valor de rendibilidade) —, porque os valores resultantes de aplicação dos
critérios nela referidos não resultam em valores irrisórios, nem manifestamente
desproporcionados ao valor dos bens nacionalizados.
e) As normas constantes do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 528/76 e dos artigos
19.º e 20.º da Lei n.º 80/77, que disciplinam o modo de pagamento das
indemnizações por nacionalização — o qual é feito mediante a entrega ao
respectivo titular, pelo Estado, de títulos de dívida pública, distribuídos por
doze classes (I a XII), consoante o menor ou maior valor global da indemnização
a pagar, e correspondendo a cada uma dessas classes prazo de amortização e de
diferimento progressivamante mais longo e taxa de juro decrescente — não são
inconstitucionais, porque o artigo 82.º (hoje artigo 83.º) da Constituição não
impõe que a lei fixe um critério único, válido para todo o tipo de casos em que
são devidas indemnizações por nacionalizações de bens, antes permite ao
legislador o estabelecimento de critérios diferentes que, inclusive, dêem relevo
ao tipo e ao montante dos bens nacionalizados. Elas não infringem também o
princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º da Constituição).
É, por isso, constitucionalmente legítimo ao legislador fixar prazos de
amortização e de diferimento diferentes e taxas de juro também diferentes em
função do montante global a pagar (prazos maiores e taxas de juro mais baixas,
para as indemnizações de valor global mais elevado; e prazos mais curtos e taxas
de juro mais elevadas, para as indemnizações de menor montante). Do mesmo modo,
no plano constitucional, nada obsta a que os pequenos accionistas sejam
indemnizados em dinheiro e os restantes recebam títulos de dívida pública.
f) As taxas de juros dos títulos da dívida pública — que vão de 13% para a
classe I a 2,5% para a classe XI —, apesar de se situarem abaixo (nalguns casos,
mesmo bastante abaixo) das que são praticadas no mercado monetário e financeiro,
não conduzem a uma indemnização manifestamente desproporcionada ou irrisória,
pelo que não enfermam de inconstitucionalidade as normas que determinam tais
taxas.
Essas taxas de juro — inferiores às praticadas no mercado monetário e financeiro
— originam uma progressiva desvalorização dos montantes indemnizatórios
calculados. Mas não se pode olvidar que um tal efeito é minorado pela
possibilidade que têm os titulares do direito de indemnização proveniente de
nacionalização de transaccionarem os títulos e de os mobilizarem antecipadamente
— mobilização que só é, no entanto, permitida ao titular originário ou aos seus
herdeiros. E minorado ainda no caso de mobilização antecipada, porque,
conquanto a «mobilização» se faça, em regra, pelo valor de «actualização», e não
pelo valor nominal, aquela actualização é feita à taxa de juro correspondente à
da classe I: 13%.
g) Não colidem com o princípio constitucional da igualdade as normas
[constantes dos artigos 22.º e 39.º da Lei n.º 80/77 (o primeiro na redacção do
Decreto-Lei n.º 343/80, de 2 de Setembro, e da Lei n.º 36/81, de 31 de Agosto),
dos artigos 1.º a 4.º do Decreto-Lei n.º 31/80, de 6 de Março, e do artigo único
do Decreto-Lei n.º 195/79, de 29 de Junho] que estabelecem um regime de
indemnização por nacionalização mais favorável para as misericórdias e outras
instituições privadas de solidariedade social, as fundações, as cooperativas e
as congregações e associações religiosas — a quem são atribuídas sempre títulos
de classe I — e para as pessoas singulares ou colectivas de nacionalidade
estrangeira — a quem, em certos casos, poderão ser entregues títulos
pertencentes a classe diferente da que lhes caberia em função do montante global
a receber —, porque elas não são arbitrárias, nem irrazoáveis, antes têm um
fundamento material bastante. O fundamento da discriminação das entidades do
primeiro grupo encontra-se na «natureza dos fins» por elas prosseguidas; o
fundamento do tratamento de favor das pessoas singulares e colectivas de
nacionalidade estrangeira reside no empenho do Estado na captação dos
investimentos estrangeiros que contribuam para o desenvolvimento do País (artigo
86.º da Constituição, na versão de 1982, hoje artigo 88.º), no estatuto pessoal
diferenciado dos estrangeiros e no princípio da solução pacífica dos conflitos
internacionais (artigo 7.º, n.º 1, da Constituição).
h) O artigo 16.º da Lei n.º 80/77 (redacção do Decreto-Lei n.º 343/80) — que
prevê a possibilidade de os litígios relativos à titularidade do direito à
indemnização, à sua fixação, liquidação e efectivação serem resolvidos por
comissões arbitrais (uma por cada empresa ou bem nacionalizado ou expropriado),
cujas decisões carecem de homologação do Ministro das Finanças, havendo recurso
para o Supremo Tribunal Administrativo dos despachos ministeriais que recaiam
sobre elas — não viola o princípio da garantia do recurso contencioso [artigo
269.º, n.º 2, da Constituição (versão de 1976); 268.º, n.º 3 (versão de 1982); e
268.º, n.º 4 (versão de 1989)].
Escreveu-se, a propósito, no aresto cujas traves mestras vêm sendo indicadas:
O Ministro das Finanças só haverá de decidir-se pela não homologação da decisão
de uma comissão arbitral quando esta não respeitar os critérios legais. E, ao
fazê-lo, fundamentará a sua decisão, tal como quando o despacho for
homologatório (cfr. artigo 268.º, n.º 2, da Constituição e artigo 1.º do
Decreto-Lei n.º 256-A/77, de 17 de Junho).
A ser assim, como parece, não se vê como o recurso a interpor do despacho
ministerial deva restringir-se à invocação de desvio de poder. Haja o Ministro
homologado ou não a decisão da comissão arbitral, sempre o recurso haverá de
poder fundamentar-se em outros vícios de que o acto administrativo acaso padeça.
É certo que, sendo o recurso em causa um recurso de mera legalidade, as
possibilidades que o Supremo Tribunal Administrativo tem de avaliar a correcta
ou incorrecta aplicação dos critérios legais de determinação dos valores das
indemnizações — e, assim, de anular o despacho impugnado — são, naturalmente,
mais limitadas do que se se tratasse de um recurso de plena jurisdição: só
quando se prove a ilegalidade dos métodos adoptados ou dos critérios utilizados
na avaliação é que a anulação é possível.
Nada disto, porém, afecta a garantia do recurso contencioso, consagrada no
artigo 268.º, n.º 3, da Constituição, quando preceitua:
Artigo 268.º
[…]
..........................................................................................
É garantido aos interessados recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade,
contra quaisquer actos administrativos definitivos e executórios,
independentemente da sua forma, bem como para obter o reconhecimento de um
direito ou interesse legalmente protegido.
Na verdade, como este Tribunal já decidiu por mais de uma vez, seguindo a
Jurisprudência da Comissão Constitucional, «a garantia de recurso contencioso
tem por conteúdo a possibilidade de acesso aos tribunais para defesa dos
direitos. O que se quer é «fazer valer de forma expressa para os actos
administrativos definitivos e executórios […] a doutrina geral consignada pela
parte primeira do artigo 20.º, quando dispõe que ‘a todos é assegurado o acesso
aos tribunais para defesa dos seus direitos […]’. Garante-se aí aos
interessados a possibilidade de impugnação dos actos administrativos viciados»
(cfr. Acórdão n.º 86/84, in Diário da República, II Série, de 2 de Fevereiro de
1985, e no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 354, pp. 229 e segs.).
Ora, seja qual for o fundamento que, para impugnação do despacho ministerial, os
particulares possam invocar, e bem assim as possibilidades de que disponha a
jurisdição administrativa para sindicar o acto impugnado, uma coisa é certa: o
acesso à via judicial para atacar um acto administrativo eventualmente viciado
aí está. Mas, mais de que isso: os particulares podem, como já se mostrou,
lançar mão da via judicial, não já para atacar o despacho do Ministro que
homologou ou não a decisão da comissão arbitral, a que decidiram recorrer, mas
sim para, nessa sede, serem decididas as questões suscitadas pela titularidade
do direito à indemnização, pela sua fixação, liquidação e efectivação.
6.4 — O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 39/88, que teve um voto de
vencido do então Juiz e hoje Presidente do Tribunal Constitucional J. M. Cardoso
da Costa, foi depois fustigado por várias críticas. Nesse voto de vencido,
foram tidas por inconstitucionais as normas que mandam atender a um período de
dez anos no cálculo do valor de cotação ou do valor de rendibilidade das acções
ou partes de capital nacionalizadas, e que constam dos n.os 1 dos artigos 3.º e
4.º do Decreto-Lei n.º 528/76, e por remissão para estes, do artigo 14.º da Lei
n.º 80/77, e às quais a Portaria n.º 786-A/77 veio dar execução, no tocante às
acções cotadas, por ser manifestamente excessivo, e, bem assim, a norma do
artigo 19.º da Lei n.º 80/77, relativa ao sistema de pagamento das
indemnizações, que escalona os títulos de indemnização em função de prazos de
amortização e de diferimento e de taxas de juro diversos, a qual estabelece
«excessivas» desigualdades de tratamento e conduz, em alguns escalões, a
indemnizações desrazoáveis e desproporcionadas.
Estas críticas foram sobretudo lançadas por José Oliveira Ascensão, Diogo
Freitas do Amaral e Marcelo Rebelo de Sousa.
Contestou-se, em primeiro lugar, que a indemnização prevista no artigo 82.º da
Constituição (hoje artigo 83.º) possa ser diferente da justa indemnização do
artigo 62.º, n.º 2, afirmando-se que «toda a indemnização tem por sua natureza
compensar o valor substancial que foi subtraído ao particular», princípio que
tanto é aplicável à indemnização por expropriação, como à indemnização por
nacionalização [cfr. J. Oliveira Ascensão, «Nacionalizações e
Inconstitucionalidade — Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
39/88», in Estudos sobre Expropriações e Nacionalizações, Lisboa, INCM, 1989,
pp. 236 e segs., e D. Freitas do Amaral, «Indemnizações por Nacionalização em
Portugal», in Revista da Ordem dos Advogados, n.º 49 (1989), pp. 54-55, e
«Indemnização Justa ou Irrisória?», in Direito e Justiça, vol. V (1991), pp.
64-65]. Considerou-se, em segundo lugar, excessivo o período de 10 anos (de 1
de Janeiro de 1964 a 24 de Abril de 1974) utilizado para o cálculo do valor de
cotação ou do valor de rendibilidade das acções ou partes de capital
nacionalizadas e chamou-se a atenção para a circunstância de o Conselho
Constitucional francês ter qualificado de demasiado longo o período de três anos
(1 de Janeiro de 1978 e 31 de Dezembro de 1980) anteriores à nacionalização para
apuramento da média das cotações na bolsa das acções nacionalizadas, tendo o
legislador, após a revisão da lei, aproximado mais esse período da data da
nacionalização (o período passou a ser de 1 de Outubro de 1980 a 31 de Março de
1981). Cfr. Franck Moderne, «L’Exemple des Nationalisations Françaises de 1982»,
in Direito e Justiça, vol. v (1991), pp. 17-21; e D. Freitas do Amaral,
Indemnizações por Nacionalização, cit., pp. 63-64, e Indemnização Justa ou
Irrisória?, cit., pp. 63-65. Em terceiro lugar, reputaram-se de infundadas as
discriminações entre as várias situações dos ex-proprietários a indemnizar e
entre cidadãos nacionais e estrangeiros (cfr. D. Freitas do Amaral, Indemnização
Justa ou Irrisória?, cit., pp. 65-67). Em quarto lugar, profligou-se a solução
legal de atribuir a um órgão de Administração — o Ministro das Finanças — o
poder de fixar os valores definitivos das indemnizações por nacionalização,
dizendo-se que esta é uma matéria que entra no domínio da reserva da função do
juiz (é um acto materialmente jurisdicional), sendo, por isso, inconstitucionais
as normas dos artigos 14.º, 15.º e 16.º, n.º 6, da Lei n.º 80/77, de 26 de
Outubro, na redacção do Decreto-Lei n.º 343/80, de 2 de Setembro. Cfr. M.
Rebelo de Sousa, «As Indemnizações por Nacionalização e as Comissões Arbitrais
em Portugal», in Revista da Ordem dos Advogados, n.º 49 (1989), pp. 371 segs., e
«Comissões Arbitrais, Indemnizações e Privatizações», in Direito e Justiça, vol.
v (1991), pp. 93-97. Por fim, sustentou-se que o recurso contencioso de
anulação do despacho do Ministro das Finanças que fixa o valor definitivo das
indemnizações por nacionalizações não constitui uma garantia suficiente de
protecção dos direitos dos indemnizandos, já que o Supremo Tribunal
Administrativo não tem poderes de plena jurisdição (cfr. D. Freitas do Amaral,
Indemnização Justa ou Irrisória, cit., pp. 68-69, e M. Rebelo de Sousa, As
Comissões Arbitrais, cit., p. 93).
6.5 — A respeito das normas constantes dos artigos 14.º e 15.º da Lei n.º 80/77,
na sua versão originária, dos artigos 14.º, 15.º e 16.º, n.º 6, da mesma lei, na
redacção decorrente do Decreto-Lei n.º 343/80, de 2 de Setembro, e do artigo
24.º do Decreto-Lei n.º 51/86, de 14 de Março, que conferem ao Ministro das
Finanças competência para fixar por despacho o montante definitivo da
indemnização por nacionalização, elaborou o Supremo Tribunal Administrativo uma
jurisprudência largamente predominante (embora não uniforme), que vai no sentido
de aquele acervo normativo enfermar de inconstitucionalidade, por violação do
princípio da reserva do juiz, condensado nos artigos 205.º e 206.º da
Constituição (na versão de 1982) e no artigo 205.º, n.os 1 e 2, do mesmo Diploma
Básico (versão de 1989). Na decorrência de um tal juízo de
inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Administrativo declarou nulos, em
múltiplos arestos, por vício de usurpação de poder, vários despachos do Ministro
das Finanças que fixaram o valor de cada acção ou parte de capital,
relativamente a cada empresa, para efeitos de indemnização definitiva.
O Acórdão da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo de 27 de Setembro de
1990 [publicado em O Direito, 123 (1991), pp. 443 e segs.)] sintetizou, em
termos claros, a jurisprudência daquele órgão jurisdicional sobre a referida
problemática.
No referido aresto, historiou-se a jurisprudência do Supremo Tribunal
Administrativo nos seguintes termos:
Nos Acórdãos da Secção de 4 de Dezembro de 1980 (proferido no recurso n.º 14
716) e de 4 de Novembro de 1982 (Apêndice ao Diário da República, p. 3881),
decidiu-se que os artigos 15.º e 16.º da Lei n.º 80/77, de 26 de Outubro, ao
conferirem à Administração a fixação do valor da indemnização devida pela
nacionalização e expropriação de prédios ao abrigo da legislação sobre reforma
agrária, são materialmente inconstitucionais, por contrariarem o disposto nos
artigos 20.º, n.º 2, 205.º e 206.º da Constituição da República Portuguesa:
estes acórdãos foram confirmados pelos Acórdãos do tribunal pleno de 15 de
Dezembro de 1987 (Acórdãos Doutrinais, n.º 319, p. 946) e de 23 de Fevereiro de
1988 (Apêndice ao Diário de República, p. 90, onde está incorrectamente indicada
a data do Acórdão como sendo de 29 de Janeiro de 1987).
Esta orientação foi reafirmada no recente Acórdão deste Tribunal de 3 de Julho
do corrente ano, proferido no recurso n.º 26 288, relativamente ao mencionado
artigo 16.º da Lei n.º 80/77 (na redacção do artigo único do Decreto-Lei n.º
343/80, de 2 de Setembro) e ao artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 51/86, de 14 de
Março, sendo, no entanto, de sinal contrário o Acórdão de 26 de Junho do
corrente ano, proferido no recurso n.º 25 553, que considerou não serem
inconstitucionais as normas dos artigos 15.º e 16.º da Lei n.º 80/77 e do artigo
24.º do Decreto-Lei n.º 51/86.
Quanto à distinção entre a função jurisdicional e a função administrativa,
depois de se referir ser muito difícil uma tal tarefa, considerou-se, no citado
acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, «não ser bastante recorrer, para o
entendimento da função jurisdicional, ao substrato de ordem material relacionado
com a composição de conflitos de interesses ou pretensões, uma vez que a
Administração, na prossecução de interesses públicos, também procede a tal
composição, carecendo, pois, o mencionado substrato de ser completado com
elementos de outra ordem», e acentuou-se que «esses elementos seriam, no que
respeita à função jurisdicional, o fim específico inerente à realização do
direito ou da justiça, ou a actuação de um órgão imparcial na resolução do
conflito de interesses, podendo mesmo haver uma certa conjugação entre estas
duas ideias, nenhuma das quais se verifica na função administrativa»,
concluindo-se do seguinte modo:
Na realidade, estando consumada a nacionalização da instituição de crédito em
causa — e cumprido desse modo o interesse público inerente a tal nacionalização
—, e tratando-se agora, portanto, apenas da determinação do valor da
indemnização devida aos ex-titulares de acções ou outras partes do capital da
citada empresa, estão nesse ponto a Administração e esses ex-titulares colocados
no mesmo plano, a primeira como devedora e os últimos como credores de tal
indemnização.
Nessas circunstâncias, a composição do conflito de interesses daí resultante tem
necessariamente de ser atribuída a um órgão integrado na função jurisdicional,
ou seja, um órgão imparcial, cujo fim específico seja a realização do direito ou
da justiça.
E, com toda a evidência, não está nessas condições a Administração, como parte
interessada na resolução de tal conflito.
Deste modo, o artigo 14.º da Lei n.º 80/77 (na redacção do Decreto-Lei n.º
343/80), ao atribuir ao Ministro das Finanças e do Plano o poder de, por acto
autoritário, determinar o valor de cada acção ou parte de capital de empresa
nacionalizada, é materialmente inconstitucional por contrariar o disposto nos
n.os 1 e 2 do artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa (versão
resultante da revisão constitucional de 1989, pois anteriormente àqueles números
correspondiam, respectivamente, os artigos 205.º e 206.º da Constituição).
Tem, assim, o tribunal de recusar a aplicação do mencionado artigo 14.º, em
obediência ao disposto no artigo 207.º da Constituição, do que resulta que o
acto contenciosamente impugnado fica sem suporte legal: e como esse acto invadiu
a esfera das atribuições dos tribunais, está o mesmo inquinado pelo vício de
usurpação de poder, que, conforme já atrás se disse, conduz à sua nulidade e
prejudica o conhecimento das outras questões suscitadas pelos recorrentes.
6.6 — A orientação adoptada pelo Supremo Tribunal Administrativo quanto à
questão da constitucionalidade das normas acima identificadas não mereceu,
contudo, o aval do Tribunal Constitucional. De facto, no Acórdão n.º 280/89
(publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Junho de 1989), tirado na
1.ª Secção deste Tribunal, considerou-se que, intervindo os Ministros das
Finanças e da Agricultura e Pescas, ao abrigo dos artigos 15.º e 16.º da Lei n.º
80/77, no texto primitivo, «numa etapa do processo de nacionalização e
expropriação dos prédios situados na zona de intervenção da reforma agrária em
que, ao menos em termos decisivos, não existia ainda uma co-implicação efectiva
do interesse público e do interesse privado, numa ocasião, em última análise, em
que não emergira ainda um real conflito de interesses na determinação da
compensação indemnizatória, em que o que sobrelevava era a realização do
interesse público à nacionalização e expropriação daqueles prédios em todas as
fases desse complexo processo, necessariamente se haverá de concluir que, desta
sorte, se não tinha cometido então àqueles Ministros o exercício da função
jurisdicional». Após referir que os artigos 15.º e 16.º da Lei n.º 80/77, na
sua redacção originária, não autorizavam a Administração, através dos Ministros
das Finanças e da Agricultura e Pescas, a introduzir-se por entre a função
jurisdicional, acentuou-se naquele aresto que «a determinação indemnizatória,
contemplada naqueles preceitos, situava-se antes num plano pré-jurisdicional».
Por sua vez, no Acórdão n.º 317/89 (publicado no Diário de República, II Série,
de 16 de Junho de 1989), da 2.ª Secção do Tribunal Constitucional, vincou-se que
a fixação do valor da indemnização definitiva devida pela nacionalização e
expropriação de prédios ao abrigo da legislação sobre reforma agrária pode ser
objecto do despacho dos ministros das Finanças e da Agricultura e Pescas,
previsto no artigo 15.º da Lei n.º 80/77, uma vez que, «ao fixar-se esse valor,
ainda se está a prosseguir o interesse público subjacente ao acto de
nacionalização ou expropriação ou, por outras palavras, ainda se está no domínio
da função administrativa. Ponto é que a lei não exclua o recurso aos
tribunais».
7 — Caracterização geral do Decreto-Lei n.º 332/91, de 6 de Setembro.
Como já foi acentuado, a legislação específica em matéria de indemnizações por
nacionalização surgiu inicialmente com o Decreto-Lei n.º 528/76, de 7 de Julho,
que veio estabelecer os critérios para o cálculo e pagamento das referidas
indemnizações, em cumprimento do disposto nos diplomas legais que procederam à
nacionalização de diversas empresas. No entanto, só posteriormente foram
consagrados os direitos de indemnização a atribuir aos ex-titulares de bens
nacionalizados, através da Lei n.º 80/77, de 26 de Outubro (alterada pelo
Decreto-Lei n.º 343/80, de 2 de Setembro, ratificado com alterações pela Lei n.º
36/81, de 31 de Agosto), regulamentados em diplomas subsequentes quanto a
metodologias e parâmetros a ter em conta no cálculo do valor a indemnizar.
Enquadraram-se neste âmbito as especificações técnicas constantes dos cadernos
de encargos a que teriam de obedecer as entidades adjudicatárias da avaliação da
situação patrimonial das empresas nacionalizadas — instituições de crédito,
seguradoras e outras —, tarefa preparatória da determinação dos valores
definitivos das acções ou partes de capital daquelas empresas.
