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Proc. nº 190/91
1ª Secção
Cons. Rel.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - No Tribunal Judicial da Comarca de Almada, A. intentou acção
especial de despejo contra B. e C., invocando o fundamento de resolução a que se
refere o artigo 1093º, nº 1, alínea i), do Código Civil, consistente em falta de
residência permanente no local arrendado.
A ré B. contestou por excepção e por impugnação. Afirmou, ali, que o
direito de o autor resolver o contrato de arrendamento caducara nos termos do
artigo 1094º do Código Civil, visto que havia mais de dois anos que o mesmo
tinha conhecimento dos factos alegados.
Porque o autor faleceu na pendência da acção, suspendeu-se a
instância e houve lugar a habilitação de herdeiros. Depois a acção prosseguiu,
sendo autores D. e outros.
No despacho saneador de 29 de Abril de 1988, o sr. juiz considerou o
réu C. parte ilegítima e absolveu-o da instância.
Realizou-se o julgamento e, em sentença de 13 de Abril de 1989, foi
a excepção de caducidade considerada procedente, nos termos do artigo 1094º do
Código Civil com a interpretação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de
3-5-84, e, em consequência, a ré absolvida do pedido.
Os autores recorreram desta sentença para o Tribunal da Relação de
Lisboa. Afirmaram, então, a inconstitucionalidade da mesma sentença e também do
Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Maio de 1984.
A Relação de Lisboa, em acórdão de 11 de Dezembro de 1990, negou
provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida. Sobre a questão de
constitucionalidade suscitada pelos recorrentes lembrou que, segundo a
Constituição e a lei, só as normas jurídicas se podem constituir em objecto de
controlo de constitucionalidade. E depois:
'(...) No caso, o que poderá ser posto em causa é a
constitucionalidade do artigo 1094º do Código Civil, na redacção anterior à Lei
24/89 (que não se aplica às acções pendentes à data da sua entrada em vigor) e o
Assento de 3-5-84 que o interpretou. É que efectivamente a sentença recorrida
aplicou o artigo 1094º do Código Civil, com a interpretação que dele faz o
citado ASSENTO'.
Sobre uma extensa ordem de considerações, a Relação de Lisboa
concluiu, então, que o 'Instituto dos Assentos' não era inconstitucional e que
não o era também a norma 'recomposta' do artigo 1094º do Código Civil.
Os autores recorreram deste acórdão para o Tribunal Constitucional,
nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Defenderam a tese de inconstitucionalidade do 'Instituto dos Assentos' e, por
modo mais claro do que em anteriores momentos do processo, a tese de
inconstitucionalidade 'da norma do artigo 1094º do Código Civil, com a
interpretação que lhe foi dada pelo Assento de 3-5-84'. Dizem que, assim, 'foram
violados o artigo 65º e o artigo 115º, nº 5, da Constituição'. Depois, alegaram,
mantendo a mesma tese.
II - O objecto do recurso
A questão de constitucionalidade dos assentos, ou seja, da norma do
artigo 2º do Código Civil, foi suscitada por forma clara durante o processo,
como o determina o artigo 70º, nº 1, alínea b) da Lei do Tribunal
Constitucional.
Já não é assim com a questão de constitucionalidade da norma do
artigo 1094º do Código Civil, recomposta pela interpretação do Assento do
Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Julho de 1994. Não se vê que essa norma haja
sido ela mesma, durante o processo, confrontada com a Constituição da República,
no sentido da sua aptidão para o controlo posterior de constitucionalidade. A
questão é formulada de modo impreciso, umas vezes, referida à 'sentença' da 1ª
instância, outras à 'situação' criada pela mesma sentença e só se torna linear
em momentos subsquentes ao acórdão recorrido, da Relação de Lisboa.
E, contudo, este mesmo acórdão, daria conta da questão de
constitucionalidade da norma do artigo 1094º do Código Civil, com a
interpretação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça. Daria conta dela e
haveria de vir a tratá-la em longo excurso, assim captando e tornando clara a
indefinível pretensão de impugnação daquela norma, antes ensejada pelo
recorrente. Pelo que essa norma haverá de subentrar, aqui, no objecto do
recurso de constitucionalidade.
Ainda durante o processo, o recorrente suscitou questões de
legalidade, que depois não trouxe à conclusão das alegações no Tribunal
Constitucional e que, por forma alguma, estão aptas a desencadear a competência
de controlo deste Tribunal. São, desde logo, questões referidas aos artigos
328º, 333º e 334º do Código Civil, que nada têm que ver com as questões de
legalidade previstas no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro.
Constituem-se, pois, em objecto deste recurso de constitucionalidade
as normas do artigo 2º do Código Civil [assentos] e do artigo 1094º do Código
Civil, com a interpretação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de
Julho de 1984.
