Imprimir acórdão
Processo n.º 440/2012
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A., foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objeto do recurso com os seguintes fundamentos:
3. O recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo do disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
Nos termos do disposto na alínea a) desse preceito, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade.
Já nos termos do disposto na alínea b) desse preceito, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que admitiu o recurso, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 76.º da LTC, entende-se não se poder conhecer do objeto do mesmo, sendo caso de proferir decisão sumária, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A do mesmo diploma.
Sendo manifesto que a decisão recorrida não recusou a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, o recurso de constitucionalidade é inadmissível enquanto interposto ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
O recurso é também inadmissível enquanto interposto ao abrigo do disposto na alínea b) desse mesmo preceito legal, por manifesta inidoneidade do seu objeto.
Não obstante se indicar formalmente como objeto do recurso a interpretação dada pela decisão recorrida ao artigo 5.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal, é manifesto que o que o recorrente realmente pretende controverter é, em substância, o próprio juízo concretamente efetuado sobre a lei aplicável.
Ora, inexistindo entre nós a figura do recurso de amparo ou outra equivalente, não tem o Tribunal Constitucional competência para conhecer de recurso que tenha como objeto não uma questão de constitucionalidade normativa mas a própria decisão judicial.
Tanto basta para que se não possa conhecer do presente recurso de constitucionalidade.
2. Notificado dessa decisão, A. veio reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), com os seguintes fundamentos:
“A douta decisão sumária fundamentou a inadmissibilidade do recurso porque interposto ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do art. 70º da LTC ao considerar que a decisão recorrida não recusou a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade.
E, ainda que a interposição do recurso ao abrigo do disposto na alínea b) desse mesmo preceito legal será inadmissível por inidoneidade do seu objeto.
Salvo o devido respeito e melhor opinião, a douta decisão sumária não respondeu totalmente ao requerimento e motivação do recurso, nomeadamente, quanto à violação do princípio da aplicação retroativa das leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido consagrado no art. 29º, nº 4 da CRP.
Na verdade, o acórdão 551/2009 refere, expressamente, “a questão da constitucionalidade dos regimes da aplicação da lei processual penal no tempo pode e deve ser vista à luz do princípio constitucional da aplicação da lei mais favorável ao arguido constante no nº 4 do artigo 29º da nossa Lei Fundamental. Segundo esta jurisprudência, o domínio deste princípio não se restringe à aplicação da lei penal substantiva, antes deve ser alargado ao ponto de serem colocadas sob a sua proteção certas situações em que esteja em causa uma norma processual de natureza material. A projeção dessas normas no processo e na responsabilidade penal do arguido não pode deixar de ter-se por intimamente conexionada com o próprio princípio da legalidade e, consequentemente, com a garantia por ele conferida. (sublinhado nosso).
Por outro, o acórdão 263/2009 expressamente refere “… a lei nova não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência, quando possa resultar, dessa aplicação, uma limitação dos direitos de defesa do arguido”.
Nesta matéria, embora não impondo o direito a um duplo recurso, ou a um triplo grau de jurisdição, este Tribunal Constitucional já por diversas vezes considerou que o nº 1 do artigo 32º da Constituição consagra o direito ao recurso em processo penal, como uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido.
Ou seja, se por um lado essa rejeição liminar do recurso se deveu à aplicação da nova lei processual, posterior ao início do processo e cuja inconstitucionalidade foi suscitada pelo arguido, por outro lado, a não admissão do recurso sobre essa decisão de rejeição liminar - cujo conteúdo nem sequer consubstancia um acórdão condenatório confirmativo da decisão da 1.ª instância – não garante ao arguido qualquer sindicância dessa decisão de rejeição liminar do recurso cuja admissão até tivera provimento, numa primeira decisão do Tribunal de 1.ª instância.
O arguido está assim impedido de exercer o direito, não a um triplo grau de jurisdição (duplo recurso), mas sim a um mero grau de jurisdição (mero recurso) quanto à rejeição liminar do recurso proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
A não admissão do recurso de acórdãos condenatórios proferidos em recurso pelas relações, confirmativos de decisão da 1ª instância na qual o arguido não foi condenado em pena de prisão não superior a 8 anos está diretamente relacionada com a dupla conforme, porque confirmativa de uma anterior decisão.
Todavia no presente recurso e sobre a matéria de não admissão do mesmo, não existe sequer uma dupla conforme. Pois, o Tribunal de 1ª instância decidiu em sentido diametralmente oposto ao Tribunal da Relação de Lisboa.
A não aplicação ao arguido da lei processual penal em vigor na data em que os factos foram pretensamente praticados ofende, manifestamente, o princípio da aplicação da lei penal mais favorável ao arguido consagrado no artigo 29º, nº 4 da nossa lei fundamental, invocado no requerimento de interposição do recurso.