A resolução de quaisquer litígios relativos à titularidade do direito à
indemnização e à sua fixação, liquidação e efectivação podia ser feita com
recurso a comissões arbitrais, conforme a Lei n.º 80/77 (na redacção introduzida
pelo Decreto-Lei n.º 343/80, ratificado pela Lei n.º 36/81). Todavia, entendeu
o legislador, no exórdio do Decreto-Lei n.º 332/91, que «as interpretações dos
órgãos jurisdicionais quanto à natureza deste regime e os elementos constantes
da fundamentação de algumas decisões apresentadas por comissões arbitrais, que
têm vindo a ser constituídas ao abrigo do normativo citado e segundo as regras
de funcionamento dispostas no Decreto-Lei n.º 51/86, de 14 de Março, alertam
para a necessidade de serem clarificadas, formalmente rectificadas e mesmo
alteradas algumas disposições regulamentadoras desta matéria».
De harmonia com a nota preambular do Decreto-Lei n.º 332/91 — aprovado ao
abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 40/91, de 27 de Julho
—, são objectivos fundamentais daquele diploma, de um lado, a alteração do
«regime jurídico do processo calculatório das indemnizações conferidas aos
ex-titulares de direitos sobre os bens nacionalizados, consignando,
nomeadamente, o ajustamento de alguns critérios económicos», e, do outro lado, a
extinção da figura das comissões arbitrais, criando-se em sua substituição
«outro tipo de órgãos com uma natureza jurídica mais consentânea com as funções
consultivas que as comissões arbitrais têm vindo de facto a desempenhar».
O Decreto-Lei n.º 332/91 compõe-se de doze artigos, repartidos por quatro
capítulos: o Capítulo i é integrado pelos artigos 1.º a 7.º, nos quais são
definidos os novos critérios do cálculo do valor da indemnização por
nacionalização — critérios esses mais favoráveis para os titulares do direito à
indemnização, como se infere não apenas do seu cotejo com os consagrados na
legislação anterior, mas ainda da cláusula de garantia constante do artigo 8.º,
n.º 3, nos termos da qual a alteração do valor da indemnização já fixado em
consequência da aplicação dos novos critérios «não poderá conduzir a um valor
inferior ao anteriormente atribuído, pelo que nesse caso será este o fixado»; o
Capítulo ii, epigrafado «fixação do valor definitivo» (da indemnização), engloba
o artigo 8.º; o Capítulo iii, concernente às comissões mistas, abrange os
artigos 9.º a 11.º; finalmente, o Capítulo iv, intitulado «disposições
revogatórias», inclui o artigo 12.º
A problemática da constitucionalidade das normas do Decreto-Lei n.º 332/91, tal
como vem posta pelo requerente, pode reconduzir-se às seguintes três questões
jurídicas fundamentais: a primeira é a de saber se as normas respeitantes aos
critérios do cálculo do valor da indemnização por nacionalização infringem ou
não a garantia constitucional do direito de propriedade (artigo 62.º, n.º 1, da
Constituição) e o princípio constitucional da justa indemnização por
nacionalização, que, na tese do requerente, está condensado no artigo 62.º, n.º
2, da Lei Fundamental; a segunda consiste em averiguar se as normas relativas ao
processo de fixação do montante da indemnização, designadamente as que consagram
a competência do Ministro das Finanças para fixar por despacho o valor da
indemnização, bem como as que definem a composição, competências e funcionamento
das comissões mistas violam ou não o princípio da reserva da função
jurisdicional aos tribunais, plasmado no artigo 205.º, n.os 1 e 2, da
Constituição; e a terceira é a de apurar se os instrumentos de protecção
jurisdicional previstos (implicitamente) no Decreto-Lei n.º 332/91 são adequados
para garantir uma tutela jurisdicional eficaz dos direitos dos indemnizandos.
São estas três questões que de seguida vão ser analisadas pelo Tribunal. A
abordagem da problemática da conformidade com a Constituição das normas
revogadas pelo Decreto-Lei n.º 332/91 ficará dependente, como foi referido, do
destino que as normas daquele diploma legal tiverem quanto à sua
constitucionalidade.
8 — A questão da conformidade com a sua Constituição das normas respeitantes ao
cálculo de valor de indemnização por nacionalização (artigos 1.º a 7.º do
Decreto-Lei n.º 332/91).
É o seguinte o conteúdo das normas respeitantes ao cálculo do valor da
indemnização a atribuir aos titulares de acções ou partes de capital de empresas
nacionalizadas:
Artigo 1.º
O cálculo das indemnizações a atribuir aos titulares de acções ou partes de
capital de empresas nacionalizadas será apurado com base no valor do património
líquido da respectiva empresa, no valor das cotações a que as respectivas acções
hajam sido efectivamente transaccionadas na Bolsa de Valores de Lisboa, bem como
no valor da efectiva rendibilidade da empresa.
Artigo 2.º
O valor do património líquido de cada empresa será determinado a partir do
balanço de gestão, na data da nacionalização, ou, na sua falta, em 31 de
Dezembro de 1974, e, em ambos os casos, de acordo com as especificações técnicas
aprovadas pelas Resoluções do Conselho de Ministros n.os 243/80, de 11 de Julho,
e 40/82, de 10 de Março, e pela Resolução do Conselho de Ministros de 23 de Maio
de 1985, publicada no Diário da República, II Série, de 22 de Agosto, quanto à
avaliação patrimonial de empresas nacionalizadas, em tudo o que não contrarie o
disposto no presente diploma.
Artigo 3.º
1 — O valor a atribuir às participações financeiras detidas pelas empresas
nacionalizadas será o valor médio entre os resultados do balanço da participante
e do balanço da participada, reconduzido este último à situação líquida da
empresa.
2 — No caso de não ser possível obter os elementos necessários ao cálculo
referido no número anterior, manter-se-á o valor já fixado.
Artigo 4.º
Tratando-se de empresas que, à data da nacionalização, fossem detentoras de
concessões, serão consideradas, para efeito de valorização desses activos
incorpóreos, as disposições legais ou contratuais respectivas, ao tempo em
vigência, que previssem a entrega por parte do Estado de quaisquer compensações
pecuniárias por denúncia da situação contratual.
Artigo 5.º
1 — O valor de cotação de cada sociedade anónima será o que resultar da média
aritmética simples das cotações máximas e mínimas desses títulos ao portador em
cada ano civil e para os últimos cinco anos anteriores a 1975.
2 — Quando as acções não hajam sido cotadas para cada um dos cinco anos
referidos no número anterior, o valor de cotação não será considerado.
3 — Quando se trate de acções oferecidas à subscrição pública com pagamento de
prémio de emissão e que não hajam sido admitidas à cotação na bolsa, poderá ser
tomado em consideração, para efeito da determinação da componente C2, referida
na fórmula constante da norma contida no artigo 7.º, o valor da emissão.
4 — Sempre que, no período referido no n.º 1, o valor nominal das acções haja
sofrido alteração, serão introduzidas no cálculo adequadas ponderações, em ordem
a que todos os termos da sucessão cronológica das cotações fiquem referidas a
uma acção do valor nominal vigente à data da nacionalização.
5 — Quanto às empresas que hajam resultado de fusão operada nos últimos cinco
anos anteriores a 1975, a falta de valores de cotação das respectivas acções
para cada um dos anos anteriores àquele em que se operou a fusão será suprida
pela média aritmética ponderada das cotações das empresas envolvidas, usando
como pesos as percentagens dos respectivos capitais sociais na data da fusão, no
capital total.
Artigo 6.º
1 — O valor da efectiva rendibilidade será aferido pela média aritmética simples
dos resultados do exercício verificados nos últimos cinco anos anteriores a
1975, acrescidos da correspondente cotação anual para amortizações e
monetariamente corrigidos por aplicação dos coeficientes fixados na Portaria n.º
506/75, de 20 de Agosto, sendo que o mesmo período poderá ser reduzido até três
anos no caso de indisponibilidade de elementos.
2 — A taxa calculatória a aplicar à média encontrada, nos termos do número
anterior, para obtenção do valor de rendibilidade, será de 5%.
3 — Sempre que as empresas tenham tido duração inferior ao período de tempo
considerado no n.º 1, será ainda aplicado o disposto nos números anteriores,
recorrendo-se quer à anualização da aludida média quer à redução do período de
referência da mesma, que no caso limite poderá corresponder a um único ano.
4 — Caso tenham sido verificadas fusões de empresas, aplicar-se-á, com as
necessárias adaptações, o critério contemplado no n.º 5 do artigo 5.º
Artigo 7.º
1 — Para o cálculo do valor da indemnização a atribuir por cada acção ou parte
de capital adoptar-se-á a fórmula geral:
V=a1 Cl+a2 C2+a3 C3
2 — Aos símbolos mencionados no número precedente são atribuídos os seguintes
significados:
V = valor da indemnização por acção, ou parte de capital quando se trate de
empresas que não tenham revestido a forma de sociedade anónima;
Cl = valor que, para cada acção ou parte de capital, resulte do balanço especial
nos termos do artigo 2.º;
C2 = valor de cotação determinado de acordo com o artigo 5.º;
C3 = valor de rendibilidade determinado nos termos do artigo 6.º;
a1, a2 e a3 = coeficientes de ponderação fixados, respectivamente, em 60%, 20% e
20%.
3 — Sempre que não seja possível calcular C2 ou C3 o valor do coeficiente
respectivo será repartido em partes iguais pelos restantes; caso se verifique,
em simultâneo, a impossibilidade de cálculo dessas parcelas, a1 igualará a
unidade.
Segundo o Provedor de Justiça, «a Constituição não estabelece uma diferenciação
dogmática entre o instituto expropriativo e o instituto da nacionalização», pelo
que os critérios de fixação da indemnização correspondente à nacionalização
terão «que conduzir à atribuição de uma ‘justa indemnização’, em homenagem ao
direito de propriedade privada consagrado no artigo 62.º, n.º 1, da Lei
Fundamental». Na óptica da mesma entidade, ainda que se entenda que a garantia
constitucional da indemnização por nacionalização está prevista no artigo 83.º e
não no artigo 62.º, n.º 2, da Lei Básica, é seguro que aquele preceito
constitucional «não pode dissentir do critério nuclear da garantia da
propriedade privada que se exprime, além do mais, na hipótese de transferência
forçada de um bem privado para o Estado, numa conversão de valores patrimoniais,
através de justa indemnização», a qual «terá de conduzir à reposição actual no
património daquele que foi objecto de uma apropriação estatal dos seus bens do
respectivo valor integral».
Serão censuráveis, sob o ponto de vista constitucional, como defende o
requerente, as normas constantes dos artigos 1.º a 7.º do Decreto-Lei n.º
332/91, que estabelecem os critérios de determinação do montante da indemnização
por nacionalização? A resposta é negativa. Vejamos porquê.
8.1 — Não é pacífica na doutrina a distinção entre nacionalização e expropriação
— os dois actos ablativos mais importantes do direito de propriedade privada.
Assim, enquanto alguns autores consideram que existe uma distinção material
entre aqueles dois institutos, outros entendem que não é possível encontrar um
critério substancial de separação entre eles (cfr., sobre este ponto, o Acórdão
n.º 39/88 e a bibliografia aí citada).
É possível, no entanto, indicar algumas notas características da nacionalização,
que demarcam, em termos globais, este acto ablativo da expropriação. Assim, em
primeiro lugar, enquanto a expropriação tem, em regra, como objecto um bem
singular (um bem imóvel ou um direito a ele inerente, como sucede na
expropriação em sentido clássico — artigo 1.º do Código das Expropriações,
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro), a nacionalização incide
sobre empresas ou estabelecimentos, entendidos como uma universitas (constituída
por bens imóveis, móveis, direitos incorpóreos, etc.). Cfr., por todos, K.
Katzarov, The Theory of Nationalisation, The Hague, 1964, pp. 142-143; e A.
Carlos Santos-M. Eduarda Gonçalves-M. M. Leitão Marques, ob. cit., p. 162. Em
segundo lugar, sob o ponto de vista teológico, enquanto a expropriação tem como
finalidade afectar um bem a um fim específico de utilidade pública, de utilidade
geral ou de interesse público (v. g. a expropriação de um terreno para a
construção de uma obra pública), produzindo apenas uma alteração no domínio das
situações jurídicas singulares, a nacionalização tem como objectivo transferir
para o sector público uma ou várias empresas, de modo a que estas continuem a
exercer as suas actividades comerciais ou industriais, não já ao serviço do
interesse privado dos seus antigos proprietários, mas ao serviço do interesse
geral da colectividade, dando, assim, aos poderes públicos um instrumento de
direcção e de coordenação da economia [cfr. Pierre Bon, «Les Nationalisations
dans la Jurisprudence Constitutionelle de l’Europe de l’Ouest», Separata da
Revue Française de Droit Constitutionelle, n.º 17 (1994), p. 22]. As
nacionalizações são, deste modo, actos políticos que emanam de uma concepção
ideológica sobre o lugar e o papel das propriedades pública e privada dos bens
de produção na organização económica e que têm como objectivo um alargamento do
sector público dos meios de produção. Com a nacionalização, verifica-se, como
acentuam H. Wolff/O. Bachof a propósito da «socialização» (Vergesellschaftung ou
Sozialisierung), prevista no artigo 15.º da Lei Fundamental Alemã, uma mudança
estrutural na constituição económica (eine strukturelle Änderung der
wirtschaftsverfassung), ao passo que com a expropriação é apenas alterada a
«determinação do fim» dos bens subtraídos ao particular (cfr. Verwaltungsrecht
I, 9. Auflage, München, Beck, 1974, p. 554. Cfr. também P. Badura,
«Wirtschaftsverwaltungsrecht», in Besonderes Verwaltungsrecht, org. Ingo Von
Münch, 7. Auflage, Berlin. New Iork, W. de Gruyter, 1985, pp. 261-262).
Em terceiro lugar, costuma a doutrina referir que os procedimentos da
expropriação e da nacionalização são, por via de regra, diferentes. Assim, o
procedimento expropriatório é de carácter geral e está tipificado numa lei geral
ou mesmo num Código (o Código das Expropriações). A nacionalização obedecerá a
procedimentos definidos especificamente para cada caso [cfr., porém, os artigos
80.º, alínea c), 83.º e 168.º, n.º 1, alínea l), da Constituição]. Por fim, a
nacionalização é um acto político, juridicamente expresso, quase sempre, num
diploma formalmente legislativo, ao passo que a expropriação é, em si mesma, um
acto administrativo, ainda que a declaração de utilidade pública, contendo a
indicação do fim concreto da expropriação e a individualização dos bens a
expropriar, conste de um acto legislativo ou de um regulamento (cfr. C. A. da
Mota Pinto, Direito Público da Economia, Coimbra, Lições de 1982/1983, p. 170;
M. Afonso Vaz, ob. cit., pp. 193-194; e J. L. Cabral de Moncada, Direito
Económico, Coimbra, Coimbra Editora, 1986, p. 199).
8.2 — Um traço comum entre e nacionalização e a expropriação é o de que ambas
são acompanhadas de indemnização aos proprietários dos bens afectados por
aqueles actos. Na verdade, garantindo a nossa Constituição o direito de
propriedade privada (artigo 62.º, n.º 1) e a iniciativa económica privada
(artigo 61.º, n.º 1), forçoso é que aqueles dois actos ablativos de bens de
conteúdo patrimonial dos particulares sejam acompanhados da obrigação de
indemnização.
O dever de indemnização não sofre, actualmente, no texto constitucional
decorrente da revisão de 1989, qualquer excepção. Isso resulta, de um lado, da
circunstância de, no que respeita à obrigação de indemnização por expropriação,
ter sido eliminado, na revisão de 1989, no artigo 62.º, n.º 2, o inciso «fora
dos casos previstos na Constituição», passando a «justa indemnização» a
constituir um pressuposto de legitimidade de todo o acto expropriativo (cfr. F.
Alves Correia, As Garantias, cit., pp. 120-122, 156-162, O Plano Urbanístico,
cit., pp. 528 e segs., e Formas de Pagamento, cit., p. 15). Do outro lado, da
eliminação, na revisão constitucional de 1982, da possibilidade de expropriação
sem indemnização «de latifundiários e de grandes proprietários e empresários ou
accionistas», prevista no n.º 2 do artigo 82.º da Constituição, na sua versão
originária, e, bem assim, do desaparecimento, na revisão de 1989, da
possibilidade de serem expropriados sem indemnização os meios de produção em
abandono (cfr. o artigo 87.º, n.º 2, na versão de 1982, e o artigo 89.º, n.º 2,
na versão de 1989).
Mas se tanto a nacionalização, como a expropriação devem ser acompanhadas de
indemnização, já as características desta última não têm que ser necessariamente
as mesmas nos dois casos. A indemnização por expropriação e a indemnização por
nacionalização podem, se tal for consentido pela Constituição, ser diferentes no
que respeita à sua extensão, ao seu valor ou ao seu quantum, ao momento em que
uma e outra devem ser postas à disposição do sujeito que delas beneficia e ainda
à forma ou formas do seu pagamento. Existem, é certo, ordenamentos
constitucionais que impõem que a indemnização por expropriação e por
nacionalização obedeçam aos mesmos requisitos. É o que sucede com a Grundgesetz
da República Federal da Alemanha, em cujo artigo 15.º se prevê a «socialização»,
estatuindo-se que «a terra e o solo, riquezas naturais e meios de produção
podem, com a finalidade de socialização, ser transferidos para a propriedade
colectiva ou para outras formas de economia colectiva» (in Gemeineigentum oder
in andere Formen der Gemeinwirtschaft), acrescentando-se, nesse mesmo preceito,
que «quanto à indemnização, aplica-se por analogia o artigo 14.º, alíneas 3 e 4»
(respeitantes à expropriação). Cfr. F. Alves Correia, As Garantias, cit., p.
51, e E. Forsthoff, Traité de Droit Administratif Allemand, trad. franc.,
Bruxelles, E. Bruylant, 1969, p. 46. Também no ordenamento constitucional
francês, o artigo 17.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789
dispõe que ninguém pode ser privado da sua propriedade sem «justa …
indemnização», isto é, sem uma indemnização que cubra e integralidade do
prejuízo directo, material e certo causado pelo acto ablativo, e o Conselho
Constitucional entendeu, na sua Decisão n.º 81-132, de 16 de Janeiro de 1982,
que aquele preceito se aplica tanto às expropriações como às nacionalizações,
acentuando, quanto a estas, que «os accionistas das sociedades visadas pela lei
de nacionalização têm direito à compensação do prejuízo suportado por eles,
avaliado no dia da transferência da propriedade, abstraindo da influência que a
perspectiva da nacionalização exerceu sobre o valor dos títulos» (cfr.
Nationalisations et Constitution, dir. L. Favoreu, Paris, Economica, 1982, pp.
339-352; e L. Favoreu/L. Philip, Les Grands Décisions du Conseil
Constitutionnel, 7.ª ed., Paris, Sirey, 1993, pp. 460 e segs.).
Uma exigência idêntica à prevista nos ordenamentos constitucionais alemão e
francês de similitude de regime jurídico da indemnização por expropriação e por
nacionalização não se encontra, porém, na Constituição portuguesa. Com efeito,
como se vincou no Acórdão deste Tribunal n.º 39/88 e agora se reitera, «no plano
constitucional e no tocante ao direito à indemnização […], existem […] sensíveis
diferenças de regime entre o instituto da nacionalização e o da expropriação».
Essas diferenças começam, desde logo, pela existência de fundamentos
constitucionais distintos para a indemnização por expropriação e por
nacionalização. Enquanto o fundamento da indemnização por expropriação se
encontra no artigo 62.º, n.º 2, da Constituição, que estabelece que esta só pode
ser efectuada «mediante o pagamento de justa indemnização», o alicerce
constitucional da indemnização por nacionalização situa-se no artigo 83.º
(artigo 82.º, antes da revisão de 1989), o qual remete para a lei a determinação
dos critérios de fixação da indemnização correspondente à intervenção e
apropriação colectiva dos meios de produção e solos.
Quanto ao montante da indemnização — e só desta vertente há aqui que tratar e
não das do momento e da forma ou formas do seu pagamento, uma vez que as normas
relacionadas com a indemnização por nacionalização questionadas pelo requerente
não incluem as respeitantes a estas matérias —, são também significativas as
diferenças entre os institutos da expropriação e da nacionalização. Por «justa
indemnização», para efeitos de expropriação, deve entender-se, de acordo com a
doutrina, uma indemnização total ou integral do sacrifício patrimonial infligido
ao expropriado ou uma compensação plena da perda patrimonial suportada, que
respeite o princípio da igualdade, na sua manifestação de igualdade dos cidadãos
perante os encargos públicos, não apenas dos expropriados entre si, mas também
destes com os não expropriados. Uma indemnização justa (na perspectiva do
expropriado) será aquela que, repondo a observância do princípio da igualdade
violado com a expropriação, compense plenamente o sacrifício especial suportado
pelo expropriado, de tal modo que a perda patrimonial que lhe foi imposta seja
equitativamente repartida entre todos os cidadãos [cfr. F. Alves Correia, As
Garantias, cit., pp. 127 e segs., O Plano Urbanístico, cit., pp. 528 e segs.,
Formas de Pagamento, cit., pp. 16-20, Código das Expropriações (Introdução),
cit., pp. 20-25, e As Grandes Linhas da Recente Reforma do Direito do Urbanismo
Português, Coimbra, Almedina, 1993, pp. 68-70; J. J. Gomes Canotilho e Vital
Moreira, Constituição Anotada, cit., p. 336; J. Osvaldo Gomes, «Anotação ao
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 341/86», in Revista da Ordem dos
Advogados, n.º 47 (1987), pp. 121 e segs.; e J. Oliveira Ascensão, «A Caducidade
da Expropriação no Âmbito da Reforma Agrária», in Estudos sobre Expropriações e
Nacionalizações, cit., pp. 70 e segs., e «O Urbanismo e o Direito de
Propriedade», in Direito do Urbanismo, coord. D. Freitas do Amaral, Lisboa, INA,
1989, pp. 333 e segs.]. Na mesma linha do exposto tem caminhado a
jurisprudência do Tribunal Constitucional, que, em vários arestos, vem
densificando o conceito de «justa indemnização» do artigo 62.º, n.º 2, da
Constituição.
Assim, no Acórdão n.º 131/88 (publicado no Diário da República, I Série, de 29
de Junho de 1988) — no qual foi declarada, com força obrigatória geral, a
inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 30.º do Código das
Expropriações de 1976, depois de esta mesma norma ter sido julgada
inconstitucional, em quatro casos concretos, pelos Acórdãos n.os 341/86, 442/87,
3/88 e 5/88 —, escreveu-se que «a Constituição …, embora estabelecendo que a
indemnização há-de ser justa, não define um concreto critério indemnizatório,
mas é evidente que os critérios definidos por lei têm de respeitar os princípios
materiais da Constituição (igualdade, proporcionalidade), não podendo conduzir a
indemnizações irrisórias ou manifestamente desproporcionadas à perda do bem
requisitado ou expropriado (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição
da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., revista e ampliada, 1.º vol., p.
