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Processo: n.º 363/95.
Requerente: Presidente da República.
Relator: Conselheiro Vítor Nunes de Almeida.
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I — Relatório
1 — O Presidente da República veio requerer ao Tribunal Constitucional,
invocando o preceituado no artigo 278.º, n.os 1 e 3, da Constituição da
República e nos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, a apreciação preventiva da constitucionalidade do artigo 1.º,
conjugado com o disposto nas alíneas a), f) e g) do artigo 2.º, do Decreto da
Assembleia da República n.º 266/VI que «autoriza o Governo a legislar sobre o
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais», recebido em 21 de Julho de
1995 na Presidência da República.
Para fundamentar o pedido formulado aduzem-se as seguintes razões:
— o artigo 1.º do Decreto em apreço concede autorização ao Governo para
legislar sobre os «estatutos dos tribunais administrativos e fiscais» e o
«estatuto dos respectivos magistrados judiciais»;
— o artigo 2.º, clarificando o respectivo sentido e extensão, prevê a criação
de um Tribunal Central Administrativo, situado num escalão intermédio entre o
Supremo Tribunal Administrativo e os Tribunais Administrativos de Círculo
[alínea a)];
— prevê igualmente o aperfeiçoamento das regras relativas à composição e
competências do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais
[alínea f)];
— bem como a introdução de aperfeiçoamentos no Estatuto dos Juízes do
contencioso administrativo e fiscal, com o alargamento das áreas de recrutamento
[alínea g)];
— a criação do «Tribunal Central Administrativo» que recebe na sua Secção de
Contencioso Administrativo parte significativa das actuais competências do
Supremo Tribunal Administrativo e dos Tribunais Administrativos de Círculo,
representa a criação de um tribunal totalmente novo, sem paralelo na nossa
tradição e história judiciárias, que virá a alterar profundamente as regras de
controlo dos actos praticados por titulares dos órgãos de poder público;
— o ordenamento constitucional reconhece os Conselhos Superiores de Justiça,
onde se inclui o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, como
órgãos de defesa da «independência externa» dos magistrados relativamente a
outros poderes estranhos à organização judiciária, não podendo, por outro lado,
as regras relativas à sua composição e competência perturbar a sua
«independência interna»;
— a definição das formas de recrutamento dos Juízes dos Tribunais
Administrativos e Fiscais constitui uma das questões centrais do respectivo
estatuto, com reflexo nas garantias da sua independência e autonomia face ao
poder político;
— a melhor doutrina considera que estas matérias, pelo seu relevo
político-constitucional — que decorre, desde logo, da consideração de que os
Tribunais têm uma posição idêntica à dos outros órgãos constitucionais de
soberania — devem ser incluídas no âmbito da reserva absoluta de competência
legislativa da Assembleia da República, pelo que se requer a apreciação da
constitucionalidade das normas identificadas face ao disposto no artigo 167.º,
alínea l), da Constituição da República.
Com o pedido, junta-se fotocópia do Decreto n.º 266/VI, da Assembleia da
República.
2 — Admitido o pedido, foi notificada a Assembleia da República para sobre ele
se pronunciar (artigo 54.º da Lei n.º 28/82), tendo-se o respectivo Presidente
limitado a oferecer o merecimento dos autos.
O que tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II — Fundamentos
3 — A questão que vem suscitada com o presente pedido de apreciação preventiva
de constitucionalidade é a de saber se a autorização legislativa solicitada pelo
Governo, à Assembleia da República para legislar sobre o Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais, designadamente, para criar o Tribunal Central
Administrativo como segunda instância daquela ordem de tribunais, para
estabelecer regras relativas à composição e competência do Conselho Superior dos
Tribunais Administrativos e Fiscais e para modificar o estatuto dos juízes
daquele contencioso, com o alargamento da área de recrutamento, afronta a norma
constitucional que determina a reserva absoluta da competência legislativa da
Assembleia da República para legislar sobre «estatuto dos titulares de órgãos de
soberania (…) bem como dos restantes órgãos constitucionais ou eleitos por
sufrágio directo e universal».
Antes de iniciar a apreciação do pedido, proceder-se-á a uma curta análise sobre
o conceito constitucional de «órgãos de soberania» e de entre estes, dos
«Tribunais», passando à matéria relativa ao estatuto dos juízes com referência
ao conselho superior respectivo e ao pertinente âmbito da reserva de competência
legislativa da Assembleia da República, para, de seguida, se equacionarem os
diversos aspectos do pedido formulado, que serão apreciados separadamente.
