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Processo: n.º 279/94.
2^Secção
Relator: Conselheiro Bravo Serra.
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1 — A. solicitou, num processo de natureza criminal, a concessão do benefício de
apoio judiciário.
Como esse benefício lhe não foi concedido, agravou do respectivo despacho para o
Tribunal da Relação de Évora, o qual, porém, negou provimento ao agravo.
Não se conformando com o assim decidido, pretendeu recorrer para o Supremo
Tribunal de Justiça, recurso que, contudo, não foi admitido, motivo pelo qual o
A. reclamou para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
No requerimento corporizador da reclamação, defendeu, inter alia, que «[a]
redacção do artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, ao
referir que,
‘Cabe sempre agravo, independentemente do valor’
E definir que tem
— Efeito suspensivo, quando interposto pelo Requerente,
— Efeito meramente devolutivo nos demais casos,
— É clara e inequívoca,
— E aponta no sentido da admissão de Recurso, nesta matéria, em mais que um
grau, independentemente da alçada do Tribunal de que se recorre», pelo que não
podia aquele normativo «ser entendido no sentido restritivo contido no Douto
Despacho de fls. 215 e verso, ora reclamado,
— Sob pena de se cercear um dos mais sagrados e indisponíveis direitos do
cidadão, que é o de conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos,
— O que constituiria violação do disposto no artigo 20.º da C. R. Portuguesa».
2 — O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por despacho de 17 de Março de
1994, indeferiu a reclamação.
É, a dado passo, referido nessa decisão:
............................................................
É inegável que naquele artigo 39.º se quis afastar, no incidente de apoio
judiciário, a regra das alçadas e do valor da causa, fixada no n.º 1 do artigo
678.º do Código de Processo Civil, que determina, nesse aspecto, a
admissibilidade dos recursos em processo civil.
E isso é devido naturalmente à ideia de que nos incidentes e questões de apoio
judiciário estão em jogo valores e interesses que se não medem pecuniariamente,
porque são, essencialmente, imateriais. Este é, no fundo, o princípio que
domina no processo penal também.
Neste sentido, pode efectivamente dizer-se que o dispositivo daquele artigo 39.º
«se reporta predominantemente ao processo civil», como se diz no despacho
impugnado.
Para o processo penal ele não seria necessário porque o recurso não é dominado
pela regra das alçadas.
Mas significará essa exposição que, mesmo em processo penal, haveria sempre, no
incidente de apoio judiciário, os três graus de jurisdição, como no processo
civil?
Isso é defendido pelo reclamante contra a posição da Relação.
Penso, todavia, que o reclamante não tem razão.
O referido artigo 39.º limita-se, como se notou, a introduzir, em matéria de
recursos, uma excepção à regra do valor ou das alçadas, afastando-a onde ela
poderia ser um obstáculo à admissibilidade do recurso.
Nada mais.
Nem nesse artigo nem toda a economia jurídica do diploma em que se insere criam
um novo ou específico regime de recurso para o incidente constituído pelo apoio
judiciário. E este pode ter lugar em processo penal (artigo 16.º, n.º 1,
daquele decreto-lei).
Cada um destes processos tem sistema e regime próprios dos recursos que admite,
não podendo, pois, estender-se ao processo penal o regime do cível (vide artigo
4.º do Código de Processo Penal).
Sendo assim, aquele incidente terá de seguir, quanto ao recurso, o regime do
processo em que se integra, sendo certo que o processo penal não admite
quaisquer excepções ao regime e sistema de recursos fixado no respectivo Código
de Processo Penal, mesmo para reapreciação de decisões sobre questões em matéria
cível nele proferidas — cfr. n.º 2 do artigo 400.º deste último Código, onde se
mantém sempre a regra de um só grau de recurso ou para a Relação ou para o
Supremo, conforme os casos.
Esta regra de um único grau de recurso é determinada, como se sabe, também pelo
princípio de defesa da celeridade processual. O que não seria respeitado se
para o mencionado incidente fosse admitido o duplo grau, contra o que se passa
mesmo com as situações mais graves de natureza penal.
E não pode falar-se em qualquer inconstitucionalidade desta interpretação, que
foi a adoptada no despacho reclamado, uma vez que já lhe foi facultado um duplo
grau de jurisdição, como está estabelecido para a matéria de âmbito penal que
nem tem menor dignidade que a do apoio judiciário.
............................................................