331)».
Por sua vez, no Acórdão n.º 52/90 (publicado no Diário da República, I Série, de
30 de Março de 1990) — aresto que declarou inconstitucional, com força
obrigatória geral, a norma do n.º 2 do artigo 30.º do Código das Expropriações
de 1976, em processo de repetição do julgado, após a mesma norma ter sido
julgada inconstitucional, em três casos concretos, através dos Acórdãos n.os
109/88, 381/89 e 420/89 —, ponderou o Tribunal:
Em termos gerais, deve entender-se que a justa indemnização há-de corresponder
ao valor adequado que permita ressarcir o expropriado da perda que a
transferência do bem que lhe pertencia para outra esfera dominial lhe acarreta,
devendo ter-se em atenção a necessidade de respeitar o princípio da equivalência
de valores: nem a indemnização pode ser tão reduzida que o seu montante a torne
irrisória ou meramente simbólica, nem, por outro lado, nela deve atender-se a
quaisquer valores especulativos ou ficcionados, por forma a distorcer (positiva
ou negativamente) a necessária proporção que deve existir entre as consequências
da expropriação e a sua reparação.
E um pouco mais adiante:
O pagamento da justa indemnização, para além de ser uma exigência constitucional
da expropriação, é também a concretização do princípio do Estado de direito
democrático, nos termos do qual se torna obrigatório indemnizar os actos lesivos
de direitos ou causadores de danos.
Tal indemnização tem como medida o prejuízo que para o expropriado resulta da
expropriação. E, se esta indemnização «não pode estar sujeita ou condicionada
por factores especulativos, por, muitas vezes, artificialmente criados, sempre
deverá representar e traduzir uma adequada restauração da lesão patrimonial
sofrida pelo expropriado» (v. o Acórdão n.º 381/89). Cfr. ainda, entre outros,
os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 108/92, 184/92 e 210/93, publicados
no Diário da República, II Série, de 15 de Julho de 1992, 18 de Setembro de 1992
e 28 de Maio de 1993, respectivamente.
Menos exigente é, no entanto, a Constituição no que respeita à indemnização por
nacionalização dos meios de produção e solos, a que se reporta o artigo 83.º
(artigo 82.º, na versão saída da 1.ª revisão constitucional), pois é o próprio
preceito constitucional a remeter para a lei a definição dos «critérios de
fixação da correspondente indemnização», não definindo ele mesmo um conceito
constitucionalmente adequado de indemnização.
Aquele artigo da Constituição consente ao legislador uma certa liberdade na
definição dos critérios de indemnização, podendo inclusivamente estabelecer
critérios diferentes, de acordo com o tipo e o montante dos bens objecto de
nacionalização (cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição
Anotada, pp. 409-410). Questão é que esses critérios, embora diferentes,
respeitem, como acentuou o Acórdão deste Tribunal n.º 39/88, o princípio da
justiça que vai implicado na ideia de Estado de direito (e os princípios da
igualdade e da proporcionalidade, como exigências que são do princípio da
justiça). Os referidos critérios de determinação do quantum da indemnização por
nacionalização não conflituarão com o princípio da justiça se não forem
«susceptíveis de conduzir ao pagamento de indemnizações irrisórias ou
manifestamente desproporcionadas à perda dos bens nacionalizados, nem a
pagamentos tão diferidos no tempo que equivalham a indemnizações irrisórias ou
absolutamente desproporcionadas», e derem origem a «uma indemnização razoável ou
aceitável, que cumpra as mínimas que vão implicadas na ideia de Estado de
direito» (cfr. o citado Acórdão n.º 39/88).
Com o que vem de ser exposto não pretende o Tribunal Constitucional significar
que a indemnização por nacionalização, prevista no artigo 83.º da Lei
Fundamental, não tem de ser justa, ao contrário do que sucede com a indemnização
por expropriação, condensada no artigo 62.º, n.º 2, da Constituição. O que o
Tribunal afirma, na linha da doutrina que emana do seu Acórdão n.º 39/88, é que
há dois critérios constitucionais de justiça da indemnização: um, para efeitos
de expropriação, mais exigente, no sentido de que impõe uma indemnização total
ou integral do dano suportado pelo particular; outro para efeitos de
nacionalização, menos exigente, que se basta com uma indemnização razoável ou
aceitável dos prejuízos infligidos ao proprietário dos bens nacionalizados.
8.3 — Definidos os parâmetros constitucionais da indemnização por
nacionalização, vejamos, então, se eles são observados pelas normas constantes
dos artigos 1.º a 7.º do Decreto-Lei n.º 332/91.
As normas acima transcritas estabelecem três critérios para o cálculo do
montante das indemnizações a atribuir aos titulares de acções ou partes de
capital de empresas nacionalizadas: o valor do património líquido da empresa; o
valor das cotações a que as respectivas acções hajam sido efectivamente
transaccionadas na Bolsa de Valores de Lisboa; e o valor da efectiva
rendibilidade da empresa (artigo 1.º). O valor do património líquido de cada
empresa é determinado a partir do balanço de gestão, na data da nacionalização,
ou, na sua falta, em 31 de Dezembro de 1974, e, em ambos os casos, de acordo com
as especificações técnicas aprovadas pelas Resoluções do Conselho de Ministros
n.os 243/80, de 11 de Julho, e 40/82, de 10 de Março, e pela Resolução do
Conselho de Ministros de 23 de Maio de 1985, publicada no Diário da República,
II Série, de 22 de Agosto, quanto à avaliação patrimonial de empresas
nacionalisadas, em tudo o que não contrarie o Decreto-Lei n.º 332/91 (artigo
2.º). Por sua vez, o valor de cotação das acções de cada sociedade anónima é o
que resultar da média aritmética simples das cotações máximas e mínimas desses
títulos ao portador em cada ano civil e para os últimos cinco anos anteriores a
1975, não sendo, porém, considerado o valor de cotação, quando as acções não
hajam sido cotadas para cada dos referidos cinco anos (artigo 5.º, n.os 1 e 2).
Finalmente, o valor da efectiva rendibilidade é aferido pela média aritmética
simples dos resultados do exercício verificados nos últimos cinco anos
anteriores a 1975, acrescidos da correspondente dotação anual para amortizações
e monetariamente corrigidos por aplicação dos coeficientes fixados na Portaria
n.º 506/75, de 20 de Agosto, podendo o mesmo período ser reduzido até três anos
no caso de indisponibilidade de elementos, e sendo a taxa calculatória a aplicar
àquela média de 5% (artigo 6.º, n.os 1 e 2). Os coeficientes de ponderação são
fixados em 60%, 20% e 20%, respectivamente, para o valor do património líquido
da empresa, o valor de cotação das acções e o valor da efectiva rendibilidade
(artigo 7.º, n.º 2).
Os critérios de determinação do quantum indemnizatório a atribuir aos titulares
de acções ou partes de capital de empresas nacionalizadas, cujos traços gerais
vêm de ser apontados — tendo sido, por isso, omitidas algumas particularidades
do seu regime — não violam o direito à indemnização, previsto, para a
nacionalização de empresas e solos, no artigo 83.º da Lei Fundamental, não
sendo, por conseguinte, inconstitucionais as normas que os consagram. Duas
razões fundamentais legitimam esta asserção. Em primeiro lugar, o critério do
valor do património líquido da empresa, apurado com base no balanço de gestão —
cujo coeficiente de ponderação é, como se viu, de 60% —, é um critério
habitualmente utilizado em situações em que seja necessário determinar o valor
de quotas de sociedades, quer nos casos de liquidação de quotas, por morte,
exoneração ou exclusão de um sócio, em que o valor da quota deste é fixado «com
base no estado de sociedade à data em que ocorreu ou produziu efeitos o facto
determinante da liquidação» (cfr. o artigo 1021.º, n.º 1, do Código Civil), quer
nos casos de determinação da contrapartida da aquisição de quota de um sócio que
tenha votado contra a fusão de sociedades e que, por esse facto, tenha o direito
de se exonerar (artigo 105.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais), quer
ainda nas hipóteses de amortização de quotas [artigo 235.º, n.º 1, alínea a), do
Código das Sociedades Comerciais]. Em segundo lugar, os critérios apontados não
são critérios arbitrários, totalmente desligados do valor económico dos bens
nacionalizados, nem conduzem, no plano abstracto em que, neste processo de
fiscalização da constitucionalidade, tem de situar-se a análise deste Tribunal,
a uma indemnização meramente nominal (blösse Nominalentschädigung), puramente
irrisória ou simbólica ou a uma indemnização simplesmente aparente, antes têm
virtualidades de levarem, na normalidade das situações — e só destas pode aqui o
Tribunal curar — a uma indemnização razoável ou a uma compensação adequada.
É certo que o valor de cotação das acções das sociedades anónimas tem um
coeficiente de ponderação de apenas 20% e apura-se tomando por base um período
de tempo relativamente longo (últimos cinco anos anteriores a 1975) e que no
valor da efectiva rendibilidade não entra o valor do avviamento das empresas.
Só que — sem curar agora de saber se o avviamento releva ou não na determinação
do valor do património líquido da empresa nacionalizada —, por um lado, não se
pode olvidar que a norma do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 332/91 traduz
um acentuado progresso em relação ao estatuído na legislação anterior, que
mandava atender a um período de dez anos no cálculo do valor de cotação ou do
valor de rendibilidade das acções ou partes de capital nacionalizadas e, bem
assim, que, como referiu o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 39/88, na
parte final do referido período (de cinco anos) as cotações na Bolsa subiram em
termos bastantes superiores ao das taxas de inflação. Por outro lado, como foi
acentuado anteriormente, não vale, na indemnização por nacionalização, o
princípio da indemnização total ou integral (full composition), que rege a
indemnização por expropriação, apurado, em regra, com base no valor de mercado
(Verkehrswert), também denominado valor venal, valor comum ou valor de compra e
venda do bem expropriado, entendido não em sentido estrito ou rigoroso, mas sim
em sentido normativo, isto é, um valor de mercado despido de elementos de
valorização puramente especulativos (cfr. F. Alves Correia, O Plano Urbanístico,
cit., pp. 550 segs., e o mencionado Acórdão deste Tribunal n.º 210/93). No
domínio da indemnização por nacionalização, o artigo 83.º da Constituição
(artigo 82.º, antes da revisão constitucional de 1989) basta-se, como foi
afirmado um pouco mais acima, com uma indemnização razoável ou aceitável, isto
é, com uma indemnização ainda proporcionada à perda dos bens nacionalizados, que
cumpra as exigências de justiça, na sua refracção na matéria em causa.
Eis as razões — e sem deixar de ter em conta o elevado número de nacionalizações
realizadas no nosso país e o facto de elas terem ocorrido, na quase totalidade,
antes da entrada em vigor da Constituição de 1976, num contexto revolucionário,
e não num período de um Estado de direito devidamente consolidado — pelas quais
as normas constantes dos artigos 1.º a 7.º do Decreto-Lei n.º 332/91 não
infringem a Constituição.
9 — As normas respeitantes à fixação do valor definitivo da indemnização e à
composição, competências e funcionamento das comissões mistas (artigos 8.º a
11.º do Decreto-Lei n.º 332/91) e o princípio da reserva do juiz (artigo 205.º,
n.os 1 e 2, da Constituição).
As normas indicadas em epígrafe dispõem como segue:
Artigo 8.º
1 — Os valores da indemnização que se encontrem fixados à data de publicação do
presente diploma serão desde logo alterados pela Direcção-Geral da Junta de
Crédito Público (DGJCP), à luz dos critérios enunciados no Capítulo I,
independentemente de qualquer outra formalidade, mas sem prejuízo de solicitação
aos titulares do direito à indemnização de qualquer elemento tido por
necessário.
2 — O Ministro das Finanças fixará, por despacho, o novo valor de indemnização
resultante do estipulado no n.º 1, o qual substituirá o anteriormente atribuído.
3 — Nos termos dos números anteriores, a alteração ao valor de indemnização não
poderá conduzir a um valor inferior ao anteriormente atribuído, pelo que nesse
caso será este o fixado.
Artigo 9.º
1 — Com vista à reapreciação da aplicação casuística dos critérios legais
estipulados no capítulo i, ou junção superveniente de elementos atinentes ao
processo calculatório, os titulares do direito a indemnização poderão requerer,
dentro do prazo de 60 dias a contar da data de publicação do despacho mencionado
no n.º 2 do artigo 8.º, a revisão do cálculo desse mesmo valor e a constituição
de uma comissão mista para a correspondente apreciação.
2 — As comissões mistas, uma só por cada empresa nacionalizada, serão
constituídas por três peritos, a saber:
a) Um, designado pelos titulares do direito a indemnização, a
identificar, junto com declaração pessoal de aceitação do cargo, no requerimento
referido no n.º 1;
b) Outro, designado pelo Governo e nomeado por despacho do
Ministro das Finanças;
c) Um terceiro, que presidirá, escolhido por mútuo acordo entre
os dois primeiros.
3 — Para a constituição das comissões mistas definidas nos termos dos números
anteriores, será adoptado o seguinte procedimento:
a) A DGJCP informará a entidade que apresentar o primeiro
requerimento, ou, no caso de simultaneidade, o titular de maior indemnização,
para, dentro do prazo de 15 dias, promover, com as despesas a seu cargo, a
publicação de anúncio no Diário da República, III Série, e em dois jornais de
grande circulação, um de Lisboa e outro do Porto, conforme modelo anexo a este
diploma;
b) Qualquer titular de direito a indemnização respeitante à
empresa referida no anúncio poderá indicar outro perito, por carta registada
remetida à DGJCP no prazo de 15 dias a contar da publicação do anúncio no Diário
da República, nos termos da alínea a) do número anterior;
c) No caso de serem designados diferentes peritos por diversos
interessados, a escolha do que integrará a comissão será feita por sorteio
público, a realizar pela DGJCP no 1.º dia útil, cinco dias após a data limite
derivada do anúncio do Diário da República;
d) No caso de sociedades por quotas, o anúncio será dispensado se
os interessados juntarem declaração de todos os restantes sócios aceitando o
perito designado.
4 — O perito designado pelo Governo tomará a iniciativa de se reunir com o
perito designado pelos requerentes a fim de procederem à escolha do presidente
da comissão mista, lavrando-se acta final da qual conste o resultado das
diligências.
5 — A constituição das comissões mistas efectivar-se-á no prazo de 30 dias a
contar da data da designação do perito referido na alínea a) do n.º 2.
6 — Os membros da comissão mista tomarão posse perante o director-geral da Junta
do Crédito Público, devendo emitir parecer no prazo máximo de 60 dias;
7 — O apoio administrativo às comissões mistas é cometido à DGJCP.
8 — Com base no parecer elaborado pelas comissões mistas constituídas nos termos
dos números anteriores, o Ministro das Finanças emitirá despacho definitivo
quanto à fixação do valor da indemnização.
Artigo 10.º
1 — Os emolumentos devidos ao perito designado pelos requerentes, bem como os
devidos ao perito presidente, serão satisfeitos pelos requerentes.
2 — Para garantia do pagamento dos emolumentos devidos ao perito presidente, os
interessados deverão prestar caução no prazo de 15 dias a contar da data de
entrega do requerimento referido no n.º 1 do artigo 9.º, sob pena de se
suspender o processo de constituição da comissão.
3 — A caução referida no número anterior será prestada por depósito na Caixa
Geral de Depósitos a favor do director-geral da Junta do Crédito Público, por
garantia bancária ou seguro-caução, pelo montante de 500 000$00, a qual apenas
será utilizada pela DGJCP na falta de pagamento no prazo de 30 dias após a
entrega do parecer da comissão mista.
Artigo 11.º
1 — São extintas à data da entrada em vigor deste decreto-lei as comissões
arbitrais constituídas ao abrigo do regime legal revogado pelo presente diploma.
2 — Os árbitros das comissões ora extintas serão empossados enquanto membros das
correspondentes, e agora instituídas, comissões mistas, salvo oposição expressa
dos titulares do direito a indemnização que indiquem novo representante no prazo
de 15 dias a contar da data de publicação do presente diploma.
De acordo com as normas transcritas, a Direcção-Geral da Junta de Crédito
(DGJCP) procede oficiosamente à alteração dos valores de indemnização que se
encontrem fixados à data de publicação do Decreto-Lei n.º 332/91, à luz dos
critérios constantes dos artigos 1.º a 7.º deste diploma (artigo 8.º, n.º 1) —
alteração essa que não pode, como já foi salientado, conduzir a um montante de
indemnização inferior ao fixado de harmonia com a legislação anterior (artigo
8.º, n.º 3) —, competindo ao Ministro das Finanças fixar, por despacho, esse
novo valor de indemnização, o qual substitui o anteriormente atribuído (artigo
8.º, n.º 2). Após a fixação (ou reajustamento) do valor da indemnização, podem
os interessados requerer, no prazo de 60 dias, a revisão do cálculo desse valor
e, para a correspondente repreciação, a constituição de uma comissão mista
(artigo 9.º, n.º 1), de natureza administrativa, composta por três peritos (um
designado pelos requerentes, outro pelo Governo — por despacho do Ministro das
Finanças — e um terceiro, que preside, por acordo entre os dois primeiros —
artigo 9.º, n.º 2). As comissões mistas, uma só por cada empresa nacionalizada,
tomarão posse perante o director-geral da Junta de Crédito Público e deverão
emitir parecer no prazo de 60 dias (artigo 9.º, n.º 6). Com base nesse parecer,
o Ministro das Finanças emite então despacho definitivo fixando o valor da
indemnização (artigo 9.º, n.º 8).
Nos termos do requerimento do Provedor de Justiça, o Decreto-Lei n.º 332/91
atribui ao Ministério das Finanças, apoiado no parecer de uma comissão mista
(que tem um significado meramente processual de arbitramento não vinculante),
competência para fixar, por despacho definitivo, o valor da indemnização, o que
contraria o disposto no n.º 2 do artigo 205.º da Lei Fundamental, na medida em
que se comete ao Governo uma função caracterizadamente jurisdicional. De
harmonia com o requerimento corporizador do presente pedido de fiscalização
abstracta da constitucionalidade, o princípio da reserva de jurisdição de que
apenas os tribunais são detentores imporá, tal como acontece com a expropriação,
que sejam os tribunais a fixar o quantum da indemnização por nacionalização.
Violarão as normas acima identificadas o princípio da reserva da função
jurisdicional aos juízes e aos tribunais, condensado no artigo 205.º, n.os 1 e
2, da Constituição, e, consequentemente, o princípio da separação de poderes,
consagrado no artigo 114.º da Lei Fundamental, como defende o requerente?
9.1 — Para uma adequada compreensão do sentido e alcance das normas do
Decreto-Lei n.º 332/91 relativas à definição das entidades competentes para
determinar o montante das indemnizações por nacionalização, é útil descrever, em
traços gerais, os regimes legais que precederam aquele diploma legal.
A Lei n.º 80/77, de 26 de Outubro, instituiu, nos seus artigos 14.º a 16.º, um
regime cujos aspectos fundamentais eram os seguintes:
— competia ao Ministro das Finanças (artigo 14.º, n.º 1) determinar o valor de
cada acção ou parte do capital socia1 de cada empresa — ou o valor da
indemnização global, no caso da reforma agrária (neste caso, era necessário um
despacho conjunto do Ministro das Finanças e do Ministro da Agricultura: artigo
15.º, n.º 1) — por despacho precedido de parecer de uma comissão (artigo 14.º,
n.º 2) composta por um representante do Ministério das Finanças (que presidia),
um do Ministério da tutela da empresa nacionalizada (Ministério da Agricultura,
no caso da Reforma Agrária) e um dos ex-accionistas (titular do direito à
indemnização, no caso da Reforma Agrária: artigo 15.º, n.º 2);
— desse despacho cabia recurso — de plena jurisdição (artigo 16.º, n.º 4) —
para uma comissão arbitral composta por um juiz do Supremo Tribunal de Justiça,
que presidia, e dois magistrados judiciais (vice-presidentes), todos nomeados
pelo Conselho Superior da Magistratura, e ainda por dois árbitros nomeados pelo
Governo, um árbitro pelos ex-accionistas e ex-proprietários, em geral, e outro
pelo accionista ou proprietário em causa no caso concreto — artigo 16.º, n.º 1;
— esse recurso não prejudicava, porém, a possibilidade de recurso «para outras
instâncias competentes» (artigo 16.º, n.º 1): ou seja, estava aberto o recurso
(de mera legalidade) do despacho ministerial directamente para o Supremo
Tribunal Administrativo — a lei previa expressamente esta possibilidade: artigo
16.º, n.º 8; e estaria ainda aberta a possibilidade de acesso aos tribunais
comuns;
— de qualquer forma, das decisões da comissão arbitral também cabia recurso
para o Supremo Tribunal Administrativo (artigo 16.º, n.º 8), a interpor pelos
interessados ou pelo Ministério Público — sendo, aliás, obrigatório para este,
no caso de decisões da comissão arbitral desfavoráveis para o Estado;
— às decisões da comissão arbitral aplicava-se o regime da inexecução legítima
das sentenças dos tribunais administrativos (artigo 16.º, n.º 11).
Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 343/80, de 2 de Setembro, para além de
eliminar a necessidade do parecer prévio de uma comissão funcionando junto do
Ministro, alterou profundamente o artigo 16.º da Lei n.º 80/77, os seguintes
termos:
— as comissões arbitrais passaram a ser compostas por um representante do
Governo, outro da «parte litigante» e um terceiro, que presidia, escolhido pelos
dois primeiros;
— a validade das suas decisões (que já não é claro que fossem de plena
jurisdição) passou a depender da homologação do Ministro das Finanças, cabendo
recurso para o Supremo Tribunal Administrativo dos despachos ministeriais de
homologação ou não homologação.
Por fim, o Decreto-Lei n.º 51/86, de 14 de Março, veio regulamentar o regime das
comissões arbitrais, nomeadamente quanto à sua composição, estatuto, processo e
funcionamento. É de destacar o disposto nos artigos 8.º, n.º 2, que dispunha
que, na falta de acordo, a designação do terceiro árbitro caberia ao Ministro da
Justiça, e 14.º, segundo o qual as comissões arbitrais julgariam «face ao
direito vigente aplicável ao processo indemnizatório».