3.1 — Órgãos de Soberania
Nos termos do preceituado no artigo 113.º da Constituição, «são órgãos de
soberania o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os
Tribunais» (n.º 1), estabelecendo o n.º 2 do preceito que «a formação, a
composição, a competência e o funcionamento dos órgãos de soberania são os
definidos na Constituição».
A individualização pela Constituição dos «órgãos de soberania» significa que só
o são os que nela forem referenciados como tais (princípio da tipicidade), sendo
o conceito designativo de sujeitos constitucionais com competências
institucionais adequadas à finalidade de realização das tarefas e funções
definidas na Lei Fundamental (o exercício de um certo número de «poderes
soberanos», v. g., legislativo, executivo, judicial, etc.).
Numa perspectiva de caracterização material dos «órgãos de soberania», eles
correspondem, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3.ª ed. revista, 1993, p. 493) àquilo que a
moderna doutrina designa por órgãos constitucionais em sentido restrito. Em
sentido amplo, são órgãos constitucionais todos os mencionados ou referidos pela
Constituição, mas em sentido restrito consideram-se órgãos constitucionais
apenas aqueles que revestem cumulativamente as seguintes características: a)
existência, posição institucional e competências essenciais imediatamente
constituídas pela Constituição (são órgãos imediatos, na terminologia
tradicional); b) faculdade de auto-organização interna; c) posição de
equiordenação relativamente aos outros órgãos de soberania, independentemente
das relações extra e intraorgânicas estabelecidas pela própria Constituição».
Analiticamente, a doutrina vem considerando que no conceito de órgão se podem
detectar quatro elementos incindíveis, mas que importa distinguir: a instituição
correspondendo de certo modo à realidade que perdura na sociedade, a
competência, correspondendo ao conjunto de poderes atribuído ao órgão; o
titular, a pessoa ou pessoas físicas que encarnam a instituição e formam a
vontade do órgão e o cargo ou mandato, correspondendo à função do titular do
órgão (veja-se, Jorge Miranda, Funções, órgãos e actos do Estado, 1990, pp.
59-60).
De qualquer modo, sempre a formação, a composição, a competência e o
funcionamento dos órgãos de soberania hão-de ser os definidos pela Constituição
(v. artigo 113.º), o que implica necessariamente a reserva de Constituição
quanto ao preenchimento dos elementos essenciais daqueles vectores
organizacionais, salvo quando a Constituição remete expressamente para a lei.
3.2 — Se a formação, composição e o funcionamento dos órgãos de soberania
parecem não suscitar dificuldades, a questão da competência necessita de um
maior aprofundamento.
Por competência de um órgão de soberania terá de entender-se o conjunto de
poderes e funções que lhe é atribuído para que possa realizar as actividades ou
tarefas que lhe são constitucional ou legalmente incumbidas.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (ibidem, p. 495), «a densificação do
conceito constitucional de competência tem de fazer-se a partir das próprias
normas constitucionais — conceito positivo de competência — e deve ter em conta
a sua multidimensionalidade. Em primeiro lugar resulta claramente de vários
preceitos relativos à competência dos órgãos de soberania que competência é,
antes de mais, um padrão jurídico organizatório que conforma e caracteriza a
organização do aparelho do Estado. Em segundo lugar, a competência adquire a
natureza modal-instrumental, quando se configura, no caso concreto, como o modo
e a forma de prossecução das tarefas e funções atribuídas a um órgão do Estado.
Em terceiro lugar, a enumeração de competências tem um efeito legitimante, pois
identifica o sujeito a quem é confiado um determinado núcleo competencial, bem
como os poderes jurídicos à sua disposição para prosseguir as tarefas
enquadradas nesse núcleo (competência legitimante). Em quarto lugar, a
definição de competências significa também, em termos jurídico-constitucionais,
a individualização de direitos e deveres subjectivos públicos dos órgãos
constitucionais (competência — fonte de direitos e deveres). Finalmente, da
competência e do exercício dos poderes e funções a ela inerentes resulta que a
competência exprime o poder de decisão confiado normativo-constitucionalmente
aos órgãos de soberania».
Importa notar que no caso dos Tribunais se trata de um complexo de órgãos de
soberania, na medida em que tal qualificação abrange todos os tribunais pelo que
cada um desses tribunais tem de ser considerado como um órgão de soberania.
Mas, pese embora esta natureza, a Constituição — apesar de se reservar a
definição da sua formação, da sua composição, da sua competência e funcionamento
— acaba por remeter para a lei grande parte destas atribuições.
Vejamos.
