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Processo n.º 265/11
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nestes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
2. No âmbito de incidente de qualificação da insolvência da sociedade “B., Lda.”, A., suscetível de ser afetada pela qualificação da insolvência como culposa enquanto sócia gerente da devedora, deduziu oposição, requerendo que a insolvência fosse qualificada como fortuita.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, datada de 8 de maio de 2010, tendo sido decidido qualificar como culposa a insolvência da sociedade devedora, abrangendo pela qualificação a respetiva gerente de direito, aqui recorrente. Mais se declarou a recorrente inibida para o exercício do comércio durante dois anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo titular de órgão de sociedade civil ou comercial, associação, fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa. Por último, foi determinada a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou massa insolvente detidos pela gerente, bem como a restituição à massa de quaisquer bens ou direitos recebidos em pagamento desses créditos.
A insolvente “B., Lda.” e A. interpuseram recurso da sentença para o Tribunal da Relação do Porto.
Por acórdão de 21 de fevereiro de 2011, o Tribunal da Relação do Porto julgou improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.
É deste acórdão que a recorrente interpõe o presente recurso de constitucionalidade.
3. Delimitando o objeto do recurso, refere a recorrente que pretende que o Tribunal Constitucional aprecie o seguinte:
“(…) a inconstitucionalidade da norma da alínea c) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, por violação dos artigos 26º e 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, estando em causa uma limitação ao direito à livre escolha da profissão (art. 47º da Constituição da República Portuguesa), do direito à iniciativa económica privada (art. 61º da Constituição da República Portuguesa) e do direito de propriedade (art. 62º da Constituição da República Portuguesa).”
4. Nas alegações apresentadas, conclui a recorrente, nos termos seguintes:
“1.Vem o presente recurso interposto para apreciação concreta da constitucionalidade da norma do artigo 189° n° 2 alínea c) do C.I.R.E.
2. O artigo 189° n° 2 alínea c) do C.I.R.E é consequência direta e necessária da aplicação das presunções juris et de jure do artigo 186° do mesmo diploma legal, e portanto, inilidíveis, pelo que, no caso de verificação dos factos ali referidos, não resta ao julgador outra alternativa que não seja considerar a insolvência como culposa.
3. Figueiredo Dias, a propósito da natureza jurídica da figura da inibição, ensina na sua docência catedrática que, no que respeita às penas, podem estas apresentar duas facetas: as penas principais e as penas acessórias. Constituem as primeiras todas aquelas que, encontrando-se expressamente previstas para cada tipo de crime, podem ser fixadas pelo juiz na sentença condenatória independentemente de quaisquer outras (cfr. artigos 40º e seguintes do Código Penal). Fazem parte das segundas - penas acessórias - todas aquelas que não podem ser cominadas na sentença condenatória sem que simultaneamente tenha sido aplicada uma pena principal: o caso da demissão e da suspensão temporária da função pública e a interdição de profissões, atividades ou direitos.
4. Por outro lado, e ainda no que concerne às penas acessórias, distinguem-se assim dos chamados efeitos das penas, onde se trata de consequências - necessárias ou pendentes de apreciação judicial - determinadas pela aplicação de uma pena, principal ou acessória, que não assumem a natureza de verdadeiras penas por lhes faltar o sentido, a justificação, as fina1idades e os limites próprios daquelas.
5. Os requisitos para a aplicação das penas acessórias em gera1 são os seguintes: 1º A condenação do agente numa pena concreta superior a dois anos; e 2° Que a violação justificativa tenha de ser vista não apenas do lado do crime cometido - esse sancionado com a pena principal - mas também à luz do reflexo que este crime produz sobre a função que o agente exerce, por último, assinale-se que o nosso Código Penal regula como penas acessórias tão somente a demissão da função pública, a suspensão temporária da função pública e a interdição do exercício de profissões, atividades ou direitos.
6. No entanto, isso não significa que, através de leis extravagantes, o direito não possa criar outras formas de penas; no caso concreto (a inibição para o exercício de profissão ou a ocupação de cargos), o que se encontra radicalmente contra os direitos liberdades e garantias assegurados na Constituição da República Portuguesa é a forma díspar com que a pessoa (neste caso o inibido) é tratado no processo penal e no C.I.R.E.
7. As garantias do processo penal não só não são respeitadas na aplicação do artigo 189° n° 2 alínea c) do C.I.R.E como se inverte o ónus da prova.