O Decreto-Lei n.º 332/91 pretendeu ultrapassar o regime jurídico das comissões
arbitrais, criando em sua substituição «outro tipo de órgãos com uma natureza
mais consentânea com as funções consultivas que as comissões arbitrais têm vindo
de facto a desempenhar» (cfr. os prolegómenos justificativos daquele diploma),
mantendo a competência do Ministro das Finanças para decidir definitivamente do
montante das indemnizações, agora com base no parecer da comissão mista.
9.2 — A norma do artigo 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 332/91 que atribui ao
Ministro das Finanças competência para proceder ao reajustamento do valor das
indemnizações por nacionalização já fixadas, em conformidade com os novos
critérios enunciados nos artigos 1.º a 7.º daquele diploma legal, e, bem assim,
a norma do artigo 9.º, n.º 8, que consagra a competência do mesmo Ministro para
fixar por despacho o montante definitivo da indemnização, com base em parecer
elaborado pelas comissões mistas, vêm sendo consideradas inconstitucionais, por
violação do princípio da reserva do juiz, por um sector importante do doutrina
[cfr., por exemplo, M. Rebelo de Sousa, Comissões Arbitrais, cit., pp. 98-99, o
qual afirma que o Decreto-Lei n.º 332/91 pretendeu «resolver dúvidas que se
colocavam à constitucionalidade da Lei n.º 80/77, e que tinham eco jurisdicional
(no Supremo Tribunal Administrativo de forma claríssima), com uma imposição do
mais puro positivismo normativista, ao serviço da administrativização de uma
realidade que deveria ser do foro jurisdicional, assim cometendo
premeditadamente inconstitucionalidade e agravando o regime vigente duplamente
ao esvaziar a própria via jurisdicional comum paralela, assim tornando ainda
mais graves as consequências da administrativização das anteriores comissões
arbitrais, passadas à denominação de comissões consultivas»] e pela
jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Administrativo. De facto,
debruçando-se sobre o Decreto-Lei n.º 332/91, este órgão jurisdicional vem
considerando, em múltiplos arestos, que as normas dos artigos 8.º, n.º 2, e 9.º,
n.º 8, daquele diploma legal infringem o disposto no artigo 205.º da
Constituição, porque atribuem poderes materialmente jurisdicionais a um órgão da
Administração, uma vez que «a fixação da indemnização, em caso de
nacionalização, como na expropriação por utilidade pública, já não representa a
satisfação de qualquer interesse público que a Administração deva realizar,
correspondendo antes à prossecução do interesse público da composição do
conflito de interesses, que é missão específica da função jurisdicional» (cfr.,
por todos, o acórdão da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo de 20 de
Outubro de 1994, tirado no Recurso n.º 31 111).
9.3 — A nossa Constituição deu guarida ao princípio segundo o qual «só aos
tribunais compete administrar a justiça (reserva do juiz), não podendo ser
atribuídas funções jurisdicionais a outros órgãos, designadamente a
Administração Pública» (cfr., neste sentido, J. J. Gomes Canotilho e Vital
Moreira, Constituição Anotada, cit., p. 792, e os Acórdãos deste Tribunal n.os
178/86 e 419/87, publicados no Diário da República, I Série, de 23 de Junho de
1986, e II Série, de 5 de Maio de 1988, respectivamente). Fê-lo no artigo
205.º, n.os 1 e 2, na actual versão decorrente da revisão de 1989, que
corresponde aos artigos 205.º e 206.º, na redacção original e na saída da
revisão de 1982. Prescreve-se, com efeito, no artigo 205.º, n.os 1 e 2, da Lei
Fundamental:
Artigo 205.º
(Função Jurisdicional)
1 — Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a
justiça em nome do povo.
2 — Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos
direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da
legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.
3 — […].
4 — […].
É conhecida, porém, a dificuldade em definir rigorosamente o conceito de «função
jurisdicional», em confronto com as restantes funções do Estado, em especial com
a «função administrativa».
Na doutrina, A. Rodrigues Queiró elaborou um critério — teleológico — de
distinção material dos funções jurisdicional e administrativa, que tem sido
adoptado uniformemente pela restante doutrina e pela jurisprudência. Este
juspublicista, depois de acentuar que «essencial, para que se fale de um acto
jurisdicional, parece-nos ser, para já, que um agente estadual tenha que
resolver de acordo com o direito ‘uma questão jurídica’ entendendo-se por tal um
conflito de pretensões entre duas ou mais pessoas, ou uma controvérsia sobre a
verificação em concreto de uma ofensa ou violação da ordem jurídica», escreve:
Ao cabo e ao resto, o quid specificum do acto jurisdicional reside em que ele
não apenas pressupõe, mas é necessariamente praticado para resolver uma «questão
de direito». Se, ao tomar-se uma decisão, a partir de uma situação de facto
traduzida numa «questão de direito» (na violação do direito objectivo ou na
ofensa de um direito subjectivo), se actua, por força de lei, para se conseguir
a produção de um resultado prático diferente da paz jurídica decorrente da
resolução dessa «questão de direito», então não estaremos perante um acto
jurisdicional: estaremos, sim, perante um acto administrativo [cfr. Lições de
Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, 1976, pp. 43, 44 e 51, e «A Função
Administrativa», Separata da Revista de Direito e de Estudos Sociais, XXIV (n.os
1, 2 e 3), Coimbra, 1977, pp. 30-31].
Na mesma linha, R. Ehrhardt Soares salienta que, na actividade administrativa, a
resolução do conflito de interesses (da «questão de direito») é orientada por
uma perspectiva de interesse público — justamente, do interesse público
específico ou particular que a norma acolhe e incorpora (cfr. Interesse Público,
legalidade e Mérito, Coimbra, Atlântida, 1955, pp. 101, 102 e 120).
Na jurisprudência, múltiplos têm sido os arestos do Tribunal Constitucional que
se ocupam da distinção entre as duas funções estaduais acima referidas. Assim,
no Acórdão n.º 104/85 (publicado no Diário da República, II Série, de 2 de
Agosto), acentuou-se:
É certo que existe algum paralelismo, alguma analogia, entre a função
jurisdicional e função administrativa: ambas, como funções do Estado, são
expressão do imperium emanado da soberania popular, ambas são executivas e ambas
agem sobre o caso concreto. Mas apesar de ligadas entre si por estes pontos
comuns, mantêm-se no fundo irredutivelmente diferenciadas.
A separação real entre a função jurisdicional e a função administrativa passa
pelo campo dos interesses em jogo: enquanto a jurisdição resolve litígios em que
os interesses em confronto são apenas os das partes, a Administração, embora na
presença de interesses alheios, realiza o interesse público. Na primeira
hipótese, a decisão situa-se num plano distinto do dos interesses em conflito;
na segunda hipótese, verifica-se uma osmose entre o caso resolvido e o interesse
público.
Todavia, ainda por outra vertente se distinguem as funções consideradas: ao
passo que o medium da jurisdição é a vontade da lei (concretizada no apuramento
da conclusão decisória a partir das premissas previamente enunciadas do
silogismo judiciário), o medium da Administração é a vontade própria (o que
pressupõe a possibilidade de agir sobre as várias alternativas propostas pela
lei).
Mais recentemente, no Acórdão n.º 443/91 (publicado no Diário da República, II
Série, de 2 de Abril de 1992), no intuito de caracterizar a função judicial,
vincou-se, a dado passo, o seguinte:
Será, pois, na chamada resolução de um conflito relativo a um caso concreto,
resolução essa cujo atingir decorre dos critérios constantes de normas jurídicas
já existentes (e, desta arte, tendo como fim específico a realização do direito
e da justiça), que residira o punctum saliens caracterizador da função
jurisdicional que, assim, não almeja a prossecução e realização de um interesse
público diferente do da composição dos conflitos.
A função jurisdicional consubstancia-se, assim, numa «composição de conflitos de
interesses», levada a cabo por um órgão independente e imparcial, de harmonia
com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim específico a
realização do direito ou da justiça (cfr. o Acórdão deste Tribunal n.º 182/90,
publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Setembro de 1990). Aquela
função estadual diz respeito a matérias em relação às quais os tribunais têm de
ter não apenas a última, mas logo a primeira palavra (cfr. os Acórdãos deste
Tribunal n.os 98/88 e 211/90, o primeiro publicado no Diário da República, II
Série, de 22 de Agosto de 1988, e o segundo nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 16.º Vol., pp. 575 e segs.). A função administrativa é, ao
invés, uma actividade que, partindo de uma situação de facto traduzida numa
«questão de direito», visa a prossecução do interesse público que a lei põe a
cargo da Administração e não a paz jurídica que decorre da resolução dessa
questão. Daí que, na actividade administrativa, a primeira palavra deva caber à
administração, cabendo aos tribunais a última e definitiva palavra, de acordo
com a garantia constitucional do recurso contencioso, condensada no artigo
268.º, n.º 4, da Lei Fundamental.
9.4 — Aqui chegados, é altura de o Tribunal afirmar que a determinação do
montante da indemnização por nacionalização não é uma actividade que esteja
constitucionalmente reservada aos juízes e aos tribunais. É esta, desde logo,
conclusão a que chegam aqueles que entendem poder afirmar-se que, ao fixar-se o
valor da indemnização por nacionalização, ainda se está, como referiu este
Tribunal nos Acórdãos n.os 317/89 e 226/95 (este último inédito), a prosseguir o
interesse público subjacente ao acto de nacionalização — interesse público esse
que consiste na transferência de uma empresa do sector privado para o sector
público dos meios de produção —, ou, por outras palavras, ainda se está no
domínio da função administrativa. A isto acrescenta-se que a especificidade do
acto de nacionalização, traduzida sobretudo na particularidade do seu objecto e
na sua índole essencialmente político-ideológica, especificidade essa que vai ao
ponto de aquele acto ablativo ter a sua legitimação constitucional num preceito
próprio (o artigo 83.º), e, bem assim, razões pragmáticas, relacionadas com a
complexidade da determinação do quantum da indemnização por nacionalização,
através da aplicação dos critérios definidos nos artigos 1.º a 7.º do
Decreto-Lei n.º 332/91, poderão ainda justificar que a primeira decisão sobre
aquela matéria seja da competência da Administração, com base num parecer
elaborado por um órgão composto por técnicos especializados. Questão é que,
para não haver inconstitucionalidade, como se acentuou nos citados Acórdãos n.os
317/89 e 226/95, a lei não exclua o recurso aos tribunais, em termos de a estes
caber a última palavra no domínio da indemnização por nacionalização. Ora, isso
é garantido (implicitamente) pelo Decreto-Lei n.º 332/91.
Outros entendem que não há inconstitucionalidade nas normas do Decreto-Lei n.º
332/91 — e também dos diplomas anteriores — que atribuem competência ao Ministro
das Finanças para fixar o montante da indemnização por nacionalização, por
considerarem que a actividade de fixação das indemnizações por nacionalização se
situa numa zona de fronteira ou numa zona cinzenta entre a função jurisdicional
e a função administrativa. Na doutrina, parece ser esta a tese defendida por J.
C. Vieira de Andrade, em Parecer de Dezembro de 1990 (inédito), e por J. Pedro
Cardoso da Costa, que adopta a opinião sustentada por aquele primeiro autor, num
estudo recente, intitulado «A Fixação das Indemnizações por Nacionalização e o
Princípio da Reserva do Juiz», in Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (171),
Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, 1995, pp. 133 e segs. Pode, com efeito,
ler-se, nesta última obra, pp. 164-165:
«[…] Apurada a natureza jurisdicional da actividade de fixação das indemnizações
[…], seguir-se-ia a conclusão da inconstitucionalidade de todos os regimes
analisados, pois em todos pertence ao Ministro das Finanças a competência para
as fixar, e não existe aqui nenhuma excepção constitucional expressa àquele
princípio.
Mas a verdade, como apontou Vieira de Andrade, é que, reconhecido à
Administração, no nosso sistema continental, um poder de autotutela declarativa,
áreas há da actividade administrativa que também envolvem uma composição
jurídica de conflitos, ou seja, através da aplicação do Direito. Nomeadamente,
conflitos em que a própria Administração é parte. Ora, se no presente caso se
pode ainda identificar qual a natureza substancial — jurisdicional ou
administrativa — dessa actividade através da identificação do interesse público
preponderante (o que nem sempre será possível em todas as situações), o certo é
que o facto de assim concluirmos pela jurisdicionalidade substancial da
determinação das indemnizações não faz precludir a sua íntima relação com um
sector típico da actividade administrativa: ninguém pode negar que o momento da
fixação da indemnização é apenas um momento — provavelmente o final — dentro
de um processo administrativo expropriatório (ou de nacionalização) mais vasto,
e portanto dele indissociável.
Estamos assim perante uma actividade que está longe de se integrar no núcleo
duro ou essencial da função jurisdicional, encontrando-se antes, e
manifestamente, numa zona de fronteira, numa zona cinzenta, entre aquela função
e a função administrativa, tais são as atinências que com esta tem. Na verdade,
não se tratando da composição de conflitos entre cidadãos, mas sim entre a
Administração e particulares, seria abusivo pretender que o núcleo essencial da
função jurisdicional se situe nesta área quando é certo que a Administração a
todo o passo está a definir situações jurídicas que envolvem posições jurídicas
dos cidadãos, incluindo muitas vezes a própria composição de conflitos».
Ora, quer se entenda que a actividade de fixação do montante da indemnização por
nacionalização ainda cabe no domínio da função administrativa e não no âmbito da
função jurisdicional, quer se entenda que aquela actividade não integra o núcleo
duro ou essencial da função jurisdicional, antes se encontra numa zona de
fronteira ou numa zona cinzenta entre as funções administrativa e jurisdicional,
uma coisa é certa: não vale aí o princípio da reserva do juiz, em termos de ser
constitucionalmente proibida à Administração a determinação, em primeira
«instância», do valor da indemnização por nacionalização.
Há, assim, que concluir que as normas constantes dos artigos 8.º a 11.º do
Decreto-Lei n.º 332/91 não infringem o princípio da reserva da função
jurisdicional aos juízes e aos tribunais, plasmado no artigo 205.º, n.os 1 e 2,
da Constituição, nem, consequentemente, o princípio da separação de poderes,
consagrado no artigo 114.º da Lei Fundamental.
10 — As normas constantes dos artigos 8.º, n.º 2, e 9.º, n.º 8, do Decreto-Lei
n.º 332/91 e o direito ao acesso aos tribunais (artigos 20.º, n.º 1, e 268.º,
n.os 4 e 5, da Constituição).
As normas do Decreto-Lei n.º 332/91, especialmente as constantes dos seus
artigos 8.º, n.º 2, e 9.º, n.º 8, são contestadas pelo requerente da presente
fiscalização abstracta da constitucionalidade pelo facto de o despacho do
Ministro das Finanças que fixa o montante da indemnização estar sujeito apenas a
recurso contencioso de anulação, da competência do Supremo Tribunal
Administrativo, e não a um recurso de plena jurisdição, que possibilite àquele
órgão jurisdicional a fixação do quantum indemnizatur. Postura idêntica têm,
como se viu, D. Freitas do Amaral e M. Rebelo de Sousa, os quais sustentam que o
recurso contencioso de anulação do despacho do Ministro das Finanças que fixa o
valor definitivo da indemnização por nacionalização não constitui uma garantia
suficiente de protecção dos direitos dos proprietários dos bens nacionalizados.
Também J. Pedro Cardoso da Costa, seguindo de igual modo neste ponto a solução
preconizada por J. C. Vieira de Andrade, aceita a tese da não
inconstitucionalidade, por pretensa violação da reserva do juiz, das normas que
atribuem ao Ministro das Finanças para fixar, em primeira mão, o valor da
indemnização, mas apenas se estiver assegurada a possibilidade de uma revisão
jurisdicional plena desse acto. Com efeito, segundo aquele autor, «deve
admitir-se a possibilidade de a Administração intervir na matéria das
indemnizações desde que se assegure que os cidadãos possam legitimamente obter
uma solução (globalmente) justa. E esta pode passar por vários factores: desde
a própria participação dos interessados na formação da decisão, até à
intervenção de organismos tecnicamente qualificados de peritos; mas
decisivamente passará pela atribuição de poderes plenos aos órgãos
jurisdicionais competentes para a decisão final» (cfr. ob. cit., p. 166).
Serão as normas de Decreto-Lei n.º 332/91 acima referenciadas inconstitucionais,
por não garantirem aos proprietários dos bens nacionalizados uma protecção
jurisdicional adequada, suficiente ou efectiva dos seus direitos? O Tribunal
entende que não, porque considera que as garantias de protecção jurisdicional
colocadas pelo ordenamento jurídico português à disposição dos titulares de
acções ou partes de capital de empresas nacionalizadas são suficientes para lhes
proporcionar uma defesa efectiva dos seus direitos e interesses legítimos.
Vejamos então.
10.1 — O despacho do Ministro das Finanças, emitido ao abrigo do artigo 8.º, n.º
2, ou do artigo 9.º, n.º 8, do Decreto-Lei n.º 332/91, está sujeito a recurso
contencioso de anulação a interpor perante o Supremo Tribunal Administrativo. A
possibilidade da impugnação contenciosa daquele acto administrativo não está
expressamente contemplada no articulado daquele diploma legal, mas é algo que
resulta da garantia constitucional de recurso contencioso, com fundamento em
ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos, independentemente da sua
forma, que lesem os direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos,
consagrada no artigo 268.º, n.º 4, da Lei Fundamental.
No recurso contencioso, o tribunal administrativo não detém poderes de plena
jurisdição, isto é, não pode reformar total ou parcialmente o acto
administrativo impugnado, está-lhe cometida apenas a possibilidade de declarar a
nulidade ou anular total ou parcialmente o acto administrativo [cfr. o artigo
6.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril]. Mas tendo em conta a evolução
expansiva verificada nas últimas décadas dos «casos de abertura» do recurso
contencioso de anulação, os tribunais administrativos controlam hoje todo e
qualquer vício de ilegalidade de que o acto administrativo eventualmente padeça,
quer se trate de vícios de legalidade externa, quer de vícios de legalidade
interna do acto administrativo. Cabem nos primeiros, segundo a doutrina e a
jurisprudência francesas, o vício de incompetência, o vício de forma e o vício
de procedimento, isto é, todas as manifestações de ilegalidade que têm a ver com
os aspectos exteriores do acto administrativo. Nos segundos, incluem-se os
tipos de ilegalidade relacionados com o fundo do acto, ou seja, os vícios de
violação de lei e de desvio de poder (cfr., por todos, Charles
Debbasch/J.-Claude Ricci, Contentieux Administratif, 6.ª ed., Paris, Dalloz,
1994, pp. 586 e segs.; G. Vedel/P. Delvolvé, Droit Administratif, vol. ii,
Paris, PUF, 1992, pp. 298 e segs.; e Charles Debbasch, Institutions et Droit
Administratifs, vol. ii, Paris, PUF, 1992, pp. 493 e segs.). O vício de
violação de lei verifica-se quando o dispositivo ou conteúdo do acto está em
contradição com a lei e abrange a violação directa das regras jurídicas, o erro
de direito (aplicação de uma norma jurídica diferente da que é normalmente
aplicável e interpretação errónea de uma norma jurídica) e o erro de facto ou
erro relativo aos pressupostos de facto do acto administrativo (inexactidão
material dos factos e errónea qualificação jurídica dos factos). Cfr.
Debbasch/Ricci, ob. cit., pp. 607-613; Vedel/Delvolvé, ob. cit., pp. 312-331;
Charles Debbasch, ob. cit., pp. 500-504; M. Esteves de Oliveira, Direito
Administrativo, vol. i, Coimbra, Almedina, 1980, pp. 559-569; e J. M. Sérvulo
Correia, Noções de Direito Administrativo, i, Lisboa, Danúbio, 1982, pp.
454-456. Por sua vez, o vício de desvio de poder engloba o desvio de poder
propriamente dito ou desvio de poder em sentido subjectivo, que consiste na
divergência entre o fim subjectivamente proposto pelo agente e o fim legalmente
fixado para a respectiva decisão, e o desvio de poder em sentido objectivo, que
se caracteriza por ser um vício do acto, traduzido na violação dos princípios da
justiça, da igualdade, da proporcionalidade e da imparcialidade [cfr. A. Barbosa
de Melo, Direito Administrativo II (A protecção jurisdicional dos cidadãos
perante a Administração Pública), Sumários das lições proferidas na Faculdade de
Direito de Coimbra, no ano lectivo de 1986/87, Coimbra, 1987, pp. 86-87, e Notas
de Contencioso Comunitário, Coimbra, 1986, pp. 70-76; e F. Alves Correia, «O
Contencioso dos Planos Municipais de Ordenamento do Território», in Revista
Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n.º 1 (1994), pp. 32-33]. O recurso
contencioso de anulação possibilita, assim, aos tribunais administrativos o
controlo da observância, em todos os «momentos estruturais» do acto
administrativo (sujeito, objecto, procedimento, conteúdo, forma e fim), das
disposições legais e dos princípios gerais de direito administrativo (cfr. R.
Ehrhardt Soares, Direito Administrativo, Coimbra, 1978, pp. 237 e segs.).
No caso específico do acto administrativo que determina o valor da indemnização
por nacionalização, pode o Supremo Tribunal Administrativo apreciar todos os
vícios que foram apontados de que aquele eventualmente enferme, destacando-se,
no domínio do acto, o erro na interpretação da lei (v. g., a errónea
interpretação dos conceitos de património líquido da empresa, valor de cotação
das acções e valor da efectiva rendibilidade da empresa) e o erro nos
respectivos pressupostos de facto (v. g. não consideração de determinados
elementos valorativos das acções ou partes de capital referidos na lei e erros e
omissões no cálculo do montante da indemnização), bem como a possível violação
pelo acto administrativo, atenta a existência de alguns espaços de
discricionaridade (cfr. os artigos 2.º, 5.º, n.os 3 e 4, e 6.º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 332/91), dos princípios referidos no n.º 2 do artigo 266.º da
Constituição: os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da
imparcialidade.
Importante é ainda referir que, para a detecção daqueles vícios de legalidade do
despacho do Ministro das Finanças que fixa o montante da indemnização, não está
o Supremo Tribunal Administrativo limitado à prova documental, podendo
ainda, se o considerar necessário, recorrer à prova pericial [cfr. o artigo
12.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho: Lei de Processo nos
Tribunais Administrativos — LPTA].