4 — Os Tribunais
Feita uma perfunctória análise do conceito de «órgão de soberania», importa
fazer uma referência mais próxima aos Tribunais enquanto complexo de órgãos de
soberania, cuja modificação estatutária (no caso, dos Tribunais administrativos
e fiscais) constitui o objecto do pedido de autorização legislativa e suscita as
dúvidas de constitucionalidade do Presidente da República.
4.1 — De acordo com o preceituado no artigo 205.º da Constituição, «os tribunais
são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do
povo» (n.º 1), sendo a função jurisdicional descrita no n.º 2 do preceito. No
artigo 206.º, estabelece-se que «os tribunais são independentes e apenas estão
sujeitos à lei». Da conjugação destas normas retira-se uma definição de
«Tribunais» enquanto órgãos do Estado revestidos de independência funcional e
orgânica e nos quais um ou vários juízes administram a justiça em nome do povo.
O órgão de soberania é aqui cada um dos Tribunais, sendo titular de cada um
deles o juiz ou juízes que aí exercerem funções jurisdicionais.
Nos termos do artigo 211.º da Constituição, existem várias categorias ou ordens
de tribunais, para além do Tribunal Constitucional: os tribunais judiciais e os
tribunais administrativos, sendo estas categorias integradas por vários
tribunais, hierarquicamente organizados, com um Supremo Tribunal no topo da
hierarquia, e ainda os tribunais militares e o Tribunal de Contas, podendo
existir tribunais marítimos e arbitrais.
Enquanto órgãos de soberania caberá à Constituição definir — como se observou —
a sua formação, composição, competência e funcionamento (artigo 113.º, n.º 2, da
Constituição), mas percorrendo as normas pertinentes verifica-se que no
respeitante à organização dos tribunais, a Constituição apenas inclui algumas
regras quanto ao Tribunal Constitucional, aos tribunais judiciais (artigo 212.º)
e aos tribunais administrativos e fiscais (artigo 214.º); quanto à competência,
incluem-se regras relativamente ao Tribunal Constitucional (artigo 225.º), aos
tribunais judiciais (artigo 213.º), aos tribunais administrativos e fiscais
(artigo 214.º), aos tribunais militares (artigo 215.º) e ao Tribunal de Contas
(artigo 216.º); quanto ao funcionamento existe apenas uma referência ao Tribunal
Constitucional (artigo 226.º) e aos tribunais judiciais (artigo 213.º, n.º 2).
No que se refere à constituição e criação — seguindo de perto Gomes Canotilho e
Vital Moreira (ibidem, p. 806) — «depende em boa parte da lei (…) não apenas de
cada tribunal nas categorias complexas (tribunais judiciais, etc.) mas também
quanto a certas categorias de tribunais, cuja existência é constitucionalmente
facultativa, como sucede com os tribunais marítimos e os tribunais arbitrais
(n.º 2). A própria competência para a criação de cada tribunal em concreto não
é definida pela Constituição — certo é que não consta da competência política ou
legislativa reservada à AR (artigos 164.º, 167.º e 168.º), e o mesmo se verifica
quanto à forma de tais actos (embora não seja admissível outra que não a de
lei)».
Directamente no que respeita aos Tribunais Administrativos e Fiscais, o artigo
214.º da Constituição estabelece que o Supremo Tribunal Administrativo é o órgão
superior da hierarquia dos tribunais administrativos e fiscais, sendo o seu
Presidente eleito de entre e pelos respectivos juízes, competindo a esta
categoria de tribunais o julgamento das acções e recursos contenciosos que
tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas e fiscais».
4.2 — O Tribunal Constitucional teve já várias oportunidades de se pronunciar
sobre esta matéria, designadamente a respeito da competência do Supremo Tribunal
Militar e do Tribunal de Contas, importando referir o que se escreveu nos
Acórdãos n.º 81/86 (in Diário da República, I Série, de 22 de Abril de 1986;
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7.º Vol., Tomo I, p. 103) e n.º 461/87 (in
Diário da República, I Série, de 15 de Janeiro de 1988; Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 10.º Vol., p. 181).
A respeito dos Tribunais enquanto órgãos de soberania, escreveu-se no Acórdão
n.º 81/86, o seguinte:
Esta disposição [artigo 113.º da Constituição] da Lei Fundamental só tem uma
leitura, no que aqui importa: os tribunais, como órgãos de soberania que são
(todos e cada um deles), têm a competência que lhes seja fixada pela própria
Constituição (expressa ou implicitamente) e a que a lei lhes defina mas, neste
caso, apenas quando a mesma Constituição directa ou indirectamente autorizar que
a lei o faça ou quando ela remeter para a lei tal tarefa.