3 — É desta decisão que vem interposto o presente recurso para o Tribunal
Constitucional, tendo o recorrente, na alegação por si apresentada, formulado o
seguinte quadro conclusivo:
1.º Dispõe o artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, que
«Das decisões proferidas sobre Apoio Judiciário cabe sempre agravo,
independentemente do valor, com efeito suspensivo, quando o Recurso for
interposto pelo Requerente, e com efeito meramente devolutivo nos demais casos».
2.º O Recurso em um grau apenas (da comissão de assistência judiciária para o
Juiz de Direito da Comarca) só era admitido no regime anterior à Lei n.º 7/70,
da decisão denegatória ou concessória, se um dos vogais daquela comissão votasse
vencido (artigo 18.º, parágrafo único, do Decreto-Lei n.º 33 548, de 23 de
Fevereiro de 1944).
3.º O regime instituído pela Lei n.º 7/70 e Decreto n.º 562/70 só admitia
Recurso da decisão denegatória em um grau, com efeito suspensivo (Base VII, n.º
4, da Lei n.º 7/70)… Optara então o legislador, entre o princípio da
salvaguarda máxima do acerto da decisão judicial e o da celeridade (Economia
Processual), por este último.
4.º O Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, porém, veio conferir um
diferente entendimento deste campo, optando pelo princípio da salvaguarda máxima
do acerto da decisão judicial.
5.º O regime actual é, em matéria de Recurso, de maior abertura… Inexiste a
limitação do Recurso derivada do grau hierárquico e do conteúdo decisório,
porquanto há sempre recurso seja qual for o valor do incidente, apenas variando
o efeito conforme seja interposto pelo interessado na concessão do benefício, ou
pelo Ministério Público e parte contrária.
6.º Dispõe o artigo 205.º, n.º 2, da CRP, que «Na administração da Justiça
incumbe aos Tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos…»
— Sendo que «Nos feitos submetidos a julgamento não podem os Tribunais aplicar
normas que infrinjam o disposto na constituição ou nos princípios nela
consagrados» — artigo 207.º da CRP.
— Pois «Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a
Lei» — artigo 13.º, n.º 1, da CRP.
7.º Atento o disposto nos artigos 205.º, n.º 2, 207.º, 13.º, n.º 1, e 18.º,
todos da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do artigo 39.º do
Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, veiculada pelo Douto Despacho de
fls. 215 e verso dos Autos Principais e pelo Douto Despacho de fls. 10 a 11
verso dos Autos de Reclamação, está ferida de inconstitucionalidade.
Por seu turno, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal, na
alegação que produziu, por intermédio da qual propugna por se julgar
improcedente o presente recurso, apresentou as conclusões que se transcrevem:
1.º Nenhuma norma ou princípio constitucional garante às partes ou sujeitos
processais, seja qual for o objecto do processo, existência de um triplo grau de
jurisdição, com a consequente possibilidade de as decisões serem sucessivamente
apreciadas pelos Tribunais de 2.ª instância e pelo Supremo Tribunal de Justiça.
2.º Não constituiu qualquer limitação ou restrição constitucionalmente
inadmissível o entendimento de que o regime de recursos no incidente de apoio
judiciário enxertado no processo penal se molda pelas regras fundamentais que o
orientam, em conformidade com as previsões do Código de Processo Penal em vigor,
designadamente a de que das decisões proferidas pelo juiz singular cabe recurso
apenas para o Tribunal da Relação.
Cumpre decidir. E decidir, concretamente, se a interpretação acolhida no
despacho recorrido no tocante à norma ínsita no artigo 39.º do Decreto-Lei n.º
367-B/87, de 29 de Dezembro — interpretação essa segundo a qual o recurso das
decisões judiciais proferidas sobre apoio judiciário em processos de natureza
penal haverá de comportar os graus de jurisdição que o regime normal dos
processos dessa natureza comportam — é, ou não, colidente com a Constituição.
II
1 — A norma que serviu de base à decisão constante do despacho sob censura —
aliás a única que no Decreto-Lei n.º 387-B/87 se reporta ao recurso das decisões
judiciais proferidas sobre e nos incidentes de apoio judiciário — apresenta-se
com a seguinte literalidade:
Artigo 39.º
Das decisões proferidas sobre apoio judiciário cabe sempre agravo
independentemente do valor, com efeito suspensivo, quando o recurso for
interposto pelo requerente, e com efeito meramente devolutivo nos demais casos.