Na hipótese de o Supremo Tribunal Administrativo anular ou declarar a nulidade
do despacho do Ministro das Finanças — e aqui interessa sobretudo considerar as
situações em que o fundamento da sentença anulatória é a violação de lei, isto
é, um vício respeitante à substância do acto (cfr. D. Freitas do Amaral, Direito
Administrativo, vol. iii, Lições aos alunos do Curso de Direito, em 1988/89,
Lisboa, 1989, pp. 303-304) — deve o Ministro das Finanças, nos termos do artigo
208.º, n.os 2 e 3, da Constituição, dos artigos 95.º e 96.º da LPTA e dos
artigos 5.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 256-A/77, de 17 de Junho, executar a
sentença, pondo a situação de facto de acordo com a situação de direito
constituída pela decisão judicial de anulação. Na verdade, a sentença
anulatória ou declarativa de nulidade de um acto administrativo tem um efeito
reconstitutivo ou reconstrutivo, que impõe, na medida em que tal for necessário
e possível, a reconstituição da situação que teria existido (deveria ter
existido ou poderia ter existido) se não tivesse sido praticado o acto ilegal ou
se o acto tivesse sido praticado sem ilegalidade — a reconstituição da
situação hipotética actual — e, bem assim, um efeito conformativo (preclusivo ou
inibitório), que se traduz no dever, para a Administração, de respeitar o
julgado, conformando-se com o conteúdo da sentença e com as eventuais limitações
que daí derivam para o eventual exercício futuro dos seus poderes, que
consistem, no mínimo, na impossibilidade de a Administração reproduzir o acto
com os mesmos vícios individualizados e condenados pelo juiz (cfr. J. C. Vieira
de Andrade, Direito Administrativo e Fiscal, Lições ao 3.º Ano do Curso de
1994-1995, Faculdade de Direito de Coimbra, pp. 179-180; e D. Freitas do Amaral,
A Execução das Sentenças dos Tribunais Administrativos, Lisboa, 1967, pp. 67-68,
e Direito Administrativo, vol. iv, Lições dos alunos do curso de Direito, em
1987/88, Lisboa, 1988, pp. 236-242).
Na análise dos efeitos das sentenças de anulação dos actos administrativos, não
pode deixar de tomar-se em consideração o regime de execução de julgados,
constante dos artigos 95.º e 96.º da LPTA e dos artigos 5.º e seguintes do
Decreto-Lei n.º 256-A/77, de 17 de Junho, no qual são reconhecidos aos tribunais
administrativos poderes de plena jurisdição. De facto, no caso de não
cumprimento espontâneo do conteúdo da decisão ou de cumprimento defeituoso, pode
o particular exigir do tribunal, nos termos do artigo 9.º, n.º 2, do Decreto-Lei
n.º 256-A/77, a especificação dos actos e operações em que a execução deverá
consistir e o prazo em que deverão ter lugar, a declaração de nulidade dos actos
praticados em desconformidade com a sentença e a anulação dos actos que tenham
sido praticados com invocação ou ao abrigo de causa legítima de inexecução não
reconhecida — devendo salientar-se que, quando a execução da sentença consistir
no pagamento de uma quantia pecuniária, como sucede no caso do montante da
indemnização por nacionalização, não é invocável causa legítima de inexecução,
de harmonia com o n.º 5 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 256-A/77 [cfr. D.
Freitas do Amaral, «Régimen Jurídico de la Ejecución de las Sentencias de los
Tribunales Administrativos em Portugal», Separata da Revista Española de Derecho
Administrativo, n.º 70 (1991), pp. 164-167].
É assim, de capital importância, para ajuizar se o recurso contencioso de
anulação constitui um instrumento adequado e eficaz de tutela judicial dos
direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, relacioná-lo com o
processo de execução de julgados, no qual o tribunal não se limita a reafirmar o
que já tinha decidido no processo de recurso, antes redefine a situação jurídica
em função da situação, em grande medida nova, que resulta da intervenção
administrativa intermédia. Daí que, como acentua J. C. Vieira de Andrade, o
processo de execução de julgados constitua uma espécie de «mini-acção de
reconhecimento de direitos», em que, numa tramitação expedita, se declara o
«direito da situação» que, em maior ou menor medida, decorre dos fundamentos que
estiveram na base da invalidação judicial do acto (cfr. ob. cit., p. 183). Na
óptica do mencionado autor, o processo de execução das sentenças dos tribunais
administrativos é «um processo que tem na sua base uma pretensão executiva, mas
que se revela, afinal, como sendo ou uma acção especial de indemnização (que
pode vir a seguir os trâmites normais dessas acções, em caso de complexidade da
matéria de facto — artigo 10.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 256-A/77) ou também
uma acção declarativa complementar (sobretudo da acção anulatória), no âmbito do
qual se proferem sentenças que produzem efeitos meramente declaratórios ou de
simples apreciação (verificação da existência ou da inexistência de causa
legítima de inexecução, declaração de nulidade de actos), constitutivos
(anulação de actos) e condenatórios (especificação de actos devidos,
indemnizações por responsabilidade civil)» [cfr. ob. cit., pp. 108-109].
É, deste modo, legítimo concluir que o recurso contencioso de anulação do
despacho do Ministro das Finanças que fixa o montante da indemnização por
nacionalização, devidamente conjugado com os instrumentos processuais de
execução das sentenças dos tribunais administrativos, assegura, na generalidade
das situações, uma adequada e efectiva tutela jurisdicional dos direitos dos
titulares das acções ou partes de capital de empresas nacionalizadas —
refira-se, por exemplo, a hipótese de o Supremo Tribunal Administrativo anular o
despacho que determina o valor de indemnização, com fundamento num vício
respeitante ao conteúdo daquele acto, em que, perante o não cumprimento rigoroso
do acórdão anulatório pelo Ministro, pode o mesmo Tribunal, em processo de
execução daquele aresto, especificar o montante que deve ser pago ao titular dos
bens nacionalizados, para integral execução do acórdão anulatório.
10.2 — A acrescer ao exposto no número anterior, é de realçar que as garantias
constitucionais de protecção jurisdicional em face da actividade da
Administração não se restringem ao recurso contencioso de anulação, com
fundamento em ilegalidade contra os actos administrativos lesivos dos seus
direitos ou interesses legalmente protegidos, condensado no artigo 268.º, n.º 4,
da Constituição, abarcam também a possibilidade de os administrados acederem «à
justiça administrativa para tutela dos seus direitos ou interesses legalmente
protegidos», consagrada no n.º 5 do artigo 268.º da Lei Fundamental. Este
último preceito constitucional, introduzido pela Lei Constitucional n.º 1/89,
traduziu-se, como salientam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, no
reconhecimento ao cidadão de uma protecção jurisdicional administrativa sem
lacunas — princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa —,
permitindo-lhe o acesso à justiça para defesa de direitos e interesses
legalmente protegidos, sem se condicionar essa acção à adopção de meios
específicos de impugnação («recurso contencioso») ou à existência de um «acto
administrativo» (cfr. ob. cit., pp. 942-943).
No ordenamento jurídico positivo, existe um instrumento de protecção
jurisdicional dos cidadãos, que, apesar de ter surgido ainda no domínio da
vigência do artigo 268.º, n.º 3, da Constituição, na versão de 1982, constitui
uma concretização da garantia consagrada no n.º 5 do artigo 268.º da Lei
Fundamental: é a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legalmente
protegido, prevista nos artigos 69.º e 70.º da LPTA. Mas a força irradiante e
conformadora deste preceito constitucional exige que o n.º 2 do artigo 69.º da
LPTA — norma que estabelece o âmbito de aplicação daquelas acções, estatuindo
que elas «só podem ser propostas quando os restantes meios contenciosos,
incluindo os relativos à execução de sentenças, não assegurem a efectiva tutela
jurisdicional do direito ou interesse em causa» — seja interpretado, em termos
de consentir ao particular, mesmo na hipótese de existir um acto administrativo,
a propositura de uma acção de reconhecimento de um direito ou de um interesse
legítimo, desde que demonstre que o recurso contencioso não é susceptível de
assegurar, num determinado caso concreto, uma adequada e efectiva tutela
jurisdicional dos direitos ou interesses legítimos afectados. De facto, a
doutrina administrativa mais representativa vem defendendo que a acção para
reconhecimento de um direito ou interesse legítimo pode ser utilizada não apenas
nos casos em que não exista ou não tenha de existir um acto administrativo (por
exemplo, situações de incumprimento de deveres relativos a certos direitos
subjectivos dos particulares — direitos ao pagamento de uma quantia em dinheiro,
à entrega de uma quantia certa ou a uma prestação de facto determinada —, de
prática ou omissão de actos materiais lesivos de direitos, ou de dúvidas, de
incerteza ou de receio fundado de mau entendimento pela Administração
relativamente à existência ou ao alcance de um direito ou interesse legítimo),
mas também nos casos em que, embora existindo ou havendo lugar à prática de um
acto administrativo, o recurso contencioso se revele manifestamente inadequado
para assegurar uma tutela efectiva dos direitos do particular [cfr., sobre este
ponto, embora nem sempre com posições idênticas às expostas, Rui Machete, «A
Garantia Contenciosa para Obter o Reconhecimento de um Direito ou Interesse
Legalmente Protegido», in Estudos de Direito Público e Ciência Política, Lisboa,
Fundação Oliveira Martins, 1991, pp. 423 e segs.; Rui Medeiros, «Estrutura e
Âmbito da Acção para o Reconhecimento de um Direito ou Interesse Legalmente
Protegido», in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano xxxi (1989), n.os 1
e 2, pp. 60 e segs.; L. M. Sousa Fábrica, «A Acção para o Reconhecimento de
Direitos e Interesses Legalmente Protegidos», in Boletim do Ministério da
Justiça, n.º 365 (1987), pp. 21 e segs.; e D. Freitas do Amaral, Direito
Administrativo, vol. iv, cit., pp. 288-297. Cfr. também A. Barbosa de Melo,
Direito Administrativo, ii, cit., p. 94].
A interpretação que vem de ser exposta do artigo 69.º, n.º 2, da LPTA
corresponde à denominada teoria do alcance médio da acção para o reconhecimento
de um direito ou de um interesse legítimo, nos termos da qual este meio
processual assume um carácter complementar dos outros meios processuais — e não
um carácter puramente residual, como pretende a teoria do alcance mínimo,
utilizável apenas quando não existisse, em abstracto, no ordenamento processual
outro meio à disposição do particular para obter uma tutela eficaz da sua
posição jurídica, nem um carácter funcional, como defende a teoria do alcance
máximo, que admite a utilização do referido instrumento processual sempre que o
contencioso de anulação ou os outros meios não fornecessem em concreto ao
particular uma protecção máxima. J. C. Vieira de Andrade, depois de referir que
uma interpretação do artigo 69.º, n.º 2, da LPTA em conformidade com o princípio
da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 268.º, n.º 5, da
Constituição, apontará, pelo menos, para a teoria do alcance médio e de
considerar excessivas as soluções dos acórdãos da 1.ª Secção do Supremo Tribunal
Administrativo de 4 de Maio de 1993, 13 de Julho de 1993 e 19 de Abril de 1994,
proferidos nos Recursos n.os 31 976, 31 754 e 33 191, nos quais aquele Tribunal
entendeu que, após a revisão constitucional de 1989, o n.º 2 do artigo 69.º da
LPTA deve ter-se por revogado, com a consequência de o direito de acção
jurisdicional perante os tribunais administrativos para reconhecimento de
direito e interesse legítimo perante (contra) a Administração não encontrar hoje
obstáculos de natureza processual, fundados em erro na forma de processo,
ilegitimidade ou excepção dilatória inominada que se pretendiam consagradas
naquele preceito, justifica do seguinte modo a interpretação acima avançada do
âmbito de aplicação da «acção de reconhecimento de um direito ou interesse
legítimo»:
«A posição a adoptar deve, quanto a nós, ser uma de equilíbrio, aproveitando
todas as potencialidades do recurso contencioso e respeitando a estrutura do
sistema de administração executiva, quando exista ou haja lugar à prática de um
verdadeiro acto administrativo (tese estrutural), mas não hesitando em
preconizar o uso de outros meios, quando se prove que eles sejam necessários a
uma protecção judicial efectiva do particular (tese funcional) — em suma,
destruído o dogma da impossibilidade de os tribunais condenarem a Administração,
devem alargar-se ao máximo os poderes de fiscalização jurisdicional, mas, em
contrapartida, tem de respeitar-se o núcleo essencial da autonomia do poder
administrativo, isto é, a estabilidade do caso decidido e a discricionaridade
quanto ao mérito das decisões» (cfr. ob. cit., pp. 99-100).
Ora, revertendo novamente ao despacho do Ministro das Finanças que fixa o
montante da indemnização por nacionalização, poderá entender-se, de harmonia com
a interpretação avançada pela doutrina para o artigo 69.º, n.º 2, da LPTA, em
conjugação com o disposto no n.º 5 do artigo 268.º da Constituição, que ao
titular do direito à indemnização não estará também vedada a possibilidade de
propor no tribunal administrativo competente uma acção de reconhecimento do
direito a um determinado quantitativo indemnizatório, desde que invoque e
demonstre que, naquele caso concreto, a utilização do recurso contencioso de
anulação contra o despacho do Ministro das Finanças não é suficiente, nem eficaz
para garantir uma tutela jurisdicional efectiva do seu direito à indemnização —
acção essa que, segundo alguma doutrina, deverá ser proposta dentro do prazo
estabelecido na lei para o recurso contencioso do acto administrativo, devido à
necessidade de respeito pelo caso decidido (cfr. J. C. Vieira de Andrade, ob.
cit., p. 100. Em sentido contrário, os citados acórdãos do Supremo Tribunal
Administrativo entenderam que, mesmo que tenha decorrido o prazo para interpor o
recurso contencioso de anulação de um acto administrativo, acto esse que se
firmou, com força de caso decidido ou de caso resolvido, por ausência de
oportuna impugnação contenciosa, continua a ser admissível a propositura de uma
acção para reconhecimento de um direito ou de um interesse legítimo).
Tudo isto serve para concluir, repetindo o que, a título antecipativo, foi
afirmado anteriormente, que as garantias de protecção jurisdicional colocadas
pelo sistema jurídico português à disposição dos titulares de acções ou partes
de capital de empresas nacionalizadas são suficientes para lhes proporcionar uma
defesa efectiva dos seus direitos e interesses legítimos. Não são, por
conseguinte, inconstitucionais as normas constantes dos artigos 8.º, n.º 2, e
9.º, n.º 8, do Decreto-Lei n.º 332/91, na medida em que não prevêem um recurso
de plena jurisdição para o Supremo Tribunal Administrativo do despacho do
Ministro das Finanças que determina o montante da indemnização por
nacionalização.
11 — Concluindo o Tribunal Constitucional pela não declaração de
inconstitucionalidade de nenhuma das normas do Decreto-Lei n.º 332/91, não há
lugar, como é óbvio, à repristinação de qualquer das normas revogadas pelo
artigo 12.º daquele diploma legal. Consequentemente, não deve o Tribunal tomar
conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade das normas
revogadas pelo artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 332/91.
III — Decisão
12 — Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes dos
artigos 1.º a 7.º do Decreto-Lei n.º 332/91, de 6 de Setembro, respeitantes ao
cálculo do valor da indemnização a atribuir aos titulares de acções ou partes de
capital de empresas nacionalizadas;
b) Não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes do artigo
8.º do mencionado Decreto-Lei, relativas à fixação do valor definitivo da
indemnização;
c) Não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes dos
artigos 9.º a 11.º do citado Decreto-Lei n.º 332/91, concernentes às comissões
mistas;
d) Consequentemente, não tomar conhecimento do pedido de declaração de
inconstitucionalidade das normas revogadas pelo artigo 12.º do mesmo Decreto-Lei
n.º 332/91.
Lisboa, 6 de Julho de 1995. — Fernando Alves Correia — Maria da Assunção Esteves
— Alberto Tavares da Costa — Guilherme da Fonseca — Vítor Nunes de Almeida —
Messias Bento — Bravo Serra — Antero Alves Monteiro Diniz [vencido quanto à
parte da decisão que se contém nas alíneas b), c) e e), nos termos da declaração
junta]. — Maria Fernanda dos Santos Martins da Palma Pereira [vencida quanto à
parte da decisão relativa às normas constantes das alíneas b) e c), nos termos
de declaração de voto junta, e, consequencialmente quanto à decisão da alínea
d)] — Armindo Ribeiro Mendes [vencido, em parte, no que toca às alíneas b) e c),
nos termos de declaração de voto junta e, consequencialmente quanto à alínea
d))] — Luís Nunes de Almeida [vencido, em parte, quanto à alínea c) da decisão,
conforme declaração de voto junta] — José de Sousa e Brito [vencido, em parte,
quanto à alínea c) da decisão, conforme declaração de voto junta] — José Manuel
Cardoso da Costa [com declaração de voto, relativamente à alínea a), e de
vencido em parte, quanto à alínea c) da decisão].
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 — Na qualidade de primitivo relator do presente processo procedi à elaboração
de um memorando no qual se propunha a declaração de inconstitucionalidade, com
força obrigatória geral, das normas dos artigos 8.º a 11.º do Decreto-Lei n.º
332/91, de 6 de Setembro.
Foi então aduzida a fundamentação seguinte:
1 — O Decreto-Lei n.º 332/91, além de alterar o processo de cálculo das
indemnizações, veio substituir as comissões arbitrais previstas na Lei n.º 80/77
(na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 343/80, ratificado pela Lei n.º
36/81), por «outro tipo de órgãos com uma natureza jurídica mais consentânea com
as funções consultivas que as comissões arbitrais têm vindo de facto a
desempenhar».
Ne génese desta orientação legislativa encontram-se, em conformidade com o
preâmbulo daquele diploma, «as interpretações dos órgãos jurisdicionais quanto à
natureza deste regime e os elementos constantes da fundamentação de algumas
decisões apresentadas por comissões arbitrais, que têm vindo a ser constituídas
ao abrigo do normativo citado e segundo as regras de funcionamento dispostas no
Decreto-Lei n.º 51/86, de 14 de Março» os quais alertaram para a «necessidade de
serem clarificadas, formalmente rectificadas e mesmo alteradas algumas
disposições regulamentadoras desta matéria».
Deste modo, as antigas comissões arbitrais foram substituídas por comissões
mistas que intervêm apenas «com vista à reapreciação da aplicação casuística dos
critérios legais estipulados no capítulo i [cálculo do valor da indemnização],
ou junção superveniente de elementos ao processo calculatório» (artigo 9.º, n.º
1).
Os valores de indemnização que se encontrem já fixados à data da publicação do
diploma serão desde logo alterados pela Direcção-Geral da Junta do Crédito
Público à luz dos novos critérios, pertencendo ao Ministro das Finanças fixar,
por despacho, o novo valor, que substituirá o anteriormente atribuído e não
podendo a ele ser inferior (artigo 8.º).
As comissões mistas passaram a ser compostas por peritos e não por árbitros,
proferindo pareceres e não decisões (artigo 9.º, n.os 2 e 8).
Com base no parecer elaborado pelas comissões mistas o Ministro das Finanças
emitirá um despacho definitivo quanto à fixação do valor da indemnização,
cabendo deste despacho recurso contencioso nos termos gerais de direito (artigo
9.º, n.º 8).
No entendimento de Marcelo Rebelo de Sousa (cfr. Direito e Justiça, vol. v,
1991, p. 98), o Decreto-Lei n.º 332/91, neste particular, «quis resolver dúvidas
que se colocavam à constitucionalidade da Lei n.º 80/77, e que tinham eco
jurisprudencial (no Supremo Tribunal Administrativo de forma claríssima), com
uma imposição do mais puro positivismo normativista, ao serviço da
administrativação de uma realidade que deveria ser do foro jurisdicional, assim
cometendo premeditadamente inconstitucionalidade e agravando o regime vigente
duplamente ao esvaziar a própria via jurisdicional comum paralela, assim
tornando ainda mais graves as consequências da administrativização das
anteriores comissões arbitrais, passadas à denominação de comissões
consultivas».
E na decorrência deste discurso, fazendo caber no âmbito da função jurisdicional
a fixação das indemnizações por nacionalização ou expropriação verificadas entre
1974 e 1976, tiverem-se ali por inconstitucionais as normas constantes dos
artigos 8.º, n.º 2, 9.º, 10.º e 11.º do Decreto-Lei n.º 332/91.
2 — Em conformidade com o disposto no artigo 205.º, n.º 2, da Constituição, «na
administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e
interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade
democrática e dirimir os conceitos de interesses públicos e privados».
Ensaia-se neste preceito uma definição de função jurisdicional, que na doutrina
é deveras controvertida. São três as áreas especialmente mencionadas: a) a
defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos (o que aponta
directamente para a justiça administrativa); b) a repressão das infracções da
legalidade democrática (o que aponta especialmente para a justiça criminal; c) a
resolução dos conflitos de interesses públicos e privados (o que abrange
principalmente a justiça cível).
Reveste-se de alta complexidade a delimitação da reserva da competência
judicial, constituindo a distinção entre administração e jurisdição uma das
questões salientes das disputas doutrinais e da jurisprudência. A linha de
fronteira terá de atender não apenas à densificação doutrinal adquirida da
função jurisdicional, aos casos constitucionais de reserva judicial — artigos
27.º, n.º 2, 28.º, n.º 1, 33.º, n.º 4, 34.º, n.º 2, 36.º, n.º 6, 46.º, n.º 2, e
116.º, n.º 7 — mas também ao apuramento neste campo de um entendimento exigente
do princípio do Estado de direito democrático (cfr. Gomes Canotilho e Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., pp. 792-793).
No plano da jurisprudência administrativa (cfr. por todos o acórdão do Supremo
Tribunal Administrativo de 13 de Novembro de 1980, Acórdãos Doutrinais, n.º 231,
pp. 286 e segs.), tem-se entendido que existe um acto jurisdicional quando a sua
prática se destina a realizar o próprio interesse público da composição de
conflitos de interesses, tendo como fim específico, portanto, a realização do
direito e da justiça; e existe um acto administrativo quando a composição de
interesses em causa tem em vista a prossecução de qualquer outro dos interesses
públicos, que ao Estado incumbe realizar, representando aquela composição um
simples meio ou instrumento para a sua satisfação, — sendo certo que a distinção
entre as duas funções «reside no carácter de parcialidade ou imparcialidade que
assume a actividade do órgão que procede à composição do conflito de interesses,
aferida em função de uma situação de indiferença ou desinteresse perante o
conflito, pelo que há acto administrativo se esse órgão, ou, melhor dizendo, se
a pessoa a que o mesmo pertence é interessada ou ‘parte’ no conflito, e há acto
jurisdicional na hipótese contrária».