E mais adiante escreve-se:
Os tribunais não constituem um órgão de soberania «colectivo ou múltiplo». Não
existe um órgão de soberania integrado por todos os tribunais; todos e cada um
dos tribunais são órgãos de soberania. É o artigo 205.º da Constituição que o
diz de forma inequívoca, quando dispõe que «os tribunais são os órgãos de
soberania para administrar a justiça em nome do povo». Sublinhe-se: os órgãos de
soberania, e não o órgão de soberania.
Por isso não colhe o invocado paralelismo entre os tribunais e o Governo. Este
é um órgão de soberania complexo; os tribunais são um complexo de órgãos de
soberania». […] Assim a regra do artigo 113.º, n.º 2, da Constituição diz
respeito a cada tribunal — e, desde logo, a cada espécie de tribunais. E de
duas uma: ou a Constituição, ela mesma define a competência de cada espécie de
tribunais, e então não pode a lei vir ampliá-la (nem restringi-la), ou a
Constituição não o faz, remetendo (expressa ou implicitamente) para a lei,
devendo esta respeitar as esferas de competência constitucionalmente definidas
para os demais tribunais.
Este entendimento do Tribunal veio a ser reafirmado no Acórdão n.º 461/87, não
deixando porém aí de se afirmar «que o princípio ‘exclusividade constitucional’
da competência dos órgãos de soberania não é absoluto e que mesmo a competência
deles definida ou estabelecida pela Constituição não deixa de ver o seu
‘conteúdo’ concretizado e explicitado pela lei ordinária».
No caso que vem suscitado dos tribunais administrativos e fiscais, a
Constituição estabelece, como se referiu, a respectiva competência material no
n.º 3 do artigo 214.º (julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham
por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas,
administrativas e fiscais); dentro deste âmbito, poderá a lei intervir para
concretizar ou explicitar o respectivo conteúdo, ou para definir os pressupostos
e condições do seu exercício, sem que todavia possa ultrapassar, ampliando-a, a
competência materialmente definida.
5 — O Estatuto dos Juízes
Feita a análise sumária das normas e princípios constitucionais relativos ao
complexo de órgãos de soberania que são os tribunais, importa agora fazer uma
referência também sucinta ao estatuto dos respectivos titulares, os juízes.
5.1 — A Constituição referindo esta matéria primacialmente aos juízes dos
tribunais judiciais, todavia inclui normas que se reportam a todos os juízes
(artigo 218.º) e normas que especificamente visam os juízes dos restantes
tribunais (artigo 219.º, n.os 2 e 3).
De acordo com o que se dispõe no artigo 217.º da Constituição, «os juízes dos
tribunais judiciais formam um corpo único e regem-se por um só estatuto» (n.º
1), remetendo-se para a lei o estabelecimento dos requisitos e das regras de
recrutamento dos juízes de tribunais judiciais de primeira instância (n.º 2).
O n.º 3 do artigo 217.º regula a forma de recrutamento dos juízes para as
tribunais judiciais de segunda instância e o n.º 4 regula a forma de acesso ao
Supremo Tribunal de Justiça. No artigo 218.º estabelecem-se as garantias
(inamovibilidade e irresponsabilidade) e as incompatibilidades.
Pelo artigo 219.º atribui-se ao Conselho Superior da Magistratura (cuja
constituição consta do artigo 220.º), nos termos da lei, a competência para
nomear, colocar, transferir, promover e sancionar disciplinarmente os
magistrados judiciais (n.º 1), cometendo o n.º 2 do preceito idêntica
competência relativamente aos juízes dos tribunais administrativos e fiscais ao
respectivo conselho superior, também nos termos da lei (única referência da
Constituição a este Conselho). Quanto aos juízes dos outros tribunais, o n.º 3
remete para a lei a definição das regras e a determinação da competência para
colocação, transferência e promoção dos juízes e, bem assim, para o exercício da
acção disciplinar, «com salvaguarda das garantias previstas na Constituição».
Assim delimitado constitucionalmente o estatuto dos magistrados judiciais e dos
outros tribunais, importa analisar o enquadramento competencial de tal matéria,
desde a versão originária da Constituição até à versão actual.
5.2 — Na versão originária (VO) da Constituição, reserva da competência
legislativa da Assembleia da República (AR) constava das diversas alíneas do
artigo 167.º, prevendo o artigo 168.º a possibilidade de a Assembleia autorizar
o Governo a fazer decretos-leis sobre matérias da sua exclusiva competência.