Como se viu, o despacho impugnado interpretou o preceito em causa de jeito a que
a forma de recurso por ele consagrada — o agravo — haveria de se pautar de
harmonia com as regras normais e com os princípios fundamentais regentes dos
recursos gizados para a natureza do processo em que se tenha de decidir o
incidente de apoio judiciário. Assim, segundo o despacho em questão, se a
decisão nesse incidente foi proferida num processo de natureza criminal, haverá
que interpretar a norma constante do artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 387-B/87 de
molde a que não se admita a possibilidade de existência de dois graus de
jurisdição como forma de impugnação dessa decisão, e isso, justamente, pela
circunstância de, de acordo com o regime de recursos ordinários vigente para o
processo criminal, as decisões judiciais proferidas em 1.ª instância, em regra,
comportam unicamente um grau de recurso — ou para o Supremo Tribunal de Justiça
[nos casos previstos no artigo 432.º do Código de Processo Penal aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro; cfr., ainda, alínea b) do n.º 3 do
artigo 11.º e o artigo 400.º, de onde decorre que, mesmo para reapreciação de
questões de natureza cível apreciadas no processo penal, se prescreve um só
grau; cfr., também, no que concerne a esta última norma, o Acórdão deste
Tribunal n.º 201/94, publicado na II Série do Diário da República, de 20 de Maio
de 1994], ou para a Relação [nos casos a que se refere o artigo 427.º; cfr.,
ainda, o artigo 12.º, n.º 2, alínea c)].
Na senda do raciocínio que subjaz a tal despacho, ser-se-á conduzido a entender
que, postando-nos perante decisões proferidas em 1.ª instância e prolatadas em
processos de natureza cível — onde, em regra, existe a possibilidade de haver
três graus de jurisdição, assim o valor da causa tal comporte ou,
excepcionalmente, caso se deparem as hipóteses, legalmente previstas, em que é
sempre de admitir recurso independentemente do valor da causa (cfr. artigo 678.º
do Código de Processo Civil) — é admissível a respectiva impugnação através de
agravo para a Relação e, do aqui decidido, agravo para o Supremo Tribunal de
Justiça, e isto pela razão segundo a qual, por força da disposição em apreço,
não relevam o valor da causa e da sucumbência como condicionantes do recurso.
O entendimento perfilhado no despacho sub judicio é, pelo ora recorrente,
perspectivado como feridente dos artigos 13.º, n.º 1, 18.º e 20.º da
Constituição, pois que a interpretação adoptada cerceia «um dos mais sagrados e
indisponíveis direitos dos cidadãos, que é o de conhecer, fazer valer ou
defender os seus direitos» e «[r]estringe os direitos, liberdades e garantias do
cidadão».
2 — Tem este Tribunal dito e redito, apoiando-se na doutrina e na sua já vasta
jurisprudência a propósito tirada, que o direito de acesso aos tribunais
postulado pelo artigo 20.º, n.º 1, da Lei Fundamental não garante,
necessariamente, em todos os casos e por si só, o direito a um duplo ou a um
triplo grau de jurisdição, sendo que a garantia de um duplo grau de jurisdição
referentemente a réus condenados em processo criminal não é imposta por aquele
normativo constitucional, antes decorrendo do que se preceitua no n.º 1 do
artigo 32.º da Constituição.
E, igualmente, tem defendido que o Diploma Básico não consagra um direito geral
de recurso das decisões judiciais (afora aquelas de natureza criminal e
condenatória, recurso esse, porém, que deflui da necessidade de previsão de um
segundo grau de jurisdição, necessidade essa, repete-se, imposta pelo n.º 1 do
artigo 32.º), mormente para o Supremo Tribunal de Justiça. Acrescenta, todavia,
com suporte na própria doutrina, que, uma vez que a Constituição prevê «a
existência de tribunais de recurso na ordem dos tribunais judiciais» e que lei
infra-constitucional, designadamente os diplomas adjectivos fundamentais e os
que regem a organização judiciária, também prevêm esses órgãos de administração
de justiça funcionando como tribunais vocacionados para decidir em sede de
impugnação das decisões emanadas de tribunais de hierarquia inferior, então não
será lícito ao legislador ordinário «suprimir em bloco os tribunais de recurso e
os próprios recursos» ou «ir até ao ponto de limitar de tal modo o direito de
recorrer, que, na prática, se tivesse de concluir que os recursos tinham sido
suprimidos» (as expressões em itálico são extraídas da obra Recursos em Processo
Civil, de Armindo Ribeiro Mendes, Lisboa, 1992, pp. 100, 101 e 102; cfr., como
exemplo da jurisprudência do Tribunal, e com mais recente publicação, quanto ao
tema em análise, o Acórdão n.º 447/93, no Diário da República, II Série, de 23
de Abril de 1994).