Também o Tribunal de Conflitos, tem distinguido a função jurisdicional da função
administrativa, a partir de critérios ou índices similares aos que se deixaram
enunciados (cfr. acórdão de 23 de Maio de 1974, Acórdãos Doutrinais, n.º 154,
pp. 278 e segs.).
Do mesmo modo, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem vindo a adoptar
um idêntico entendimento. «A separação real entre a função jurisdicional e a
função administrativa passa pelo campo dos interesses em jogo: enquanto a
jurisdição resolve litígios em que os interesses em confronto são apenas os das
partes, a Administração, embora na presença de interesses alheios, realiza o
interesse público. Na primeira hipótese a decisão situa-se num plano distinto
do dos interesse em conflito. Na segunda hipótese verifica-se uma osmose entre
o caso resolvido e o interesse público» (cfr. por todos o Acórdão n.º 104/85,
Diário da República, II Série, de 2 de Agosto de 1985).
No campo doutrinal, esta vexata questio tem merecido da parte dos Autores
nacionais e estrangeiros um tratamento exaustivo, bastando acompanhar aqui o
pensamento de Afonso Queiró, Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 1976,
pp. 13 e segs., que terá sido quem, entre nós, mais longa e aprofundadamente
debateu esta questão.
E este Mestre, procurando alcançar o núcleo essencial que distingue as funções
jurisdicional e administrativa, escreveu assim:
Ao cabo e ao resto, o quid specificum do acto jurisdicional reside em que ele
não apenas pressupõe mas é necessariamente praticado para resolver uma «questão
de direito». Se, ao tomar-se uma decisão, a partir de uma situação de facto
traduzida numa «questão de direito» (na violação do direito objectivo ou na
ofensa de um direito subjectivo), se actua, por força da lei, para se conseguir
a produção de um resultado prático diferente da paz jurídica decorrente da
resolução dessa «questão de direito», então não estaremos perante um acto
jurisdicional; estaremos, sim, perante um acto administrativo.
Não é, pois, como muito bem o acentua Duguit, pelo lado dos efeitos que
substancialmente se distinguem as duas espécies de actos jurídicos externos que
no seu conjunto respectivamente constituem o exercício da função jurisdicional e
da função administrativa. Pelo lado dos efeitos (declarativos, condenatórios,
constitutivos ou executivos), as duas funções equivalem-se ou identificam-se. A
distinção entre elas é de ordem teleológico-objectiva. Em cada caso, há que
proceder à interpretação da lei, para se concluir qual é a finalidade objectiva
que, com o exercício de determinada competência legal, necessariamente se
realiza.
No quadro desta caracterização conceitual, atingiu-se uma definição teleológica
da função jurisdicional que atende ao desígnio da intervenção dos órgãos do
poder político do Estado, desígnio que é, na função jurisdicional e não já na
função administrativa, estritamente jurídico, visando a realização do direito
objectivo pela composição de interesses conflituantes e não o da sua aplicação
ou concretização em função de outros interesses públicos, ainda que para o
efeito usando como meio a dirimição de conflitos ou litígios jurídicos.
3 — Na vigência do artigo 16.º da Lei n.º 80/77 (em qualquer das suas versões),
as comissões arbitrais só intervinham quando os titulares do direito à
indemnização o requeressem, consignando-se expressamente que essa possibilidade
de intervenção existia sem prejuízo do recurso para outras instâncias
competentes.
Deste modo, garantia-se o acesso à via judiciária não só na impugnação do acto
administrativo homologatório ou não homologatório da decisão da comissão
arbitral, mas também, sempre que fosse essa a opção perfilhada, o recurso aos
tribunais a fim de por estes serem decididas as questões suscitadas pela
titularidade do direito à indemnização, pela sua fixação, liquidação e
efectivação.
Ora, nada disto é consentido pela estatuição do Decreto-Lei n.º 332/91.
Em conformidade com as normas pertinentes deste diploma, o Ministro das Finanças
fixará o novo valor de indemnização resultante dos critérios ali definidos,
sendo concedida aos titulares do direito à indemnização a faculdade de
requererem a revisão do cálculo desse valor e a constituição de uma comissão
mista para a correspondente apreciação.
A partir do parecer elaborado em tal comissão, de natureza estritamente
administrativa, o Ministro das Finanças emitirá despacho definitivo quanto à
fixação do valor da indemnização.
Assim, com a supressão do acesso à via jurisdicional comum (anteriormente
prevista na Lei n.º 80/77) aquele despacho, ao fixar a compensação
indemnizatória a atribuir ao titular dos bens nacionalizados, sem opção
contrária, apresenta-se manifestamente como «decisor» de uma questão de direito,
compondo interesses conflituantes da Administração e dos particulares, gerados
pelo dissentimento sobre a expressão material do valor da indemnização.
E não pode afirmar-se que na composição do conflito de interesses entre o
titular dos bens nacionalizados e a Administração, o fim específico da
actividade administrativa não se traduza na realização do direito e da justiça,
mas antes na prossecução de interesses públicos que a lei comete aos órgãos
administrativos.
É que o interesse público directamente prosseguido pela Administração ao
nacionalizar determinados meios de produção, não pode identificar-se com a
determinação do conteúdo do direito à indemnização e com a fixação do respectivo
valor, que correspondem, manifestamente, à prossecução do interesse público da
composição de conflitos de interesses, que é específica da função jurisdicional.
Por outro lado, também é seguro que o mero domínio da recorribilidade
contenciosa do acto administrativo fixador do valor da indemnização não assegura
a garantia da plena jurisdicionalização da questão substancial, circunscrito
como está o recurso contencioso de anulação à legalidade do acto impugnado.
Propõe-se assim, na sequência do exposto, que o Tribunal declare a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do disposto nos
artigos 114.º, n.º 1, e 205.º, n.º 2, da Constituição, das normas dos artigos
8.º, 9.º, 10.º e 11.º do Decreto-Lei n.º 332/91.
2 — O acórdão a que a presente declaração de voto se reporta não adoptou o
entendimento que assim havia sido proposto, decidindo, contrariamente, no
sentido de aquelas normas não infringirem o princípio da reserva da função
jurisdicional aos juízes e aos tribunais, plasmado no artigo 205.º, n.os 1 e 2,
da Constituição, nem consequentemente, o princípio da separação de poderes,
consagrado no artigo 114.º da Lei Fundamental.
Ateve-se para tanto, no essencial, à consideração de que a determinação do
montante da indemnização por nacionalização não é uma actividade
constitucionalmente reservada aos juízes e aos tribunais, pois que, através dela
prossegue-se ainda o interesse público subjacente ao acto de nacionalização
— interesse público esse que consiste na transferência de uma empresa do sector
privado para o sector público dos meios de produção —, ou, por outras palavras,
ainda se está no domínio da função administrativa.
E, ajuntou-se no acórdão, mesmo que assim não se entenda, sempre deverá dizer-se
que a actividade de fixação das indemnizações por nacionalização não integra o
núcleo duro ou essencial da função jurisdicional, situando-se numa zona de
fronteira ou numa zona cinzenta entre as funções administrativa e jurisdicional,
não reclamando por isso a sua integração no âmbito material da função reservada
aos juízes e aos tribunais.
Porque as razões assim invocadas se apresentam como insubsistentes, dissenti da
decisão na parte que a esta questão respeita mantendo o entendimento já
propugnado no memorando inicial.
E, na decorrência da dialéctica argumentativa que atravessou a discussão e
julgamento do presente processo, apontar-se-ão agora algumas referências
complementares.
3 — Pese embora a particular complexidade de que se reveste a definição das
chamadas funções do Estado e as dificuldades advenientes de uma estrita
vinculação às classificações clássicas que para tanto são geralmente propostas
(cfr. Nuno Piçarra, A separação dos poderes como doutrina e princípio
constitucional, Coimbra, 1989, pp. 229 e segs.), ainda assim é possível definir,
com objectividade bastante, as caracterizações distintivas da função
jurisdicional e da função administrativa.
À luz de um critério teleológico-objectivo de distinção dessas funções, através
do qual se logra surpreender a respectiva diferença específica, não pode
afirmar-se que a fixação do quantum indemnizatório a atribuir aos ex-titulares
de direitos sobre bens nacionalizados haja de se compreender na esfera de
prossecução do interesse público subjacente ao acto de nacionalização, isto é,
ainda corresponda ela ao exercício da função administrativa.
Como bem acentua Marcelo Rebelo de Sousa (cfr. ob. cit., p. 93), no acto de
fixação do valor da indemnização o que está em causa é só a definição de
titularidade e de conteúdo de direito subjectivo dos particulares, e não outro
interesse público a cargo da Administração, sendo certo que aquela definição «é
inequivocamente uma mera questão de Direito objectivo, reconduzível à composição
de conflitos de interesses; o interesse da Administração Pública, prosseguido
através de nacionalização ou expropriação, fica satisfeito com a translação da
propriedade e demais direitos correlativos, não subsistindo na apreciação do
valor da indemnização».
Por outro lado, a mera recorribilidade contenciosa do acto administrativo que
fixa o valor da indemnização — pese embora o esforço argumentativo que,
intentando afirmar um entendimento contrário, se ensaiou no acórdão — não
assegura a plena jurisdicionalização da questão substancial, «pois o recurso
contencioso de anulação está circunscrito à legalidade do acto e não pode
apreciar a titularidade e conteúdo do direito que integra a relação material
controvertida senão na exacta medida em que tal releva para o apuramento da
legalidade do acto administrativo em causa».
Não é legítimo sustentar a existência de uma qualquer indissociabilidade entre o
acto de nacionalização (e o interesse político-social que o haja determinado) e
a forma de determinação do valor indemnizatório atribuído às empresas ou bens
nacionalizados.
O Estado, depois de proceder à apropriação pública desses bens constitui-se na
situação de devedor perante os seus ex-titulares, sendo certo que o acto de
nacionalização se consumou com a transferência daquela titularidade.
Já não existindo então qualquer «interesse público administrativo relevante»
tudo se circunscreve a um mero conflito de interesses entre o Estado e os
particulares, conflito esse centrado de pleno no âmbito da função jurisdicional
e cuja decisão, por isso, não pode deixar de pertencer aos tribunais.
A radical administrativização que o Decreto-Lei n.º 332/91, veio trazer à
fixação do valor das indemnizações conferidas aos ex-titulares de direitos sobre
bens nacionalizados, implica assim a inconstitucionalidade das normas em que
aquela disciplina se contém.
A declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas
dos artigos 8.º a 11.º do Decreto-Lei n.º 332/91, implicaria consequencialmente
— e nesse sentido votei — o conhecimento da legitimidade constitucional das
normas revogadas pelo artigo 12.º deste mesmo diploma, também abrangidas no
pedido do Provedor de Justiça, em termos de se evitar a sua repristinação. —
Antero Alves Monteiro Diniz.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 — Votei vencida a solução que prevaleceu no Tribunal (por maioria) quanto à
questão de constitucionalidade suscitada pelo confronto com o artigo 205.º, n.os
1 e 2, da Constituição das normas relativas ao processo de fixação do montante
da indemnização, designadamente as que atribuem competência ao Ministro das
Finanças para fixar por despacho o valor da indemnização e as que definem a
composição, competência e funcionamento das comissões mistas (artigos 8.º a 11.º
do Decreto-Lei n.º 332/91).
Conforme já sustentei em anterior declaração de voto (Acórdão n.º 226/95, ainda
inédito), qualquer critério teleológico de diferença entre função jurisdicional
e administrativa que parta da distinção entre a prossecução do interesse na
realização do direito em si mesmo e a prossecução de um interesse público
autónomo daquele só adquirirá materialidade se não for mera decorrência das
opções do legislador. Onde existir um conflito indiscutível de interesses —
particulares, públicos e particulares, ou até mesmo públicos entre si —, que
exija uma definição da protecção jurídica concedida a esses interesses com
fundamento no direito aplicável, estar-se-á no domínio da função jurisdicional.
Também a possibilidade de invocar o argumento de que na resolução de um conflito
de interesses ainda se poderá estar prosseguindo a realização de um interesse
público que a lei põe a cargo da Administração não dilui, por passo de magia, a
necessidade de preservar a distinção entre função administrativa e
jurisdicional. A legitimidade constitucional de tal argumento depende da
natureza do conflito e não do reconhecimento legal de um determinado interesse
público subjacente à actividade de aplicação da lei. Com efeito, onde o
conflito de interesses for suscitado pela concretização de critérios jurídicos,
nomeadamente por força das dificuldades de interpretação normativa na situação
concreta, estaremos sempre no âmbito da função jurisdicional, mesmo que a defesa
de uma determinada orientação na concretização daqueles critérios seja mais
adequada ou conveniente ao interesse público.
Esta perspectiva é sugerida por Zippelius, quando, com limpidez e em síntese,
afirma:
A função judicativa ou função judicial é a averiguação vinculante de uma
particular situação jurídica, da qual decorre, na maior parte das vezes, ou a
condenação de uma das partes, ou a definição da situação jurídica em que estas
se encontram. Esta última diferença entre judicatura e administração pode ser
ilustrada com a imagem segundo a qual a primeira toma mais em atenção uma
situação jurídica já definida anteriormente e a segunda, ao invés, toma em
atenção o futuro, planeia e configura comportamentos jurídicos e fácticos
segundo a sua adequação efectiva. (Reinhold Zippelius, Teoria Geral do Estado,
trad. port. da 3.ª ed., 1974, p. 149).
Um tal parâmetro de diferenciação entre função administrativa e judicial
resulta, aliás, no Estado de direito democrático, de uma lógica de maximização
das garantias jurídicas dos cidadãos. Não é, assim, uma pura distinção
conceptual a que a Constituição integra e consagra, mas uma emanação da função
de tutela de direitos, manifestada na divisão de poderes e na consequente
diferenciação de funções do Estado (a uma perspectiva da divisão de poderes como
protecção de direitos se refere Hugo J. Hahn, «Gewaltenteilung in der Wertwelt
des Grundgesetzes», in Zur Heutigen Problemattik dez Gewalten Trennung, coord.
de Heins Rausch, 1969, pp. 438 e segs.).
A funcionalização da separação de poderes à protecção de direitos fundamentais
impede uma administrativização de áreas em que a actividade de definição de
situações jurídicas possa servir a realização de metas ou interesses do
Estado-Administração e obsta à consequente diminuição da tutela dos direitos
conflituantes dos cidadãos.
Perante situações de difícil enquadramento em qualquer conceito formal das
funções administrativa e judicial é a materialidade subjacente (nomeadamente a
profundidade dos valores ameaçados) que há-de constituir critério de opção entre
função administrativa e jurisdicional, (cfr. Hugo J. Hahn, text. cit., pp. 460 e
segs.). Ainda se poderá justificar que sejam subtraídas à função jurisdicional,
numa primeira fase, actividades que materialmente nela caberiam, como a
aplicação de coimas do direito de mera ordenação social, em nome do carácter
menos grave do ilícito e da sanção. Porém, essa subtracção não é admissível sem
que se consagre um mecanismo de recurso que garanta a protecção plena dos
direitos afectados.
O reconhecimento pela doutrina do direito administrativo da existência de áreas
da actividade administrativa que também envolvem a composição jurídica de
conflitos, através da mera aplicação do direito, e que constituem uma zona
cinzenta entre a função administrativa e a função jurisdicional, não constitui
argumento a favor da administrativização de tal zona cinzenta. Nessa área, o
critério de distinção de funções há-de ser o da intensidade dos efeitos da
actividade em causa nos direitos dos cidadãos, dada a indiscutível fundamentação
valorativa da divisão de poderes numa meta de maximização garantística de
direitos.
A solução constante do Acórdão não revela, na minha opinião, a verdadeira função
valorativa da divisão de poderes e diferenciação de funções do Estado, da qual
depende o princípio da reserva de juiz.
Não é correcto o primeiro fundamento alternativo, segundo o qual a natureza
administrativa da fixação do valor da indemnização decorreria da prossecução,
nessa fase, do interesse público subjacente ao acto de nacionalização. Na
verdade, na fixação da indemnização segundo critérios não discricionários,
embora comportando alguma indeterminação normativa, não é relevante a
prossecução do interesse público como critério de concretização do direito.
Nem é igualmente aceitável erigir como argumento a favor da inclusão na função
administrativa o facto de a fixação da indemnização se situar numa zona
cinzenta. Este último argumento faz passar a mera constatação da natureza
híbrida de uma certa actividade pelo próprio critério jurídico de legitimação da
sua inclusão numa ou noutra das funções do Estado. A admissão excepcional de
que certas actividades integrem uma função que conceptualmente as não abrangeria
(no caso, a função administrativa), depende de uma justificação valorativa que
apela ao fundamento constitucional da separação de poderes.
2 — Por outro lado, dada a justificação valorativa da divisão de poderes e
atendendo ao seu alcance funcional, ainda que a integração da actividade de
fixação da indemnização na zona fronteiriça pudesse justificar, por razões
técnicas, a sua inclusão na função administrativa, sempre se deveria exigir um
sistema garantístico adequado a assegurar a plena revisibilidade do montante
fixado, em via de recurso. Assim, o problema colocar-se-ia, nessa hipótese,
apenas em face do artigo 20.º da Constituição.
Nesta perspectiva, impedir-se-ia a formulação de um juízo de
inconstitucionalidade, com base numa interpretação das normas sub judicio
segundo a qual elas não violariam Constituição desde que fosse assegurado um
recurso de jurisdição plena (ainda que para os tribunais administrativos), com
fundamento nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição.
Todavia, uma tal perspectiva, que surge no limite das possibilidades de
compatibilizar tais normas com o fundamento valorativo da divisão de poderes — a
maximização da protecção de direitos e o controlo dos poderes pelo direito —
requer uma efectiva concretização no direito vigente. Se a referida
concretização não for reconhecida, esta lógica argumentativa levará a concluir
pela inconstitucionalidade das normas sub judicio.
A solução seguida pelo Acórdão é, todavia, totalmente distinta. No núcleo de
argumentação expendida, o recurso administrativo de mera anulação é concebido
como garantia suficiente dos direitos dos titulares dos bens nacionalizados, na
medida em que a sentença anulatória ou declarativa da nulidade de um acto
administrativo tem um efeito reconstitutivo da situação que existiria se não
tivesse sido praticado o acto ilegal ou se o acto tivesse sido praticado sem
ilegalidade. Por outro lado, sublinha-se que a anulação se pode fundamentar em
vícios como o erro na interpretação da lei ou nos pressupostos de facto do acto,
permitindo-se a intervenção de peritos, o que aproximaria o recurso de anulação
de uma revisibilidade plena e do recurso de plena jurisdição.
Todavia, se uma tal doutrina sobre o recurso de anulação é pacífica, já a ilação
de que esta sua natureza o torna equiparável a um recurso de plena jurisdição
constitui tese inédita na doutrina portuguesa. O recurso de anulação não impõe
a plena revisibilidade ou reapreciação em sede de recurso, mas apenas admite
alguma possibilidade de reapreciação do pressuposto de facto da fixação da
indemnização, dependente da iniciativa do julgador, nomeadamente quanto à
intervenção de peritos. É ainda, como refere Freitas do Amaral «processo
objectivo feito a um acto» e não processo subjectivo de partes (Freitas do
Amaral, Direito Administrativo, iv, 1988, pp. 126 e 129).
Por outro lado, a própria qualificação como actividade administrativa (ou de
natureza híbrida, mas nela incluída) da fixação da indemnização — pressuposto da
argumentação que se considera neste momento — implica a admissibilidade de uma
certa discricionaridade na concretização dos critérios jurídicos da
Administração, ainda que eminentemente técnicos. Ora, tal concretização só
poderia ser controlada através de um recurso de plena jurisdição, que, com
autonomia da actividade administrativa anterior, revisse o acto praticado e
dissesse definitivamente o direito. Assim, apesar das virtualidades apontadas
pelo Acórdão ao recurso de anulação, nunca ele garantiria a verdadeira separação
de poderes de que aqui se trata (cfr., sobre esta questão, Vieira de Andrade,
apud «A fixação das indemnizações por nacionalização e o princípio da reserva do
juiz», Joaquim Pedro Formigal Cardoso da Costa, Cadernos de Ciência e Técnica
Fiscal, n.º 171, 1995, p. 166).
E, por fim, desenvolvendo esta lógica argumentativa, é claro que o recurso de
anulação não concede ao particular qualquer título para a prática do acto
substitutivo do anulado (a sentença final anula ou confirma o acto recorrido,
não declara quaisquer direitos ou obrigações do recorrente ou da Administração;
o Tribunal não pode condenar a Administração à prática de qualquer acto, ainda
que vinculado — cfr. Freitas do Amaral, ob. cit., p. 129. Tudo depende, ainda,
do comportamento da Administração no cumprimento da sentença. O não cumprimento
da sentença condenatória é, aliás, um ilícito que, de alguma forma, pode ser
«comprado» pela Administração, nos termos do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º
256-A/77, de 17 de Julho.
Assim, também não é o regime de execução de sentenças que o Acórdão invoca
(artigos 208.º, n.os 2 e 3, da Constituição, 95.º e 96.º da LPTA e 5.º e
seguintes do Decreto-Lei n.º 256-A/77), no seu desiderato de pôr a situação de
facto de acordo com a situação de direito constituída pela decisão judicial de
anulação e de assegurar o respeito pelo julgado, que pode satisfazer a garantia
constitucional de controlo da função administrativa pelos órgãos jurisdicionais
— emanação da separação de poderes.
Um tal regime de execução de sentenças, a par do efeito reconstitutivo da
sentença anulatória e com fundamento na própria sentença, apenas exprime um
sistema garantístico intra-funcional, isto é, no interior da actividade
administrativa, controlando a sua legalidade, em situação em que o fim último do
acto praticado for a prossecução de um interesse público diverso do «dizer o
direito» no caso concreto. O tribunal nunca se substitui à Administração,
conformando directamente através de sentença a situação jurídica controvertida.
Poderá, tão-só, chegar à condenação da Administração, através da especificação
de actos devidos e da condenação em indemnizações por responsabilidade civil
(cfr. Paulo Otero, «A execução do acto administrativo no Código do Procedimento
Administrativo», Scientia Iuridica, Julho-Dezembro 1992, p. 226).