Na alínea j) do artigo 167.º (VO), estabelecia-se a competência exclusiva da
Assembleia para legislar sobre «organização e competência dos tribunais e do
Ministério Público e estatuto dos respectivos magistrados, salvo quanto aos
tribunais militares, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 208.º».
Com a primeira Revisão Constitucional (Lei n.º 1/82, de 30 de Setembro), a norma
do artigo 167.º da VO foi desdobrada em dois preceitos: o artigo 167.º contendo
a matéria incluída na reserva absoluta da Assembleia, e o artigo 168.º, contendo
a matéria da reserva relativa da mesma Assembleia, isto é, os assuntos em que a
Assembleia pode legislar ou conceder autorização ao Governo para o fazer.
No artigo 167.º tal como resultou da 1.ª Revisão Constitucional, a alínea g)
estabelece como matéria em que só a Assembleia da República pode legislar o
«estatuto dos titulares dos órgãos de soberania e do poder local, do Conselho de
Estado e do Provedor de Justiça, incluindo o regime das respectivas
remunerações».
Pelo seu lado, o artigo 168.º, relativo à reserva relativa de competência
legislativa da AR, insere no seu n.º 1, a alínea q) sobre «organização e
competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respectivos
magistrados».
Na Revisão Constitucional de 1989 (Lei n.º 1/89, de 8 de Julho), manteve-se a
existência de dois preceitos, um com a matéria de reserva absoluta de
competência legislativa (o artigo 167.º) e o outro com a matéria incluída na
reserva relativa de competência da Assembleia (artigo 168.º). Dentro da reserva
absoluta surge agora a alínea l) relativa ao «estatuto dos titulares dos órgãos
de soberania e do poder local, bem como dos restantes órgãos constitucionais ou
eleitos por sufrágio directo e universal».
O artigo 168.º, n.º 1, alínea q), manteve a primeira parte com a mesma redacção
da anterior versão, tendo apenas acrescentado à reserva relativa da AR a
organização e competência das «entidades não jurisdicionais de composição de
conflitos».
Verifica-se assim que, desde que foi instituída a separação entre reserva
absoluta e reserva relativa, sempre se manteve na primeira a matéria do estatuto
dos titulares dos órgãos de soberania, ali se vindo a inserir mais recentemente
os estatutos dos titulares dos restantes órgãos constitucionais, ao mesmo tempo
que se eliminou a referência expressa às remunerações, atento o disposto no
artigo 120.º, n.º 2, da Constituição. Com efeito, nesta norma, cuja epígrafe é
«estatuto dos titulares de cargos políticos», estabelece-se que «a lei dispõe
sobre os deveres, responsabilidades e incompatibilidades dos titulares de cargos
políticos, bem como sobre os respectivos direitos, regalias e imunidades».
Por outro lado, no regime da reserva relativa sempre se incluiu a matéria da
organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e o estatuto dos
respectivos magistrados, tendo-se acrescentado a matéria das entidades não
jurisdicionais de composição de conflitos.
6 — A reserva de competência da Assembleia da República
6.1 — Da análise descritiva efectuada com vista à resolução das questões
suscitadas no pedido, ressalta que no domínio reservado de modo absoluto à
competência legislativa da AR só ela pode elaborar as leis, seguindo um processo
público de discussão das respectivas propostas e projectos com intervenção dos
deputados e aprovação final do órgão legislativo por excelência em sistemas
democráticos parlamentares.
Neste âmbito de competência fica expressamente afastada a intervenção do
Governo, salvo no que se refere à apresentação de propostas de lei ao
parlamento, não sendo também possível verificarem-se concessões de autorizações
legislativas àquele órgão sobre matérias que caiam dentro do âmbito material da
reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República.
6.2 — O âmbito material da reserva relativa de competência legislativa da AR é,
essencialmente, um domínio em que a Assembleia, tendo o predomínio do poder
legislativo, todavia pode reparti-lo, se assim o entender, com o próprio
Governo, através da concessão a este de autorizações legislativas, pelo que, se
o Governo vier a legislar sobre qualquer matéria incluída nesta reserva
relativa, sem estar devidamente credenciado com uma autorização parlamentar, tal
diploma é organicamente inconstitucional.