8. A aplicação da presunção tem consequências absolutamente nefastas na vida das pessoas, não sendo atendidas as circunstâncias concretas e de facto que motivaram o inibido, não são tidas em atenção a idade e as condições sócio-económicas do inibido, omissão que pode ser absolutamente castradora do seu futuro.
9. O reconhecimento constituciona1 da capacidade civil, como decorrência imediata da persona1idade e da subjetividade jurídicas, cobre tanto a capacidade de gozo como a capacidade de exercício ou de agir.
10. É certo que, contrariamente à persona1idade jurídica, a capacidade, em qualquer das suas variantes, é algo de quantificável, uma posse suscetível de gradações, de detenção em maior ou menor medida mas a sua privação ou restrição, quando afete sujeitos que atingiram a maioridade, era sempre uma medida de caráter excecional só justificada, pelo menos em primeira linha, pela proteção da persona1idade do inibido.
11. Esta inibição, que parece ter como motivação a proteção dos futuros credores da insolvente e do tráfego jurídico-económico, é de constitucionalidade altamente duvidosa, porquanto não são respeitados os direitos fundamentais, pois, a mera alegação de que não cumpriu com uma determinada obrigação (no caso concreto das enumeradas no artigo 186° do C.I.R.E) não deve ser suficiente para declarar um gerente inibido; deverá ser sempre necessário o nexo de causalidade adequada entre a atuação presumida naquele normativo e a situação de insolvência com as garantias do Processo Penal sob pena de violação da presunção de inocência consagrada na Constituição da República Portuguesa (artigos 18° e 26°):
«Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir caráter geral e abstrato e não podem ter efeito retroativo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação. A lei estabelecerá garantias efetivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias. A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efetuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos. in Constituição da República Portuguesa.
12. O Estado de direito é enformado e conformado por princípios radicados na consciência jurídica geral e dotados de valor ou bondade intrínsecos, não basta, para estarmos sob o império do direito, que o Estado observe as normas que ele ditou e atue através de formas jurídicas lega1mente positivadas. As leis podem ser más, as formas de atuação revelar-se arbitrárias, o conteúdo das medidas estatais surgir aos olhos do particular como «mau direito», como direito injusto.
13. A norma do artigo 189° n° 1 alínea c) do C.I.R.E. é má porque viola o princípio da proibição do excesso, da proporciona1idade, da adequação, da razoabilidade e da necessidade.
14. A CRP visa, sobretudo, acentuar as dimensões das garantias individuais e da proteção dos direitos adquiridos contra medidas excessivamente «agressivas», «restritivas» ou «coativas» dos poderes públicos na esfera jurídico-pessoal e jurídico-patrimonial dos indivíduos. Pretendeu-se colocar os poderes públicos - desde o clássico «poder agressor», identificado com o executivo e a administração, até aos poderes legislativo e judiciário — num plano mais humano e menos sobranceiro em relação aos cidadãos.
15. Prima facie as leis estão vinculadas ao princípio da proibição do excesso pelo próprio legislador; a lei não se identifica com o direito e, por isso, a lei no sentido de lei em conformidade com o princípio do Estado de Direito terá de ser uma lei não arbitrária, não excessiva, não desnecessária, que terá como princípio e limite o núcleo essencia1 dos direitos, liberdades e garantias.
16. No âmbito da aplicação do direito pelos tribunais há muito que a medida da pena e a adoção de outras medidas judiciais têm presente o princípio da razoabilidade, proporciona1idade e necessidade. Assim, por exemplo, a prisão preventiva não deve ser decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada outra medida mais favorável prevista na lei.
17. O princípio de proibição do excesso, além de ser um princípio que «limita» em termos preventivos os poderes públicos, sobretudo quando estes adotam medidas sancionatórias ou medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias, é também um princípio de controlo. Recorrendo à ideia de razoabilidade, adequação, proporcionalidade e necessidade, os tribunais - e agora também o Tribunal de Justiça das Comunidades - podem fiscalizar o uso dos poderes e a justiça das medidas adotadas por estes poderes, contribuindo para um Estado de direito mais amigo de justiça e dos direitos fundamentais.