Em suma, o Acórdão percorre um caminho em que se tornam visíveis duas
alternativas: uma configuração jurídica em que são já atribuídas aos tribunais
administrativos, em sede de recurso de anulação, as competências de uma
verdadeira jurisdição plena, ficcionando-se, assim, um sistema que não existe no
nosso direito; ou uma concepção incorrecta de jurisdição plena, que não comporta
uma esgotante regulação da situação jurídica controvertida pela sentença em sede
de recurso de anulação do acto administrativo.
Ambas as alternativas são, salvo o devido respeito pela tese vencedora,
insustentáveis.
3 — Por fim, a invocação feita pelo Acórdão do artigo 268.º, n.º 5, da
Constituição como argumento decisivo a favor de uma jurisdição administrativa
plena (princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa) não pode
proceder no contexto da fundamentação do Acórdão.
Com efeito, se se entender que o princípio consagrado no artigo 268.º, n.º 5, em
conjugação com uma certa interpretação do artigo 69.º, n.º 2, da LPTA, tem
também o papel de complementar ou até substituir os outros meios processuais de
impugnação do acto administrativo (teorias do alcance médio e máximo), será
inaceitável ter antes admitido a plena jurisdição no recurso contencioso de
anulação. Aquela natureza da acção para reconhecimento de um direito ou
interesse legítimo só é compreensível num sistema em que o recurso de anulação é
apenas um recurso de legalidade (assim, Freitas do Amaral, ob. cit., p. 128).
Por conseguinte, ela constitui uma prova de que a natureza do recurso de
anulação não foi substancialmente transfigurada.
Por outro lado, ainda mesmo que se prescindisse de atribuir ao recurso de
anulação a natureza de plena jurisdição não poderia sustentar-se que a protecção
jurisdicional, no caso sub judicio, se bastaria com a interpretação do artigo
69.º, n.º 2, da LPTA, no sentido de uma teoria do alcance médio. O Tribunal só
poderia não declarar a inconstitucionalidade das normas em causa adoptando uma
teoria do alcance máximo, considerando inconstitucional o artigo 69.º, n.º 2, da
LPTA, e tomando partido na controvérsia doutrinária que o Acórdão retrata com
precisão.
Ora, é muito duvidoso que o Tribunal deva alicerçar uma decisão de não
inconstitucionalidade na enumeração de perspectivas doutrinais controvertidas.
No entanto, só tomando partido o Tribunal poderia não declarar a
inconstitucionalidade. Como, na realidade, o Tribunal se limita a dar conta da
polémica sem optar por uma doutrina do alcance máximo, ter-se-á de concluir que
a decisão de não inconstitucionalidade não corresponde, com total rigor, à sua
premissa necessária — a de que bastaria uma interpretação do artigo 69.º, n.º 2,
de acordo com a Constituição, segundo uma teoria do alcance médio.
Perante tal premissa, a que eu admitiria aderir para a formação de uma decisão
consensual (e a título de argumentação subsidiária relativamente à que expendi
em face do artigo 205.º, n.os 1 e 2, da Constituição), só poderia, em
consciência, concluir pela inconstitucionalidade das normas referidas. Uma
decisão de não inconstitucionalidade teria de ser fundamentada,
obrigatoriamente, na tese da revogação do artigo 69.º, n.º 2, da LPTA, após a
revisão constitucional de 1989. — Maria Fernanda Palma.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 — Desde o início acompanhei a posição constante do memorando do primitivo
relator, Conselheiro Monteiro Diniz, entendendo que sofriam de
inconstitucionalidade material, por violação do princípio da reserva
jurisdicional dos tribunais, inscrito no artigo 205.º da Constituição, os
artigos 8.º a 11.º do Decreto-Lei n.º 332/91, de 6 de Setembro, do mesmo passo
que entendi não sofrerem de inconstitucionalidade os artigos 1.º a 7.º do mesmo
diploma.
A posição do primitivo relator não logrou integral vencimento, tendo a maioria
do Tribunal perfilhado o entendimento de que os referidos artigos 8.º a 11.º
daquele diploma não estavam afectados do vício de inconstitucionalidade.
Daí que viesse a ficar vencido em parte, especificamente no que tocava às
alíneas b) (referente ao artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 332/91), c) (referente
aos artigos 9.º a 11.º do mesmo diploma) e d) (referente à não tomada de
conhecimento do pedido de inconstitucionalidade formulado quanto às normas
revogadas pelo artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 332/91, e que seriam repristinadas
pela eventual declaração de inconstitucionalidade dos artigos 8.º a 11.º do
mesmo diploma).
Direi, brevemente, as razões por que votei vencido.
2 — Sustentei durante o debate — manifestando concordância com a posição do
primitivo relator, como referi — que a fixação das indemnizações por
nacionalização deveria caber aos tribunais, os quais teriam a primeira e última
palavra na matéria.
As razões deste entendimento constam do meu voto de vencido junto ao Acórdão n.º
226/95, ainda inédito, acórdão que não julgou inconstitucionais os artigos 16.º,
n.º 6, da Lei n.º 8/77, de 26 de Outubro (na redacção introduzida pelo
Decreto-Lei n.º 343/80, de 2 Setembro), e 24.º do Decreto-Lei n.º 51/86, de 14
de Março. Estes preceitos disciplinavam a competência das antigas comissões
arbitrais, as quais vieram a ser substituídas pelas comissões mistas reguladas
nos artigos 9.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 332/91. Escrevi então:
Tal como sustenta Rebelo de Sousa (in Comissões Arbitrais, Indemnizações e
Privatizações, estudo também publicado no vol. v, de 1991, da revista Direito e
Justiça, pp. 92 e segs.) entendo que a fixação do valor das indemnizações
previstas em matéria de nacionalizações ou expropriações cabe no âmbito material
da função jurisdicional, à face da Constituição portuguesa. Essa é, de resto, a
orientação tradicional do direito francês desde a revolução de 1789, vendo no
juge judiciaire o «guardião natural da propriedade privada e das liberdades
essenciais» (cfr. Franck Moderne, «L’Exemple des Nationalisations Fracasses», in
Direito e Justiça, vol. v, p. 24, nota 25; quanto à situação espanhola, note-se
que, a propósito da nacionalização do Grupo Rumasa, os ex-titulares das empresas
nacionalizadas suscitaram a questão de inconstitucionalidade da lei de
nacionalização perante o tribunal judicial — cfr. Pierre Bon, «Les
Nationalisations dans la Jurisprudence Constitutionnelle de l’Europe de
l’Ouest», in Revue Française de Droit Constitutionnel, n.º 17, 1994, pp. 30 e
segs.).
Tal como Rebelo de Sousa, creio que, na matéria de indemnização por
nacionalização ou por expropriação por utilidade pública, «não existe legalmente
interesse público administrativo autónomo relevante». A decisão de
nacionalização é de natureza política ou, pelo menos, de direito público; a
decisão de expropriar por utilidade pública é de natureza administrativa. Os
critérios das respectivas indemnizações — que não têm de ser constitucionalmente
idênticos, como afirmou, e bem, o Tribunal Constitucional no citado Acórdão n.º
39/88 — hão-de constar da lei. Mas há-de caber ao juiz ordinário a primeira e a
última palavra na resolução do conflito entre o particular, ex-titular do bem
nacionalizado ou expropriado, e a Administração, e tal «primeira palavra» há-de
caber ao tribunal judicial e não ao tribunal administrativo. Como nota ainda
Rebelo de Sousa, «se, em tese, existisse caso em que, por absurdo, seria
defensável a existência de um interesse administrativo autónomo a ponderar na
fixação das indemnizações seria no previsto [no] Código das Expropriações, que,
no entanto, precisamente o afasta», do mesmo passo que «falar num interesse
político-legislativo autónomo do interesse essencial de dirimir conflitos de
interesses seria admitir que um direito como o é a indemnização mereceria menos
protecção em face de actos legislativos» (artigo citado, revista citada p. 96;
do mesmo autor, mais desenvolvidamente, «As Indemnizações por Nacionalização e
as Comissões Arbitrais», in Revista da Ordem dos Advogados, ano 49.º, ii, 1989,
pp. 378 e segs.; e ainda Oliveira Ascensão, «A Reserva Constitucional de
Jurisdição», in O Direito, ano 123.º, ii/iii, 1991, pp. 465 e segs.).
Admitindo o critério de distinção da actividade administrativa e da actividade
judicial que o Tribunal Constitucional vem adoptando, na esteira do ensino de
Afonso Rodrigues Queiró, e considerando que a função jurisdicional se
caracteriza por ter como objecto e como fim específico a resolução de uma
questão de direito (cfr. Acórdãos n.os 104/85, 443/91, 52/92 e 179/92, publicado
o primeiro nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º Vol., pp. 633 a segs., e
os restantes no Diário da República, II Série, n.º 78-S, de 2 de Abril de 1992,
I Série-A, n.º 62, de 14 de Março de 1992, e II Série, n.º 216, de 18 de
Setembro de 1992, respectivamente), creio que a primeira e a última palavra na
fixação do quantum indemnizatório hão-de caber aos tribunais, visto aí se
encontrar, indiscutivelmente, a realização do interesse público de composição de
conflitos, uma vez que importa definir autoritariamente a resolução de uma
questão de direito, ou seja, a aplicação dos critérios indemnizatórios legais ao
caso concreto controvertido.
Sem desconhecer as dificuldades de aplicação (bastará citar Gomes Canotilho e
Canelas de Castro, «Constitucionalidade do Sistema de Liquidação Coactiva
Administrativa de Estabelecimentos Bancários», in Revista da Banca, n.º 23,
1992, pp. 59 e segs.; e ainda Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pp. 792-793) e sem
contrariar frontalmente mesmo o entendimento de que a fixação do «núcleo duro»
da função jurisdicional possa ser temporalmente contingente em diferentes ordens
jurídicas do nosso «círculo cultural» (por exemplo, no caso de despejos,
execuções, falências, divórcios, fixação de indemnização em expropriações e
nacionalizações), reverterei em todo o caso à ideia atrás referida de que, desde
a Revolução Francesa e no círculo de direitos de família romano-germânica, em
especial dos direitos influenciados pelo direito francês, é o juiz dos tribunais
comuns «o guardião natural da propriedade privada e das liberdades essenciais»
(Franck Moderne), aquele que assegura cabalmente o respeito pelo princípio da
igualdade perante os encargos públicos e evita que a Administração queira
prejudicar os titulares dos bens nacionalizados ou dos bens expropriados,
invocando obscuras razões de ordem financeira ou domínios de discricionaridade
técnica insusceptíveis de ser sindicadas num recurso administrativo de mera
anulação (cfr. Freitas do Amaral e Robin de Andrade, «As Indemnizações por
Nacionalizações em Portugal», in Revista da Ordem dos Advogados, ano 49.º, vol.
i, 1989, pp. 73-74, e ainda, a «Adenda», pp. 79 a 81; Sousa Franco, As
Indemnizações e as Privatizações como Institutos Jurídico-Financeiros, pp. 125 e
segs., nota 4).
Concluo, assim, que a resolução dos litígios do tipo do dos autos deve caber aos
tribunais comuns, não estando excluído a priori que o legislador possa optar por
um tribunal arbitral necessário, desde que aí se verifiquem as necessárias
condições de imparcialidade (cfr. citado Acórdão n.º 52/92 deste Tribunal).
Por isso, entendo que a sujeição da decisão desse «tribunal arbitral» a
homologação ministerial inutiliza a solução arbitral, tornando inconstitucional
o n.º 6 do artigo 16.º da Lei n.º 80/77, na redacção vigente a partir da
alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 343/80, por violação dos artigos
205.º, n.os 1 e 2, e 206.º da Lei Fundamental.
Acrescentarei uma última palavra a este propósito.
Como é evidente, a minha discordância é radical quanto à tese daqueles que não
votam a inconstitucionalidade do preceito em causa porque entendem que a
actividade calculatória e de fixação da indemnização definitiva é essencialmente
administrativa, cabendo, nos termos gerais, recurso de anulação do respectivo
acto administrativo final. Mesmo assim, neste campo houve vozes que sustentaram
ser necessário sempre um recurso de plena jurisdição, dados os interesses dos
particulares em jogo.
A minha discordância é menor relativamente à tese daqueles que, pensando como eu
que a fixação de indemnização é uma actividade materialmente jurisdicional,
admitem que a Administração possa ter a primeira palavra na matéria, desde que
aos tribunais administrativos caiba a última palavra, havendo, por isso, nesse
caso de se assegurar uma via processual que garanta a plena revisibilidade desse
acto administrativo (recurso administrativo de plena jurisdição; eventualmente,
recurso à acção administrativa a que se refere o n.º 5 do artigo 268.º da
Constituição — cfr. artigos 69.º e seguintes da Lei de Processo nos Tribunais
Administrativos e Fiscais). Entre a minha posição e a daqueles que perfilham a
indicada tese, há, apesar de tudo, uma concordância substancial quanto à
conclusão de que se está perante uma actividade materialmente jurisdicional.
Para esta última posição, o n.º 6 do artigo 16.º da Lei n.º 80/77 não seria
inconstitucional, antes o sendo o n.º 7 do mesmo artigo 16.º, enquanto não prevê
que o recurso aí contemplado seja um recurso de plena jurisdição, que garanta a
plena revisibilidade do acto e uma decisão judicial eventualmente substitutiva
do acto administrativo.
Relativamente aos que perfilham a tese acolhida no várias vezes citado Acórdão
n.º 280/89, a concordância entre a minha posição e aqueles é praticamente total.
Deles me afasto apenas no ponto em que admitem que o acto administrativo possa
ter uma valência limitada (no fundo, esse acto estaria sujeito a condição
resolutiva) e que seja cumulável com a impugnação administrativa do acto o
recurso ilimitado aos tribunais judiciais. As razões de tal afastamento radicam
não só na interpretação que reputo mais correcta do n.º 1 do artigo 16.º da Lei
n.º 80/77, como também no entendimento que faço do disposto no artigo 214.º, n.º
3, da Constituição, considerando que as vias administrativa e judicial não são
cumuláveis, mas exclusivas uma da outra, quanto a um certo litígio concreto».
As razões que me levaram a votar vencido relativamente ao Acórdão n.º 226/95
valem inteiramente para considerar inconstitucional o bloco normativo
constituído pelos artigos 8.º a 11.º do Decreto-Lei n.º 332/91.
De facto, no diploma de 1991, o propósito do legislador foi confessadamente o de
clarificar as ambiguidades do sistema anterior das comissões arbitrais, as quais
tinham natureza jurisdicional segundo a jurisprudência largamente dominante do
Supremo Tribunal Administrativo (veja-se, em sentido oposto, o acórdão da 1.ª
Secção deste Alto Tribunal, de 5 de Dezembro de 1991, in O Direito, ano 126.º,
1994, i-ii, pp. 287 e segs., com anotação desfavorável de João Paulo Cancella de
Abreu), pelo que a homologação das respectivas decisões seria inadmissível em
termos constitucionais (orientação diversa foi firmada pelo Tribunal
Constitucional, em especial no Acórdão n.º 39/88, in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 11.º Vol., pp. 233 e segs., reafirmada recentemente pelo citado
Acórdão n.º 226/95, ainda inédito). Isso levou um Deputado da oposição, no
debate parlamentar da lei da autorização legislativa, a acusar a maioria de
querer passar definitivamente «uma certidão de óbito» às comissões arbitrais,
violando o princípio da confiança inerente ao Estado de direito democrático
(intervenção do Deputado Nogueira de Brito, transcrita em Joaquim Pedro F.
Cardoso da Costa, «A Fixação das Indemnizações por Nacionalização e o Princípio
da Reserva do Juiz», in Estudos em Homenagem à Dr.ª Maria de Lourdes Órfão de
Matos Correia e Vale, Cadernos da Ciência e Técnica, Lisboa, 1995, p. 138, nota
5).
Continuo a pensar que, em ordenamentos jurídicos como o nosso, as figuras da
nacionalização e de expropriação não têm natureza substancialmente diversa, pelo
que se afigura incompreensível que não se exija a garantia da via judicial para
a fixação de indemnizações a que têm direito os titulares dos bens
nacionalizados, quando tal via está garantida para os titulares de bens
expropriados e é mesmo uma exigência constitucional a reserva do juiz neste
último caso, segundo alguns dos juízes que formaram a maioria vencedora. De
facto, parece-me inteiramente correcta a posição de Alves Correia, ao afirmar o
seguinte:
A distinção entre os conceitos de «expropriação», «socialização» e
«nacionalização» é, na nossa opinião, apenas de carácter teleológico. Com a
«expropriação» pretende-se que determinado bem seja afecto a um fim específico
de utilidade geral ou de interesse público (v. g. a expropriação de um terreno
para abrir uma auto-estrada), facto que se traduz numa modificação de situações
jurídicas singulares, sem que seja modificado o sistema de direito privado
relativo ao domínio dos bens. Com a «socialização» pretende-se criar novas
formas de propriedade (propriedade social, colectiva) no que respeita a
determinados bens ou empresas, facto que origina uma transformação do próprio
instituto da propriedade. O termo nacionalização significa algo muito próximo
do conceito de «socialização», pretendendo-se que determinados bens passem a
constituir propriedade de toda a nação, de todo o povo […] («As Garantias do
Particular na Expropriação por Utilidade Pública», separata do Boletim da
Faculdade de Direito, Coimbra, 1982, p. 55).
Estando-se em todos estes casos perante um acto de ablação de propriedade
privada pelo Estado, embora com finalidades diversas (segundo ainda o mesmo
administrativista, perfilhando a opinião de Gomes Canotilho e de Vital Moreira,
a socialização e a nacionalização «não são mais do que especiais modos de ser do
instituto de expropriação» — p. 58 da mesma obra), deve garantir-se em todos os
casos que os tribunais tenham a primeira e a última palavra na matéria de
indemnizações (em sentido diverso, na linha de orientação de Vieira de Andrade,
veja-se Joaquim Pedro F. Cardoso da Costa, estudo citado, pp. 151 e segs.,
maxime 164 e segs., o qual exige apenas que haja «atribuição de poderes plenos
aos órgãos jurisdicionais competentes para a decisão final»).
4 — Face ao que deixo dito, não posso deixar de censurar vivamente a tese que
fez maioria, visto que se contentou, em termos de exigência constitucional, com
a garantia do recurso contencioso de anulação relativamente ao despacho do
Ministro das Finanças de fixação do valor definitivo da indemnização (artigos
8.º, n.º 2, e 9.º, n.º 8, do Decreto-Lei n.º 332/91), afirmando que «a
determinação do montante da indemnização por nacionalização não [era] uma
actividade que esteja constitucionalmente reservada aos juízes e aos tribunais»
(ponto 9.4 do acórdão), chegando ao ponto de invocar misteriosas «razões
pragmáticas, relacionados com a complexidade da determinação do quantum da
indemnização por nacionalização».
Trata-se de um grave precedente, que permitirá no futuro a administrativização
do processo de expropriação por utilidade pública, ao arrepio da tradição
nacional e da dos direitos do nosso círculo cultural.
5 — Por último, a tese maioritária, ao dispensar, ao menos, um recurso de plena
jurisdição para tutela dos interesses dos titulares de bens nacionalizados,
revela a sua despreocupação com a garantia de pleno acesso aos tribunais,
consagrada pelo artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, ao contrário da tese
daqueles que sustentam que, seja como for, há-de estar sempre garantido um
contencioso de plena jurisdição na matéria.
Parece, de facto, estranho que se procure demonstrar no acórdão que tal via está
plenamente assegurada com os meios fornecidos pelas leis do processo
administrativo quando, logo de seguida, se dá detalhada conta das incertezas
jurisprudenciais sobre o âmbito de aplicação da acção para reconhecimento de um
direito ou interesse legalmente protegido, da diversidade de entendimentos das
diferentes correntes jurisprudenciais e doutrinais sobre o mesmo instituto, e se
valorizam, de forma em minha opinião excessiva, as virtualidades do regime de
execução dos julgados em matérias de contencioso administrativo.
Em vez de o Tribunal Constitucional definir um regime constitucionalmente
adequado de tutela dos particulares, a tese maioritária achou que o direito
ordinário existente já tutelava suficientemente os interesses desses
particulares em matéria indemnizatória ao assegurar, pelo menos, o recurso
contencioso de anulação…
Retomando o meu voto de vencido atrás transcrito, limito-me a reafirmar a minha
radical discordância com a tese «minimalista» que acabou por obter vencimento.
6 — Tendo concluído pela inconstitucionalidade dos artigos 8.º a 11.º do
Decreto-Lei n.º 332/91, por violação do princípio constitucional da reserva do
juiz, votei consequentemente vencido quanto à alínea d) da conclusão. De facto,
entendo que também são inconstitucionais as normas revogadas pelo artigo 12.º
daquele diploma, no que toca às comissões arbitrais anteriormente existentes
(artigo 16.º, n.º 6, da Lei n.º 80/77, na redacção introduzida em 1980; artigo
24.º do Decreto-Lei n.º 51/86). As razões desse meu juízo constam do voto de
vencido já várias vezes citado, junto ao Acórdão n.º 226/95 deste Tribunal.
Por isso, não poderia votar a tese do não conhecimento da questão de
constitucionalidade dessas normas revogadas que, no meu entendimento, deveriam
ser repristinadas por força do juízo da inconstitucionalidade preconizado. —
Armindo Ribeiro Mendes.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, em parte, por entender que se deveria ter declarado a
inconstitucionalidade do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 332/91 — por violação do
disposto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição —, na medida em que nele se não
prevê um recurso de plena jurisdição do acto do Ministro das Finanças.
Na motivação deste voto, sigo, na generalidade, a linha argumentativa referida
nas declarações de voto do Ex.mo Conselheiro Presidente Cardoso da Costa e da
Ex.ma Conselheira Maria Fernanda Palma (esta, no que se refere à sua
argumentação subsidiária, a que adiro integralmente, por reflectir exactamente o
meu entendimento sobre a matéria).
Apenas duas breves notas complementares.