Assim e sob a perspectiva da distribuição do poder legislativo que interessa
directamente para a resolução da questão que vem suscitada no pedido, a reserva
absoluta de lei parlamentar — isto é, a reserva absoluta de competência
legislativa da Assembleia da República — significa essencialmente que o Governo
não pode produzir, em tal domínio, qualquer legislação, sequer alterar ou
revogar a que exista. Pelo seu lado, a Assembleia não pode limitar-se a regular
as bases gerais das referidas matérias (a não ser nos casos em que o artigo
167.º expressamente refere que a reserva de competência legislativa pode ter
esse limite) devolvendo ao Governo o seu desenvolvimento. Por último e na
sequência da impossibilidade de a Assembleia conceder autorizações legislativas
nesta matéria, os diplomas que o parlamento produzir [salvo as hipóteses da
alínea i) e da parte final da alínea d) do artigo 167.º] devem esgotar toda a
normação legislativa.
7 — O pedido de autorização legislativa
Voltando agora ao caso dos autos, importa referir que o diploma cuja
conformidade constitucional se pretende que o Tribunal aprecie é um Decreto da
Assembleia da República pelo qual se concede autorização ao Governo para
legislar sobre o «estatuto dos Tribunais administrativos e fiscais» bem como
sobre o «estatuto dos respectivos magistrados judiciais».
O problema que vem suscitado é o da conformidade à Lei Fundamental das normas do
artigo 1.º, em conjugação com o artigo 2.º, alíneas a), f) e g), cujo teor é o
seguinte:
Artigo 1.º
É concedida autorização ao Governo para legislar sobre o estatuto dos tribunais
administrativos e fiscais, incluindo a sua organização, competência,
funcionamento e alguns aspectos referentes aos seus meios processuais
específicos, bem como sobre o estatuto dos respectivos magistrados judiciais e
do Ministério Público.
Artigo 2.º
O sentido e a extensão da legislação a aprovar são os seguintes:
a) Criar um Tribunal Central Administrativo, situado em escalão intermédio
entre o Supremo Tribunal Administrativo e os Tribunais Administrativos de
Círculo, o qual receberá na respectiva Secção do Contencioso Administrativo
parte significativa das competências actuais daquele e destes e incorporará na
sua Secção do Contencioso Tributário o actual Tribunal Tributário de 2.º
Instância, mantendo-se o princípio do duplo grau de jurisdição;
.........................................................
f) Aperfeiçoar as regras relativas à composição e competência do Conselho
Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais;
g) Introduzir aperfeiçoamentos no Estatuto dos juízes do contencioso
administrativo e fiscal, alargando o recrutamento para a respectiva magistratura
a licenciados em direito com cursos específicos e a docentes universitários de
direito administrativo ou de direito fiscal que preencham determinados
requisitos.
Com o pedido, questiona-se afinal a possibilidade de ser concedida ao Governo
autorização legislativa para emanar normação que crie o Tribunal Central
Administrativo, que altere a composição e competências do Conselho Superior dos
Tribunais Administrativos e Fiscais e que modifique o estatuto dos juízes do
contencioso administrativo e fiscal, designadamente no respeitante ao
alargamento das áreas de recrutamento.
De acordo com o fundamento invocado — tratar-se de matérias que «a melhor
doutrina considera deverem ser incluídas no âmbito da reserva absoluta de
competência legislativa da Assembleia da República», dado o seu «relevo
político-constitucional», decorrente «da consideração de que os Tribunais têm
uma posição idêntica à dos outros órgãos constitucionais de soberania e de que
os juízes são titulares de órgãos de soberania» — e a forma final do pedido —
invocando como norma violada o artigo 167.º, alínea l), da Constituição da
República — tem de se concluir que vem questionada a possível violação das
normas sobre competência legislativa.
Sendo uma e única a questão posta — é legítima a concessão de autorização
legislativa em tais matérias? — ela acaba por ter de ser apreciada na tripla
vertente que a seguir se enuncia:
— pode a Assembleia da República conceder ao Governo autorização para legislar
sobre a criação do Tribunal Central Administrativo, com a configuração
desenhada?
— e para modificação, no sentido do aperfeiçoamento, da composição e
competências do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais?
— e para modificação, também no sentido do aperfeiçoamento, do estatuto dos
Juízes do contencioso administrativo e fiscal, com o alargamento das áreas de
recrutamento?
São estas as questões que importa resolver.
8 — A criação do Tribunal Central Administrativo
A autorização legislativa pedida e concedida ao Governo visava, em primeira
linha, a alteração do estatuto dos tribunais administrativos e fiscais por forma
a criar, situando-o hierarquicamente entre os Tribunais Administrativos de
Círculo (TAC’s) e o Supremo Tribunal Administrativo (STA), o Tribunal Central
Administrativo (TCA), com uma secção de contencioso administrativo e uma secção
de contencioso tributário, recebendo, a primeira, parte das competências da
secção do contencioso administrativo do STA e dos TAC’s e a segunda, a
competência do Tribunal Tributário de 2.ª instância, tal como actualmente
existe.