Termos em que deve ser declarada inconstitucional a norma do artigo 189° n° 2 alínea c) do C.I.R.E, por violação grave dos direitos, liberdades e garantias, designadamente do direito à presunção de inocência, do direito à livre escolha da profissão, do direito à iniciativa economia privada e do direito de propriedade, entre outros.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
5. O presente recurso tem como objeto a apreciação da constitucionalidade da norma da alínea c) do n.º 2 do artigo 189.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), considerando-se que a referência, constante do requerimento de interposição de recurso, ao artigo 186.º corresponde a mero lapso de escrita quanto ao último dígito do preceito, de acordo com a posição assumida pela recorrente – que suscitou previamente a questão, perante o tribunal a quo - e o teor das alegações produzidas.
Resulta do aludido preceito que, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve declarar as pessoas afetadas por essa qualificação como inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa.
Ora, o juízo de inconstitucionalidade que a recorrente reporta à norma extraível do preceito em referência refere-se ao concreto segmento que impõe que o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete “a inibição para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, do administrador da sociedade comercial declarada insolvente”, que tenha sido declarado afetado pela aludida qualificação (cfr. alegações do recurso interposto para o Tribunal da Relação).
6. A origem da norma, no seu núcleo essencial, remonta ao Código de Falências, instituído pelo Decreto-Lei n.º 25981, de 26 de outubro de 1935, que, no parágrafo 1.º do seu artigo 22.º, estabelecia que a inibição do falido, para administrar ou dispor de bens, abrangia “o exercício do comércio, diretamente ou por interposta pessoa, e bem assim o desempenho das funções de gerente, diretor ou administrador de qualquer sociedade comercial ou civil.”
O Código de Processo Civil, na sua versão originária, reproduziu o citado preceito, no artigo 1158.º, §1.º. Após a revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 44129, de 28 de dezembro de 1961, foi autonomizada a proibição do exercício do comércio da inibição de administrar bens (cfr. artigos 1189.º e 1191.º).
O Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF) retomou o vocábulo “inibição” para se reportar à proibição em análise, no artigo 148.º, n.º 1 (cfr. Rui Pinto Duarte, “Efeitos da declaração de insolvência quanto à pessoa do devedor”, Revista Themis, 2005, Edição Especial, p. 146 e 147).
Dispunha tal preceito que a declaração de falência implica a inibição do falido ou, no caso de sociedade ou de pessoa coletiva, dos seus administradores, para o exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa.
Na versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 315/98, de 20 de outubro, restringiu-se o âmbito dos administradores a quem seria aplicável a inibição, no caso de declaração de falência de sociedade ou de pessoa coletiva, de acordo com um juízo de responsabilidade ou contribuição para a situação de insolvência (artigo 148.º, n.º 2).
7. O Tribunal Constitucional já se debruçou sobre o artigo 148.º do CPEREF, no âmbito do Acórdão n.º 414/02 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Em tal aresto, pode ler-se o seguinte:
“(…) pese embora as divergências doutrinais sobre a exata qualificação de cada um dos efeitos, para o falido, decorrentes da declaração de falência, admite-se que a perda de administração e disposição dos bens que integram a massa falida e a inibição para o exercício de determinadas funções afetem alguns dos direitos fundamentais consagrados na Constituição.
Não seguramente (…) os artigos 25º, 26º e 27º uma vez que a declaração de falência nada tem em si de infamante ou que atinja a integridade moral, o bom nome ou reputação do falido (…)
Já tendo em conta os direitos de livre escolha de profissão e de propriedade (artigos 47º nº 1 e 62º nº 1 da CRP) se admite que eles sejam condicionados ou afetados por aqueles efeitos.
No que concerne ao primeiro, deve, contudo, salientar-se que o preceito constitucional ressalva “as restrições legais impostas pelo interesse coletivo”.
Ora, desde logo, o fundamento da inibição do exercício de determinadas atividades, constante do artigo 148º nº 1 do CPEREF, radica claramente em razões de interesse coletivo, constitucionalmente atendíveis.
Enquanto aplicável a pessoas singulares, ele visa evitar a ocorrência de futuras falências, impedindo aquele que revelou incapacidade para gerir o seu património de exercer funções que possam colocar em risco a solvabilidade económica das empresas ou, de novo, do próprio falido em prejuízo dos seus credores que têm o direito de ver satisfeitos os seus créditos.
Trata-se, de facto, de uma medida perfeitamente justificada, atendendo ao seu fim e à incumbência do Estado em “assegurar o funcionamento eficiente dos mercados” (artigo 83º, alínea e) da CRP) e, em geral, aos objetivos de política agrícola, comercial e industrial, plasmados no Título III, Parte II da Constituição.