A primeira, para assinalar que terá sido precisamente esta necessidade, em
certos casos, de um recurso contencioso de plena jurisdição, que terá conduzido,
na revisão constitucional de 1982, à adopção do texto do então n.º 3 do artigo
268.º: É garantido aos interessados «recurso contencioso», com fundamento em
ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos definitivos e executórios,
independentemente da sua forma, bem como «para obter o reconhecimento de um
direito ou interesse legalmente protegido». Esta necessidade, aliás, já fora
notada, ainda em plena vigência do Estado Novo, no Parecer da Câmara Corporativa
atinente à proposta de lei n.º 14/X (revisão constitucional de 1971), onde se
referira a conveniência em englobar no proposto novo n.º 21 do artigo 8.º da
Constituição de 1933 «não apenas os recursos contenciosos de anulação de actos
administrativos, os únicos considerados, mas também os recursos de «mérito» e os
recursos de plena jurisdição (acções, na técnica das nossas leis), referidos a
actos administrativos, em que se não trata apenas de averiguar em que medida
esses actos são juridicamente incorrectos ou não foram praticados de acordo com
uma norma, mas também de decidir se e em que medida ofenderam os direitos
subjectivos de um administrado, terminando o tribunal eventualmente por condenar
a Administração a uma prestação ou mesmo por se substituir a ela, rectificando
ou reformando esses actos», pelo que se aventava que naquele preceito se
consignasse como direito: Haver recurso contencioso em caso de lesão de direitos
ou interesses legítimos por actos da administração pública («Revisão
Constitucional», 1971, Textos e Documentos, pp. 94 a 97).
A segunda nota tem por fim sublinhar que, mesmo para quem — como é o meu caso —
entenda que a garantia constitucional do recurso contencioso, tal como se
encontra consagrada, há-de ter como efeito restringir ao mínimo a denominada
discricionariedade técnica da Administração, enquanto área subtraída ao controlo
jurisdicional, se afigura útil, em casos como o ora em apreço, a possibilidade
de lançar mão a um recurso de plena jurisdição. É que, como bem se sublinha na
declaração de voto da Ex.ma Conselheira Fernanda Palma, o recurso de anulação
não tem como efeito a obtenção automática pelo administrado do acto
substitutivo, sendo certo que só em casos contados o teor deste pode ser
efectivamente deduzido do conteúdo da sentença anulatória.
Por estes motivos, entendi que se deveria declarar, com força obrigatória geral,
a inconstitucionalidade parcial, nos termos atrás apontados, do dispositivo
legal em causa. — Luís Nunes de Almeida.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido na medida em que o acórdão não julgou inconstitucional o artigo
9.º do Decreto-Lei n.º 332/91, por violação do direito de acesso aos tribunais
(artigo 20.º, n.º 1, da Constituição), enquanto nele não se prevê a
possibilidade de impugnação e revisão do acto do Ministro das Finanças, de
fixação definitiva do valor da indemnização, através de um meio contencioso de
plena jurisdição. As razões do meu voto coincidem no essencial com as que em
defesa da mesma tese são invocadas pelo Conselheiro Cardoso da Costa, na parte
correspondente da sua declaração de voto. — José de Sousa e Brito.
DECLARAÇÃO DE VOTO
I
1 — Na declaração de voto que juntei ao Acórdão n.º 39/88 não questionei a ideia
matriz de que então (como agora) partiu o Tribunal, segundo a qual a fixação das
indemnizações devidas aos titulares de bens nacionalizados não tem de pautar-se
pelos mesmos «critérios de justiça» a que há-de (constitucionalmente) obedecer a
fixação das indemnizações em caso de expropriação por utilidade pública. Mesmo
partindo dessa premissa, pronunciei-me nesse ensejo, todavia, ao arrepio do que
foi o entendimento do Tribunal, no sentido da inconstitucionalidade de duas das
soluções consagradas, em matéria de indemnização dos titulares daqueles bens,
pela Lei n.º 80/87, de 26 de Outubro, e pelo Decreto-Lei n.º 528/76, de 7 de
Julho — por considerar que nem esses menos exigentes critérios de justiça, a
que, em tal domínio, sempre há-de obedecer a indemnização, eram por elas
respeitados. Tais soluções legislativas, cuja inconstitucionalidade votei,
foram as seguintes: — a que mandava atender a um período de dez anos no cálculo
do valor de cotação das acções ou do valor de rendibilidade das empresas
nacionalizadas (n.º 1 dos artigos 3.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 528/76, para o
qual remetia o artigo 14.º, n.º 1, da Lei n.º 80/77); — e a que estabelecia (e
estabelece) nos termos constantes do «Anexo» à Lei n.º 80/77 as diferentes
classes (segundo as respectivas taxas de juro, anos de amortização e período de
diferimento) dos títulos de dívida pública entregues para pagamento das
indemnizações aos respectivos titulares (artigo 19.º, n.º 2, da mesma Lei).
Nada tenho a alterar agora ao que escrevi nessa declaração — cujos termos
integralmente mantenho, e com não menor força de convicção.
Acontece, porém, que a norma do artigo 19.º, n.º 2, da Lei n.º 80/77 (classes
dos títulos de indemnização), embora se mantivesse e mantenha em vigor, não foi
de novo questionada no presente processo e não integra, consequentemente, o
respectivo objecto — pelo que, tal como o Tribunal, não tenho de, nem mesmo
posso, voltar a ajuizá-la neste momento; e acontece, por outro lado, que o
regime resultante da combinação do artigo 14.º, n.º 1, daquela Lei com os n.os 1
dos artigos 3.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 528/76 (período de tempo a considerar
na determinação do valor de cotação das acções ou de rendibilidade das empresas)
foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 332/91, de 6 de Setembro, e substituído por um
outro, aí definido, que, tal como o Tribunal considerou, tão pouco já se me
afigura dever ser censurado, sob o ponto de vista da sua constitucionalidade.
Daí que haja podido, desta feita, acompanhar o acórdão do Tribunal, na parte em
que nele se apreciaram as novas regras para o cálculo das indemnizações dos
titulares de empresas nacionalizadas, estabelecidas pelo dito Decreto-Lei n.º
332/91. Ou seja: que tenha podido, tanto subscrever na íntegra a alínea a) da
decisão do precedente acórdão, como o essencial da correspondente fundamentação.
Assim, apenas sublinharei, quanto a essa parte do aresto, e ainda com referência
ao período de tempo a levar em conta para determinar os valores de cotação das
acções ou de rendibilidade das empresas, não ignorar que tal período fixado
agora em cinco anos — é, ainda assim, bastante longo e está inteiramente fora,
por exemplo, do que o Conselho Constitucional francês considerou admissível, no
tocante à fixação das indemnizações devidas pelas nacionalizações operadas em
França, a partir de 1981. Simplesmente, e desde logo, o caso francês não pode
aqui servir (ou, pelo menos, servir facilmente) de termo comparativo, já que os
correspondentes princípios constitucionais, em matéria de indemnização por
nacionalizações, não são idênticos (como se recorda no Acórdão) aos da
Constituição portuguesa; e depois — tendo particular e justamente em conta os
específicos e menos exigentes critérios de justiça consentidos por esta última
nessa matéria — pode aceitar-se (como já aceitara em princípio, de resto, na
declaração de voto junta ao Acórdão n.º 39/88) que o legislador português haja
entendido razoável não adoptar um período muito curto para o estabelecimento (em
ordem a esse efeito indemnizatório) do valor das acções ou da rendibilidade das
empresas nacionalizadas.
Eis por que, representando o novo prazo para o cálculo desse valor, reduzido a
metade do anterior, um acentuado progresso (como igualmente se fez notar no
precedente acórdão) e mesmo uma alteração qualitativa relativamente a esse
outro, já não encontrei fundamento claro e inequívoco para julgá-lo em absoluto
excessivo e, consequentemente, inconstitucional.
II
2 — Diversamente do que sucede com a parte dele em que se apreciam normas de
carácter «material» relativas ao cálculo das indemnizações, já não pude, ao
invés, acompanhar inteiramente o presente aresto, no que tange ao juízo que no
mesmo se faz acerca das normas do Decreto-Lei n.º 332/91 relativas ao
«procedimento» de fixação do valor das indemnizações e respectiva garantia
contenciosa.
Essa parcial mas significativa divergência — que adiante explicitarei — resulta
do que penso deverem ser as respostas a dar às duas interrogações fundamentais —
a relativa à admissibilidade da atribuição à Administração da competência para
determinar originária ou inicialmente o valor das indemnizações compensatórias
da nacionalização de empresas; e, no caso de tal ser realmente admissível, a
relativa, depois, à natureza e extensão das garantias contenciosas que hão-de,
nesse caso, ser concedidas aos interessados — que a regulamentação daquele
procedimento suscita sub specie constitutionis. Efectivamente, entendo hoje —
como já deixei dito em declaração de voto que juntei ao Acórdão n.º 226/95 — que
tais respostas hão-de ser as seguintes:
1.º é lícito ao legislador atribuir à Administração a competência para fixar,
em primeira linha, o valor de indemnização de uma empresa nacionalizada. Ou
seja: essa fixação inicial da indemnização pode operar-se através de um acto
administrativo, sem que isso envolva violação do princípio constitucional da
«reserva do juiz» (artigo 205.º da Constituição);
2.º no caso de o legislador adoptar tal solução — da determinação do valor da
indemnização por acto administrativo — há-de, porém, assegurar a revisibilidade
jurisdicional plena e integral desse acto. Ou seja: há-de prever um meio ou
mecanismo processual que dê aos interessados a possibilidade de fazerem intervir
um «tribunal» (isto é, uma instância imparcial e independente, deles e da
Administração) na fixação directa e definitiva do valor da indemnização. Só
assim, de facto, se satisfará, na hipótese, o princípio constitucional do
«direito de acesso aos tribunais» (artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.os 4 e 5, da
Constituição).
Devo entretanto sublinhar que, ao perfilhar este ponto de vista, estou
evidentemente a afastar-me agora do entendimento a que, acompanhando nessa
altura o Tribunal sem qualquer reserva expressa sob o ponto em apreço, aderi no
Acórdão n.º 39/88. A tanto, porém, fui conduzido por uma nova reflexão sobre a
problemática em causa, suscitada pelo largo debate doutrinal e forense a que a
mesma deu azo desde então, e se acha recenseado e comentado, por último, em J.
Pedro Cardoso da Costa, «A fixação das indemnizações por nacionalização e o
princípio da reserva do juiz» (nos Estudos em homenagem à Dr.ª Maria de Lourdes
Órfão de Matos Correia e Vale, vol. 171 de Ciência e Técnica Fiscal, Lisboa,
1995).
Pois bem: sendo os que ficam referidos os postulados fundamentais sobre essa
problemática, de que parto, é bom de ver que não poderei divergir, e de facto
não divirjo, do precedente acórdão quando nele se conclui pela não
inconstitucionalidade: a) — das normas do artigo 8.º (interessam agora
verdadeiramente os n.os 1 e 2) do Decreto-Lei n.º 332/91, que atribuem ao
Ministro das Finanças a competência para fixar o (novo) valor da indemnização,
determinado previamente pela Direcção-Geral da Junta de Crédito Público; b) —
das normas do artigo 9.º (bem como, naturalmente, dos artigos 10.º e 11.º, que o
complementam) do mesmo Decreto-Lei, enquanto aí se prevê a possibilidade de
reapreciação do valor indemnizatório por uma comissão mista de peritos, com base
em cujo «parecer» ainda o Ministro das Finanças «emitirá despacho definitivo
quanto à fixação» desse valor.
Mas também se tornará claro que, em razão desses mesmos postulados, já não pude
acompanhar, e de facto não acompanhei, a decisão do Tribunal, quando este se
ficou por um julgamento de não inconstitucionalidade simpliciter do mencionado
artigo 9.º, em lugar de julgar esse preceito inconstitucional enquanto nele se
não prevê (e não garante aos interessados) a possibilidade de impugnação e
revisão do acto do Ministro das Finanças, de fixação definitiva do valor da
indemnização, através de um meio contencioso de «plena jurisdição» (ou então —
seria uma eventual alternativa — em lugar de julgá-lo não inconstitucional mas
só enquanto interpretado como implicitamente prevendo e garantindo essa
possibilidade).
Eis a medida e os termos em que, consequentemente, votei vencido a alínea c) da
decisão. Resta-me agora dizer das razões que estão na base dos «postulados» de
que acima parti para chegar a este voto — assim, do mesmo passo, completando a
respectiva fundamentação.
3 — O ponto crucial está, evidentemente, na natureza do acto em que se fixa o
valor da indemnização devida pela nacionalização, bem como do interesse ou
interesses que com ele são prosseguidos.
Ora, a meu ver, o que aí está em causa já não é, directa ou imediatamente, o
interesse «administrativo» ou «político» da nacionalização, mas antes o de
estabelecer a equação, que a lei reputa adequada, entre duas pretensões acerca
de determinado valor — o da indemnização compensatória do sacrifício patrimonial
em que a nacionalização se traduziu — que tendem, inevitavelmente, a ser
«maximizadas», em termos recíprocos e inversos, pelos respectivos titulares: no
sentido da «alta», já se vê, por quem sofreu aquele sacrifício; e no sentido da
«baixa», naturalmente, por quem terá de suportar o encargo da correspondente
compensação (ou seja, o Estado, enquanto «Administração»). A prossecução
daquele primeiro ou primitivo interesse, essa «esgotou-se», por assim dizer, no
próprio acto de nacionalizar — que tem de supor-se haver sido praticado após uma
ponderação prévia dos respectivos prós e contras —, e já em nada tem que
interferir na fixação em concreto da indemnização; agora — ao fixar-se o
valor desta — do que se trata é antes de realizar ou estabelecer o equilíbrio,
segundo o correspondente módulo legal, entre aquelas duas «opostas» pretensões,
«resolvendo o conflito de interesses» que, pelo menos virtual ou potencialmente,
nelas sempre se exprime.
Afigura-se-me assim que, considerado isoladamente na sua estrutura interna e na
sua finalidade imediata, o acto de fixação da indemnização apresenta, ao fim e
ao cabo, características idênticas, ou em extremo semelhantes, às de um acto
«jurisdicional» — tomando como padrão de referência o critério destes últimos
hoje acolhido uniformemente, pode dizer-se, pela doutrina e pela jurisprudência
portuguesas, na esteira de Afonso Queiró (e cujos termos, além do mais porque
recordados no precedente acórdão, se torna ocioso enunciar de novo aqui).
Simplesmente, o facto é também que esse acto — o acto que fixa o valor da
indemnização devida pela nacionalização — se liga intrínseca e funcionalmente a
esta última, como uma sua decorrência necessária, que se traduz mesmo, em bom
rigor, numa sua condição ou num seu requisito constitucional de validade. E daí
que, a meu ver, e pese o que antes ficou referido, deva ter-se como
constitucionalmente admissível — isto é, como não violador do denominado
princípio constitucional da «reserva do juiz» — o seu «arrastamento» ou a sua
«atracção» para o domínio orgânico da «função administrativa», com a atribuição
legal da competência para a respectiva prática, em primeira linha, à
«Administração» (ao Governo, como no caso acontece, ou a um órgão ou entidade
dele dependente ou sujeito, de alguma forma, à sua tutela).
Ao pensar assim as coisas, não estou nada longe, claro é, da segunda ordem de
considerações invocada, em alternativa, no acórdão precedente, para nele se
chegar, quanto ao aspecto ora em apreço, a idêntica conclusão. Só que — e aí
começa a minha divergência com o aresto do Tribunal — desse mesmo tipo de
considerações (e tal como justamente fazem os autores a propósito delas
invocados), ou das considerações paralelas que antecedem, retiro igualmente como
conclusão necessária a de que o acto administrativo de fixação do valor da
indemnização há-de ser plena e integralmente revisível, sem nenhum resto, em
sede contenciosa.
É que, se pode aceitar-se, em razão da sua aludida ligação funcional, a
«administrativização» desse acto, não pode perder-se de vista a sua natureza
intrínseca, atrás posta em destaque — e esta impõe, no mínimo, que a composição
de interesses, efectuada através dele, possa ser devolvida, por inteiro, e em
definitivo, a uma instância «jurisdicional». Doutro modo — e esse é justamente,
afinal, o «pecado grave» em que incorre o regime delineado no artigo 9.º do
Decreto-Lei n.º 332/91 — uma tal composição de interesses, se não na sua
totalidade (admitido que sempre seja um recurso de anulação), pelo menos em
larga medida (não raro decisiva), acaba por ficar confiada, em último termo, a
um dos respectivos titulares, a uma das «partes» (o Estado-Administração, no
caso), com manifesta violação do princípio da «garantia judiciária», consagrado
no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
Recorrendo a um símile: se a fixação da indemnização devida pela «expropriação»
por utilidade pública se acha de antemão «jurisdicionalizada» (e se seria
inquestionavelmente inaceitável «administrativizá-la», concedendo ao interessado
um simples recurso contencioso de «anulação» do correspondente acto), do mesmo
modo há-de a fixação da indemnização por «nacionalização» dispor de uma
garantia, ainda que «estruturalmente» diversa, substancialmente idêntica ou
equivalente. Não há nenhuma razão para, neste aspecto, tratar as duas situações
diferentemente sendo que, em especial, será tão ilegítimo invocar o interesse
público («político») da «nacionalização» para, afinal, reduzir a extensão da
garantia judiciária no caso desta, como seria ilegítimo invocar o respectivo
fundamento de «utilidade pública» para fazer o mesmo (alterando, nos termos
acabados de hipotizar, o regime aí em vigor) no caso da «expropriação».
Ora, a possibilidade de devolver em definitivo a uma instância jurisdicional a
fixação do valor da indemnização devida por «nacionalização» só será real e
efectiva, na verdade, se o correspondente acto administrativo (o acto que fixa,
em primeira linha, esse valor) for susceptível de revisão contenciosa plena, e
em tais termos que uma instância jurisdicional possa «substituir-se» inteira e
integralmente ao autor dele (desse acto) no estabelecimento do valor
indemnizatório, refazendo inclusive os juízos de índole mais ou menos
«discricionária» que tal operação eventualmente comporte e, assim, numa palavra,
fixando ela própria o dito valor. Eis por que entendo que a
«administrativização» do acto de fixação da indemnização só será
constitucionalmente admissível se for acompanhada — e como que «compensada» —
pela garantia da possibilidade de um seu controlo jurisdicional completo,
mormente através de um «recurso contencioso de plena jurisdição».
4 — Objectar-se-á — e assim, justamente, no precedente aresto — que, tendo em
conta a «evolução expansiva» modernamente verificada quanto às «aberturas» do
recurso contencioso de anulação e à extensão dos «poderes de cognição» dos
correspondentes tribunais (os quais, abrangendo o controlo da legalidade interna
do acto administrativo, incluem mesmo a apreciação, nomeadamente, do «erro de
facto» e do «desvio de poder» em sentido objectivo), tendo em conta os meios de
prova admissíveis, e tendo ainda em conta os poderes daqueles tribunais em sede
de execução de uma sua sentença anulatória ou declaratória da nulidade do acto —
objectar-se-á que, assim sendo, esse recurso já permite afinal um controlo
intrínseco e extenso do acto de fixação da indemnização, e em termos que
«assegura, na generalidade das situações, uma adequada e efectiva tutela
jurisdicional dos direitos dos titulares das acções ou partes de capital das
empresas nacionalizadas».
Não contesto, evidentemente, o entendimento que hoje deve ter-se da extensão
garantística do recurso contencioso de anulação; e reconheço, decerto, que em
variadas e, porventura, não poucas situações ele já possa conferir aos
interessados uma adequada tutela jurisdicional contra o acto administrativo de
fixação da indemnização, ora em causa.
Subsiste, porém, que, sob pena de desvirtuado na sua mesma natureza, um tal
recurso há-de sempre deixar intocado um certo espaço, maior ou menor, de
«autonomia» da Administração — o espaço da «discricionaridade», lato sensu,
desta última; e subsiste também, por consequência, que, mesmo na fase eventual
de execução da sentença, nunca esse meio processual há-de permitir ao juiz
«substituir-se» por inteiro àquela, na definição do contéudo do acto sujeito a
controlo. Daí que — revertendo à situação em apreço — um mero recurso
contencioso de anulação seja sempre, em meu modo de ver, insuficiente para
garantir aos interessados a plena revisibilidade do quantum indemnizatório que
lhes foi arbitrado pelo acto do Ministro das Finanças, e para permitir que seja
um tribunal, ele próprio, a fixar em definitivo esse quantum. Ora, uma tal
garantia é o que, quanto a mim, a Constituição exige.
5 — As considerações que acabam de fazer-se já não serão aplicáveis à acção para
reconhecimento de um direito ou interesse legítimo, prevista nos artigos 69.º e
70.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, e a qual — como bem se
reconhece no acórdão — deve ser encarada como concretização da garantia
consagrada, desde a revisão de 1989, no artigo 268.º, n.º 5, da Constituição.
Simplesmente, é desde logo duvidoso que semelhante meio processual seja
utilizável quando haja um acto administrativo, e para atacá-lo contenciosamente:
a esse respeito, a doutrina, para além de não ser unânime, não dá senão os seus
primeiros e muito hesitantes passos na aproximação ao tema, não fornecendo, em
meu juízo, qualquer arrimo sólido para uma conclusão. Mas a isso acresce que
mesmo admitindo, com alguns autores, que os interessados possam socorrer-se da
«acção para reconhecimento de um direito» ainda quando haja um acto
administrativo, nos casos em que o recurso de anulação se revele um meio de
tutela manifestamente inadequado, e se prove ser essa acção necessária para
assegurar uma tutela judicial efectiva —, mesmo então sempre restaria mostrar
que uma das situações a incluir em tais casos ou hipóteses será justamente a do
controlo do acto de fixação da indemnização, ora em causa. Ou seja, e
generalizando: sempre restaria mostrar que em tais casos se hão-de incluir
aqueles em que a insuficiência do recurso contencioso não deriva de qualquer
circunstância que lhe seja extrínseca, mas da sua mesma natureza, e em que o
problema é já (para usar as palavras de um desses autores, citadas no acórdão)
precisamente o de não poder nem dever «respeitar-se o núcleo essencial da
autonomia do poder administrativo, isto é, a estabilidade do caso decidido e a
discricionaridade quanto ao mérito das decisões».
Seja como for, se o Tribunal tivesse decidido avançar por aí — impondo uma
interpretação «em conformidade com a Constituição» do artigo 9.º do Decreto-Lei
n.º 332/91, embora doutrinariamente arriscada e controversa, segundo a qual o
acto de fixação do valor de indemnização, previsto no n.º 8 desse preceito,
seria contenciosamente atacável através da acção prevista no artigo 69.º da
citada Lei de Processo — poderia ter acompanhado uma tal decisão (uma tal
decisão «qualificada» de não inconstitucionalidade daquele preceito).
Semelhante passo, contudo, não chegou o Tribunal a dá-lo agora, seja mesmo ao
nível da fundamentação, seja, em particular, ao nível do teor decisório do
precedente acórdão. — José Manuel Cardoso da Costa.
(1) Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Novembro de
1995.