Decorre do texto da autorização que o tribunal a criar não seria inteiramente
novo no que respeita à competência tributária, pois nesta matéria desde há muito
que existe um tribunal intermédio (cfr. o Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de
Abril, que transformou o antigo Tribunal de 2.ª Instância das Contribuições e
Impostos em Tribunal Tributário de 2.ª Instância).
A inovação — como bem se salienta no pedido — respeita essencialmente à matéria
do contencioso administrativo, sendo indiscutível que com a criação deste
tribunal intermédio se modificam de forma profunda as regras até agora
estabelecidas para efectuar o controlo jurisdicional dos actos praticados por
«titulares dos órgãos de poder público».
Vejamos.
8.1 — Até 31 de Dezembro de 1984, no domínio do Código Administrativo e da Lei
Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo (LOSTA), a jurisdição administrativa
era constituída, na primeira instância, pelas Auditorias de Lisboa e Porto e
pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA), funcionando em secções ou em
Plenário, competindo à secção do contencioso administrativo do STA «conhecer dos
recursos interpostos das decisões definitivas e executórias dos Ministros e
Subsecretários de Estado, ou tomadas por delegação sua, e dos órgãos dirigentes
dos serviços personalizados do Estado dotados de autonomia administrativa,
quando arguidas de incompetência, usurpação ou desvio de poder, vício de forma
ou violação de lei, regulamento ou contrato administrativo (artigo 15.º, n.º 1,
da LOSTA). Destas decisões da 1.º Secção do STA cabia recurso para o Tribunal
Pleno, salvo em matéria disciplinar, em que só seria admissível quando a pena
aplicada alcançasse um certo nível de gravidade (artigo 25.º, § 1.º, n.º 1, da
LOSTA).
O Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, que aprovou o Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais (ETAF), ao entrar em vigor em 1 de Janeiro de 1985,
veio estabelecer uma orgânica nova para os tais tribunais. De facto, as
auditorias foram substituídas pelos tribunais administrativos de círculo
(TAC’s), tendo-se procedido a uma nova repartição de competências entre estes
tribunais e o STA.
Assim, dos actos administrativos praticados por órgãos da administração local,
bem como por órgãos da administração central que não sejam órgãos governativos,
ainda que praticados por delegação de membros do Governo, cabe recurso para os
TAC’s e das decisões destes tribunais existe recurso para a 1.ª Secção do STA.
Dos actos administrativos praticados pelo Governo da República e dos praticados
pelos governos regionais dos Açores e Madeira cabe recurso directo para as
subsecções da 1.ª Secção do Contencioso Administrativo do STA (de acordo com o
disposto no artigo 26.º). Destas decisões da Secção pelas subsecções há recurso
para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo [artigo 24.º, alínea a), do
ETAF].
No que se refere às acções sobre contratos administrativos, responsabilidade da
Administração por actos de gestão pública e sobre reconhecimento de direitos ou
interesses legalmente protegidos, a competência para conhecer dessas acções
cabe, em primeira instância, aos tribunais administrativos, com recurso para a
1.ª Secção do Contencioso Administrativo do STA.
8.2 — Analisada sinteticamente a estrutura da jurisdição administrativa em
vigor, importa referir, antes de entrar na apreciação do pedido, os motivos
constantes da exposição que antecedem a proposta de lei apresentada ao
Parlamento e que está na base do pedido formulado.
Com efeito, não é possível face ao mero teor da alínea a) do artigo 2.º do
Decreto da Assembleia da República em apreciação, o Tribunal determinar com
rigor qual a parte da competência que virá a caber ao Tribunal Central
Administrativo, nesta redistribuição de competência, sendo todavia certo que
quaisquer que sejam as competências que, oriundas do STA ou dos TAC’s, lhe
venham a ser conferidas, sempre se manterá o princípio do duplo grau de
jurisdição conforme resulta da parte final da alínea a) do artigo 2.º em causa.
Escreve-se na «Exposição de motivos»:
Acontece, no entanto, que, passados 10 anos, todos os tribunais administrativos
portugueses — e de modo muito particular o Supremo Tribunal Administrativo —
estão de novo com uma sobrecarga de trabalho que se revela em absoluto
incomportável.