A norma em questão, seguramemte, não vem prescrever aquela supressão em bloco ou
uma solução de onde decorra que, na prática, ficaram, com o sistema por ela
estabelecido, suprimidos os recursos no que tange às decisões proferidas em
incidentes de apoio judiciário. Daí que, havendo-se de reconhecer ao legislador
uma liberdade de conformação quanto ao estabelecimento de requisitos
condicionadores dos recursos ou para «alterar pontualmente as regras sobre a
recorribilidade das decisões», ampliando ou restringindo, designadamente, os
recursos civis, «e a existência de recursos», respeitados que sejam os limites
acima focados, ter-se-á de concluir que a interpretação conferida à norma do
artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 387-B/87 pelo despacho em crise não viola o
disposto no artigo 20.º da Constituição.
A estas considerações há igualmente que aditar que, conforme não deixa de ser
focado no despacho recorrido e na alegação do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto,
seria verdadeiramente incoerente que se consagrasse no sistema processual penal,
como forma de reapreciação das decisões judiciais, maxime as condenatórias, um
só grau de jurisdição, enquanto que para uma questão incidental referente a
apoio judiciário suscitada em processo criminal se abria a possibilidade de
recurso em dois graus, quando é certo que os interesses em jogo no processo
criminal, de todo em todo, não podem ser perspectivados como de menor relevância
confrontadamente com os conexionados com as questões de apoio judiciário.
3 — Num outro enfoque, não divisa o Tribunal que tal norma, interpretada do modo
como o foi, postergue o princípio da igualdade que deflui do artigo 13.º do
Diploma Fundamental.
É bem sabido que aquele princípio não aponta no sentido de que igualdade
corresponda a igualitarismo, antes correspondendo a uma igualdade proporcional,
ou seja, exige que se tratem por igual situações substancialmente iguais, e que
situações substancialmente dissemelhantes sofram diverso tratamento, embora
proporcionadamente diferente.
Poder-se-ia argumentar que a interpretação dada à norma sub specie pelo despacho
em recurso levaria a que houvesse, quanto às formas de impugnação de decisões
judiciais proferidas nos incidentes de apoio judiciário, uma diferenciação de
tratamento, conforme a sua prolação ocorresse em processos de natureza cível ou
de natureza penal, por isso que seria permitida, nos primeiros e em regra, a
existência de três graus de jurisdição, enquanto que nos segundos só seriam
permitidos dois.
A um tal argumento responder-se-á que, ao fim e ao resto, a detectada
diferenciação resulta, em direitas contas, não da norma em apreciação em si (e
na interpretação a ela conferida), pois que essa diferenciação não é uma
peculiaridade da mesma, mas sim das características gerais dos recursos
consagrados para o processo civil e para o processo criminal (um comportando, em
regra, três graus de jurisdição, e outro somente dois).
Ora, neste particular, há que ponderar, de um lado, que todas as «partes»
intervenientes em processos de natureza criminal, requerentes da concessão de
apoio judiciário, obviamente que, quanto à forma de impugnação das decisões
tomadas em relação a tal incidente, são tratados de maneira igual e, por outro
lado, que, tratando-se de diferentes realidades os processos daquela natureza e
os de natureza cível — sendo que o processamento mais célere dos primeiros foi
um dos desideratos do legislador ao estruturar o Código de Processo Penal de
1987 — o tratamento diferenciado quanto à não admissibilidade, em regra, de mais
do que um grau de recurso, é justificado e proporcionado se se tiver em conta o
modo como o processo criminal se encontra estruturado a nível de censura das
decisões tomadas na 1.ª instância e os motivos que conduziram a essa opção.
Não se divisa, em consequência, que a interpretação normativa que serviu de base
à decisão constante do despacho recorrido enferme de qualquer contraditoriedade
com a Constituição.
IV
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o impugnado
despacho.
Lisboa, 27 de Setembro de 1995. — Bravo Serra — Fernando Alves Correia — Messias
Bento — Guilherme da Fonseca — Luís Nunes de Almeida.
(1) Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Novembro de
1995.