O domínio deste princípio não se restringe à aplicação da lei penal substantiva, antes deve ser alargado ao ponto de serem colocadas sob a sua proteção certas situações em que esteja em causa uma norma processual de natureza material. A projeção dessas normas no processo e na responsabilidade penal do arguido não pode deixar de ter-se por intimamente conexionada com o próprio princípio da legalidade e, consequentemente, com a garantia por ele conferida (cfr., entre outros, Acórdão 551/2009, acessível em www.tribunalconstitucional.pt).
Nessa medida, e por não ter aplicado ao recurso essa disposição legal, o despacho recorrido fez inadequada e inconstitucional interpretação do art. 5º, nº 2 a) do CPP que manda aplicar ao processo penal a legislação em vigor na data da ocorrência dos factos, quando da sua não aplicabilidade possa resultar agravamento sensível e ainda evitável da situação do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa, por violação do princípio da aplicação retroativa das leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido consagrado no art. 29º, nº 4 da CRP:
Sobre a admissão do recurso existem duas decisões diametralmente opostas; a de 1ª instância que o admitiu, por tempestivo e a do Tribunal da Relação de Lisboa que o rejeitou liminarmente, por extemporâneo.
Ou seja, neste capítulo não foi assegurado ao arguido/recorrente o direito ao recurso em processo penal, como uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido, consagrado no artigo 32º, nº 1 da nossa Lei Fundamental.
O arguido/recorrente sempre e, desde logo, invocou enquanto fundamento de recurso da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que a aplicação do art. 412º, nº 3 e nº 4, na redação atualmente em vigor, enquanto fundamento de rejeição do recurso, por extemporâneo, fez inadequada e inconstitucional interpretação do art. 5º, nº 2 a) do CPP que proíbe a aplicação da lei processual penal aos processos iniciados anteriormente à sua vigência, quando da sua aplicabilidade possa resultar agravamento sensível e ainda evitável da situação do arguido, nomeadamente, uma limitação do seu direito de defesa, por violação dos art. 29º, nº 4 e 32º, nº 1, da CRP.
E, ainda, que essa mesma decisão ao não aplicar ao presente processo o art. 412º, nº 4 do CPP, na redação que lhe foi dada pelo DL 324/2003 de 27 de dezembro, em vigor na data dos factos – nomeadamente, sobre a necessidade de transcrição das provas gravadas, não cumprindo sequer com o assento nº 2/2003, proferido por este Colendo Tribunal em 16 de janeiro de 2003 – fez inadequada e inconstitucional interpretação do art. 5º, nº 2 a) do CPP que manada aplicar ao processo penal a legislação em vigor na data da ocorrência dos factos, quando da sua não aplicabilidade possa resultar agravamento sensível e ainda evitável da situação do arguido, nomeadamente, uma limitação do seu direito de defesa, por violação dos art. 29º, nº 4 e 32º, nº 1, da CRP:
Salvo o devido respeito, caem assim por terra os fundamentos invocados na douta decisão que considerou inadmissível o presente recurso porque interposto ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do art. 70º da LTC ou que existe inidoneidade do seu objeto porque interposto ao abrigo do disposto na alínea b) desse mesmo preceito legal.
Nessa medida, volta a insistir-se que por não ter aplicado ao recurso essa disposição legal, a decisão recorrida fez inadequada e inconstitucional interpretação do art. 5º, nº 2 a) do CPP que manda aplicar ao processo penal a legislação em vigor na data da ocorrência dos factos, quando da sua não aplicabilidade possa resultar agravamento sensível e ainda evitável da situação do arguido, nomeadamente, uma limitação do seu direito de defesa, por violação dosa art. 29º, nº 4 e 32º, nº 1, da CRP.
Por outro lado, ao ter aplicado, com fundamento de indeferimento da reclamação, essa mesma disposição legal na redação atualmente em vigor, a decisão recorrida fez inadequada e inconstitucional interpretação do art. 5º, nº 2 a) do CPP que proíbe a aplicação da lei processual penal aos processos iniciados anteriormente à sua vigência, quando da sua aplicabilidade possa resultar agravamento sensível e ainda evitável da situação do arguido, nomeadamente, uma limitação do seu direito de defesa, por violação do art. 29º, nº 4 e 32º, nº 1, da CRP.
Ademais, a não aplicabilidade retroativa da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido, viola esse princípio, constitucionalmente consagrado no art. 29º, nº 4 da CRP.
Por fim, da fundamentação invocada na douta decisão de indeferimento da reclamação decorre que a mesma não plicou ao recurso o art. 400º, nº 1, alínea c) na redação que lhe fora dada pelo DL 324/2003 de 27 de dezembro, impedindo o arguido/recorrente de exercer o direito ao recurso, na medida em que sobre a sua admissão existem duas decisões diametralmente opostas;
- a da 1ª instância que o admitiu, por tempestivo, e;
- a do Tribunal da Relação de Lisboa que o rejeitou, por extemporâneo.