III - A fundamentação
1. O Tribunal Constitucional analisou já, com intervenção do
plenário, nos termos do artigo 79º-A, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a
norma do artigo 2º do Código Civil. No Acórdão nº 810/93, D.R. II Série,
de 2-3-94, relativo ao Processo nº 474/88, com voto de vencida da ora
relatora, decidiu:
'a) julgar inconstitucional a norma do artigo 2º do Código Civil na
parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força
obrigatória geral, por violação do disposto no artigo 115º, nº 5, da
Constituição;
b) Não conceder, apesar da conclusão antecedente, provimento ao
recurso, na medida em que, no caso concreto, a doutrina do Assento de 3 de
Julho de 1984 foi aplicada por tribunais judiciais, não cabendo no respectivo
processo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça'. [por lapso, omitiu-se, no
Diário da República, a referência ao artigo 115º, nº 5 da Constituição].
Acolhe-se, assim, a orientação do mesmo acórdão, que aqui implica
também o não provimento do recurso. Neste concreto processo, com efeito, a
doutrina do Assento de 3 de Julho de 1984 foi aplicada por decisão da Relação,
de que não cabia recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Isto é dizer, como
se disse no Acórdão nº 810/93 (cit.), que 'a doutrina estabelecida no assento
(...) se projecta em termos de eficácia vinculativa no âmbito específico dos
tribunais judiciais subordinados hierarquicamente ao tribunal emitente'. O
julgamento de inconstitucionalidade da norma do artigo 2º do Código Civil, que
no Acórdão nº 810/93 incidiu sobre a parte em que ali se determina a força
obrigatória geral dos assentos, não abarca, aqui, a vinculação ao assento por
uma decisão que, como a do caso em apreço, promana de um Tribunal da Relação e é
insusceptível de recurso.
2. Esta conclusão abre espaço à análise da norma do artigo 1094º do
Código Civil, com a interpretação do assento do Supremo Tribunal de Justiça de
3 de Julho de 1984 que, já vimos, subentra também na delimitação do objecto do
recurso. Essa norma determinava sobre o prazo de caducidade do direito acção de
resolução do contrato de arrendamento o seguinte:
'artigo 1094º. A acção de resolução deve ser proposta dentro de um
ano, a contar do conhecimento que lhe serve de fundamento, sob pena de
caducidade.'
O assento do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Julho de 1984 viria
fixar-lhe esta interpretação:
'Seja instantâneo ou continuado o facto violador do contrato de
arrendamento, é a partir do seu conhecimento inicial pelo senhorio que se conta
o prazo de caducidade establecido no artigo 1094º do Código Civil'. [D.R., I
Série, de 3-7-1984].
[A Lei nº 24/89, de 1 de Agosto, alterou, depois, a formulação da
norma do artigo 1094º do Código Civil, o que aqui não releva, visto que este
processo se não inclui no domínio temporal de eficácia da mesma lei].
Se bem que o recorrente convoque para o problema a norma do artigo
65º da Constituição, não se vê por que modo essa norma tenha aqui oportunidade.
A norma do artigo 1094º do Código Civil, na interpretação transcrita do assento,
tem uma dimensão processual que antes a remete para um confronto com outro lugar
da Constituição: o artigo 20º.
A dimensão de defesa da garantia constitucional do acesso à justiça
abstrai mesmo da caracterização do conteúdo do direito ou direitos fundamentais
em causa, obrigando o método de controlo a um enfoque na desejabilidade
constitucional de uma tutela judicial efectiva. É que, como disse o Acórdão nº
299/95, DR. II Série, de 22 de Julho de 1995, 'o direito de acção que assegura a
tutela dos direitos subjectivos não pode confundir-se com a essência substantiva
destes mesmos direitos'.
E é justamente a argumentação desse mesmo acórdão que aqui se
convoca de pleno para concluir no sentido da inconstitucionalidade da norma
contida no Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Julho de 1984. Não
pode com efeito ter-se por legítima a renúncia 'fictiva e antecipada' pelo
locador ao direito de acção, que afinal se reconhece no enunciado dessa norma. É
o artigo 20º, nº 1, da Constituição que por ela está a ser afrontado.
IV - Decisão
Nestes termos decide-se:
a) - Julgar inconstitucional a norma do artigo 2º do Código Civil,
na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força
obrigatória geral, por violação do artigo 115º, nº 5 da Constituição.
b) - Não conceder provimento ao recurso, quanto ao primeiro pedido,
apesar da decisão contida em a), visto que a doutrina do Assento foi aplicada
por acórdão de um Tribunal da Relação, de que não cabia recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça.
c) - Julgar inconstitucional a norma do artigo 1094º do Código
Civil, com a interpretação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de
Julho de 1984, por violação do artigo 20º, nº 1, da Constituição.
d) - Determinar a reforma da decisão recorrida em harmonia com o
presente julgamento da questão de constitucionalidade, concedendo-se provimento
ao recurso nessa parte.
Lisboa, 28 de Novembro de 1995
Maria da Assunção Esteves
Vítor Nunes de Almeida
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Alberto Tavares da Costa
Armindo Ribeiro Mendes
Luís Nunes de Almeida