(…)
Trata-se, assim, de uma limitação dos direitos do falido consentida pelo citado artigo 47º nº 1 da CRP, não sendo arbitrária nem desproporcionada.”
As considerações transcritas são transponíveis, mutatis mutandis, para a apreciação da norma que constitui objeto do presente recurso.
Na verdade, a obrigatoriedade de o tribunal, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, determinar que o administrador da sociedade insolvente, declarado afetado pela qualificação, fique inibido para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de determinados cargos, não constitui uma restrição inconstitucional à liberdade de escolha de profissão, consagrada no artigo 47.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP).
De igual modo, não restringe tal medida, de modo constitucionalmente inadmissível, o direito à iniciativa privada ou o direito à propriedade, considerando, quanto a este último, a componente de usar e fruir dos bens de que se é proprietário, nomeadamente destinando-os ao exercício do comércio.
De facto, a norma em apreciação, sendo suscetível de afetar tais direitos, justifica-se pela necessidade de garantir a “defesa geral da credibilidade da vida comercial” (cfr. J. de Oliveira Ascensão, “Efeitos da falência sobre a pessoa e negócios do falido”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXVI, 1995, p. 327), assegurando que o exercício do comércio e de determinados cargos de direção e gestão de operadores económicos fique excluído, temporariamente, do âmbito de ação daqueles sobre quem recaiu o juízo de culpa associado à qualificação da insolvência.
Constituindo a aludida defesa da credibilidade da vida comercial e, em geral, os
interesses do comércio e da segurança geral do tráfico jurídico, uma dimensão necessária à garantia do funcionamento eficiente dos mercados - incumbência prioritária do Estado, no âmbito económico e social, nos termos da alínea f) do artigo 81.º da Lei Fundamental – teremos de concluir que encontrada está a razão material, radicada no interesse coletivo ou geral e que corresponde a um interesse constitucionalmente protegido, que legitima a compressão dos direitos a que aludimos.
Por outro lado, mostra-se a norma em análise apropriada a cumprir o objetivo que a justifica, necessária por, no juízo de evidência que cabe ao Tribunal Constitucional, não ser manifesta a existência de outro meio alternativo menos gravoso igualmente adequado para assegurar a garantia geral da fluência do tráfego, e equilibrada, correspondendo à justa medida resultante da ponderação do peso relativo das vantagens obtidas com a opção legislativa para os fins prosseguidos, quando comparado com o sacrifício imposto a cada um dos concretos bens jurídicos constitucionais que tal opção afeta.
8. O que acaba de se explanar é reforçado pela argumentação expendida no Acórdão n.º 173/2009 (disponível no mesmo sítio da internet) que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade material do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na redação do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de março, na medida em que impõe que o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente. Em tal acórdão, o Tribunal Constitucional reporta-se à norma aqui em apreciação, extraída da alínea c) do n.º 2 do mesmo preceito, como protetora dos “interesses gerais do tráfico, designadamente mercantil”. Resulta da exposição argumentativa plasmada no mencionado aresto, não a possibilidade de transposição do juízo de inconstitucionalidade reportado à alínea b), na anterior redação, para a alínea c), aqui em análise - como pretende a recorrente – mas, ao invés, a ideia de que a existência da proibição plasmada nesta alínea c) é suficiente para a proteção do bem constitucionalmente valioso que interessa proteger, tornando a medida prevista na aludida alínea b) – para quem admita que a inabilitação é instrumento idóneo a servir interesses gerais do tráfico, nomeadamente mercantil - ou, pelo menos, a sua aplicação cumulativa, desnecessária e, por isso, violadora do princípio da proporcionalidade.
Neste sentido, refere o aludido aresto:
“Mas, mesmo adotando uma posição mais complacente, acolhedora da legitimidade constitucional de uma conceção da inabilitação como um instrumento multivocacionado, idóneo a servir outros interesses, que não apenas os do próprio incapaz, a norma em questão não passa o test da proporcionalidade.
Na verdade, sendo nula a relevância da inabilitação no processo de insolvência e seus resultados (LUÍS CARVALHO FERNANDES, ob. cit., 102) não serão os interesses dos credores da massa insolvente (tutelados por outra via), mas interesses gerais do tráfico, designadamente mercantil, os visados com a medida. Nesta ótica (em que se coloca a declaração de voto de vencido exarada no Acórdão n.º 564/2007), tendo um caráter sancionatório, a medida estaria reflexamente abonada em razões de prevenção de condutas culposamente atentatórias da segurança do comércio jurídico em geral.