Tal interpretação – por inviabilizar ao arguido, não um triplo grau de jurisdição (duplo recurso), mas sim um duplo grau de jurisdição (mero recurso) sobre a decisão de rejeição liminar do recurso proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa – deve ser considerada inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 1 da Constituição.
Deve pois este Tribunal, julgar inconstitucional a norma constante do art. 5º, nº 2 a) do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de ser aplicável o novo regime de recurso previsto na Lei 48/2007 (nomeadamente a alínea c) do nº 1 do art. 400º do CPP) impedindo o arguido de exercer oi direito de recurso sobre duas decisões diametralmente opostas relacionadas com a admissão desse mesmo recurso.
Mais, a decisão recorrida fez inadequada, e inconstitucional interpretação do art. 5º, nº 2 a) do CPP que proíbe a aplicação da lei processual penal aos processos indicados anteriormente à sua vigência, quando interpretada no sentido de ser aplicável o novo regime de recursos previsto na Lei 48/2007 (nomeadamente a alínea c) do nº 1 do art. 400º do CPP) e dessa aplicabilidade possa resultar o não exercício, por parte do arguido, do direito de recorrer de uma decisão desfavorável que num momento imediatamente anterior lhe tinha sido favorável”.
3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional veio pugnar pelo indeferimento da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Através da decisão sumária ora reclamada, o Tribunal Constitucional decidiu não conhecer do objeto do recurso, quando interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, com fundamento em não ter a decisão recorrida recusado a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade. Considerou ainda a decisão sumária que também quando interposto ao abrigo da alínea b) desse preceito legal, o recurso de constitucionalidade é inadmissível por inidoneidade do seu objeto, na medida em que o que o recorrente realmente pretende controverter é, em substância, o próprio juízo concretamente efetuado sobre a lei aplicável.
Na reclamação apresentada, o reclamante começa por afirmar que a “[…] decisão sumária não respondeu totalmente ao requerimento e motivação do recurso, nomeadamente, quanto à violação do princípio da aplicação retroativa das leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido consagrado no art. 29º, nº 4 da CRP”, prosseguindo a reclamação com um enquadramento daquilo que, na leitura que dela faz o reclamante, tem sido a jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria de aplicação da lei processual penal no tempo, em ordem a demonstrar, à luz dessa jurisprudência, quão bem fundado é o recurso de constitucionalidade interposto.
Não tem razão o reclamante.
Desde logo, não tem razão o reclamante relativamente à afirmação inicial segundo a qual a decisão sumária ora reclamada não teria respondido totalmente ao requerimento e motivação do recurso. Ao decidir não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade, por falta de verificação de pressupostos de admissibilidade do mesmo, logicamente que a decisão sumária não apreciou – nem tinha de o fazer – o mérito do recurso.
O teor da reclamação apresentada esgota-se na tentativa de demonstrar que o recurso de constitucionalidade interposto merece provimento. Simplesmente, em ordem a controverter a decisão sumária, o que ao reclamante se exigia era que demonstrasse que, ao contrário do que nela se decidiu, se encontram verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, não cabendo, nesta sede, qualquer apreciação do seu mérito.
Ora, embora nela se afirme que “[…] caem assim por terra os fundamentos invocados na douta decisão sumária que considerou inadmissível o presente recurso porque interposto ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do art. 70º da LTC ou que existe inidoneidade do seu objeto porque interposto ao abrigo do disposto na alínea b) desse mesmo preceito”, a verdade é que tal afirmação conclusiva não é precedida de qualquer argumentação que a sustente.
Aliás, o teor da reclamação apenas vem confirmar o entendimento da decisão sumária. Com efeito, da afirmação, dela constante, segundo a qual “[a] não aplicação ao arguido da lei processual penal em vigora na data em que os factos foram pretensamente praticados ofende, manifestamente, o princípio da aplicação da lei penal mais favorável ao arguido consagrado no artigo 29º, nº 4 da nossa Lei Fundamental, invocado no requerimento de interposição do recurso”, ao imputar-se a violação da Constituição à própria decisão judicial, retira-se que o que o recorrente, ora reclamante, verdadeiramente pretende com a interposição do recurso é a sindicância da decisão recorrida por não ter aplicado a lei processual penal mais favorável ao arguido, matéria que, como bem assinalou a decisão sumária ora reclamada, é inidónea para integrar o objeto de um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade.
A tal entendimento não obsta que o recorrente, ora reclamante, indique formalmente como objeto do recurso a interpretação dada pela decisão recorrida ao artigo 5.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal, pois, como também se disse na decisão sumária reclamada, tal modo de proceder em nada altera aquilo que é por demais evidente: que o que o recorrente realmente pretende controverter é, em substância, o próprio juízo concretamente efetuado sobre a lei aplicável.
III – Decisão
5. Nestes termos, decide-se indeferir a reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 6 de novembro de 2012.- Maria Lúcia Amaral – J. Cunha Barbosa – Joaquim de Sousa Ribeiro