Simplesmente, para esse fim, continua a estar prevista a tradicional medida de inibição do exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa (alínea c) do n.º 2 do artigo 189.º), como sanção adicionável, e não alternativa, à da inabilitação.
Tendo em conta o obrigatório decretamento da inibição – medida só justificável por atenção àqueles interesses gerais – e o universo dos afetados, coincidente com os sujeitos à inabilitação, pode concluir-se que a sanção mais gravosa da inabilitação não é indispensável para a salvaguarda desses interesses. Sendo assim, resulta violado o critério da necessidade ou exigibilidade, postulado pelo princípio da proporcionalidade.
Noutra ótica, para quem possa entender que a eficácia preventiva resulta melhor satisfeita com a inabilitação, será sempre de decidir que a cumulação e aplicação simultânea das duas restrições atenta contra a proibição do excesso.
É de concluir, pois, que, seja qual for a perspetiva elegida, quanto à finalidade do regime em apreciação, e quanto à teleologia do instituto da inabilitação, a norma do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do CIRE viola o princípio da proporcionalidade.”
9. Defende a recorrente que a norma em apreciação consagra uma pena acessória, sem respeito pelas garantias constitucionais do processo penal.
Não lhe assiste, porém, razão, já que não estamos em presença de uma sanção criminal, sendo, por isso, desadequada a transposição das exigências garantísticas próprias das penas para o âmbito da inibição em análise. Diga-se, aliás, que o artigo 185.º do CIRE expressamente refere que a qualificação da insolvência - como culposa ou fortuita – não é vinculativa para efeito da decisão de causas penais.
Sendo indiscutível que a inibição prevista na alínea c) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE não corresponde a uma sanção criminal, é controvertida a sua natureza.
Oliveira Ascensão refere, a este propósito, que a inibição não corresponde a uma incapacidade, enfatizando que esta última figura visa a proteção do próprio incapaz e prevê a representação, instituída no interesse do representado (José de Oliveira Ascensão, Direito Civil. Teoria Geral, Vol. I (Introdução. As pessoas. Os bens), Coimbra Editora, 1997, p. 190 e ss).
Ao invés, a inibição do administrador da insolvente para os efeitos da alínea c) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE tem em vista a defesa da credibilidade dos comerciantes e do comércio em geral e não é suprível por representação.
Assim, defende este Autor que a inibição em análise deve aproximar-se da categoria da “incompatibilidade de posições jurídicas”, apesar de estas serem geralmente vocacionadas para proteger uma função ou ramo de atividade, nomeadamente em função da sua dignidade ou especiais exigências. (José de Oliveira Ascensão, op. cit, p. 193 e ainda do mesmo Autor “Efeitos da falência sobre a pessoa e negócios do falido”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXVI, 1995, p. 326 e ss.; no sentido de que a figura constitui uma incompatibilidade relativa se pronuncia Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. I, 4.ª Edição, p. 124).
No caso do administrador da insolvente, afetado pela qualificação da insolvência como culposa, a inibição não se funda em considerações da mesma ordem, assentando antes, “numa desconfiança quanto à atuação, na área económica, em relação a quem, pelo seu comportamento, com dolo ou culpa grave, de algum modo contribuiu para a insolvência”.(cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Iuris, Lisboa 2008, p. 626.)
Esta aproximação da categoria da inibição à da incompatibilidade não é partilhada por outros Autores, como A. Menezes Cordeiro (Manual de Direito Comercial, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2001, p. 190 e ss.) que a distingue da figura das proibições gerais, incompatibilidades e impedimentos.
Independentemente da concreta categorização a que se adira, não se adequam, manifestamente, a este instituto as especiais exigências constitucionais aplicáveis às sanções criminais, pelo que improcede a argumentação apresentada pela recorrente, neste âmbito.
Face às considerações expendidas, conclui-se que não é materialmente inconstitucional a norma em apreciação, extraída da alínea c) do n.º 2 do artigo 189.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
I - Decisão
10. Nestes termos, decide-se:
- não julgar inconstitucional a norma, extraída da alínea c) do n.º 2 do artigo 189.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, no concreto segmento que impõe que o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inibição para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, do administrador da sociedade comercial declarada insolvente, que tenha sido declarado afetado pela aludida qualificação;
- e, em consequência, julgar improcedente o presente recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 7 de novembro de 2012.- Catarina Sarmento e Castro – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria José Rangel de Mesquita – Maria Lúcia Amaral.