Esta sobrecarga, aliada ao facto de um mesmo tribunal julgar em primeira e
segunda instância, não permite, por outro lado, que o Supremo Tribunal possa
contribuir, de uma maneira mais completa, para o avanço e apuro da ciência do
direito.
Destinando-se o novo tribunal, na parte relativa ao contencioso administrativo,
a aliviar simultaneamente a sobrecarga de trabalho do Supremo Tribunal
Administrativo e dos tribunais administrativos de círculo, lógico é que as
respectivas competências venham a resultar de uma dupla transferência: uma
transferência descendente, que desloca competências actuais do Supremo para o
tribunal central, e uma transferência ascendente, que passa para este mesmo
tribunal competências actuais dos tribunais administrativos de círculo.
3 — Destas transferências de competência resultará que a competência principal
dos três tribunais seja a seguinte:
a) Supremo Tribunal Administrativo: competir-lhe-á
essencialmente conhecer dos recursos das decisões do Tribunal Central
Administrativo proferidas em recursos directos para ele interpostos e, bem
assim, dos recursos directos de actos praticados em matéria administrativa
pelos vários poderes do Estado, salvo, quanto aos actos administrativos do
Governo, se versarem matéria da função pública;
b) Tribunal Central Administrativo: competir-lhe-á
fundamentalmente conhecer dos recursos das decisões dos tribunais
administrativos de círculo, dos recursos dos actos do Governo em matéria de
função pública, dos recursos dos actos da alta administração pública e dos
órgãos independentes do Estado, dos órgãos dos Regiões Autónomas, dos órgãos
superiores da administração central, dos institutos públicos e das associações
públicas de âmbito nacional e regional, bem como dos pedidos de declaração de
ilegalidade de regulamentos de âmbito nacional;
c) Tribunais Administrativos de Círculo: competir-lhes-á
basicamente conhecer dos recursos dos actos dos órgãos não políticos do Estado
e das Regiões Autónomas, dos actos dos governadores civis e assembleias
distritais, dos institutos públicos e das associações públicas de âmbito
municipal ou inter-municipal, das autarquias locais e das suas associações e
serviços autónomos, das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa e
dos concessionários, bem como dos pedidos de declaração de ilegalidade de
regulamentos de âmbito local, e ainda de todas as acções administrativas.
Significa isto que, com o Tribunal que se pretende criar através da autorização
legislativa pedida, se visa desbloquear a acumulação processual existente nos
tribunais que serão amputados das respectivas competências, sem que, por esse
facto, venham a diminuir as garantias dos cidadãos administrados, uma vez que
sempre se mantém o direito de recurso num duplo grau de jurisdição.
8.3 — Já atrás se referiu que a criação de um concreto tribunal — produzindo
embora um novo órgão de soberania — não está todavia sujeita a uma reserva
absoluta de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 167.º).
Na verdade, não consta também da reserva de competência política a necessidade e
exclusividade da intervenção da Assembleia da República (artigo 164.º) para tal
efeito, devendo enquadrar-se tal competência no âmbito da alínea q) do n.º 1 do
artigo 168.º da Constituição, ou seja, dentro do domínio de competência relativa
da Assembleia da República, na medida em que afinal se trata, em derradeira
análise, de matéria que tem a ver com a organização e competência dos tribunais.
Por outro lado, como resulta com nitidez da exposição de motivos atrás
transcrita, do que se trata afinal é de uma redistribuição de competências entre
os actuais TAC’s e a 1.ª Secção do STA, sem que ao tribunal central
administrativo agora criado sejam atribuídas competências inovadoras ou que
alarguem ou ampliem as que actualmente já existem, embora conferidas a tribunais
diferentes.
É certo que a criação de um novo tribunal intermédio, em matéria de jurisdição
administrativa que se pretende que lhe seja atribuída, se interfere com as
competências específicas dos tribunais existentes — uma vez que se vem
posicionar hierarquicamente no meio deles —, todavia, tal como está concebido,
não afecta a competência constitucionalmente definida para os tribunais
administrativos e fiscais.
Seja como for, porque nesta matéria relativa à criação de um concreto tribunal,
como já se referiu atrás, é legítimo o pedido pelo Governo e a concessão pela
Assembleia da República de uma autorização legislativa para sobre ela legislar,
não ocorre, por isso, no caso em apreço, qualquer vício de inconstitucionalidade
quanto à criação do Tribunal Central Administrativo.
9 — Indicação de sequência
A segunda questão que vem suscitada pelo Presidente da República reporta-se à
legitimidade da autorização legislativa para modificar a composição e
competências do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais
(CSTAF).
Cumpria tratar agora desta questão. Porém, a autorização legislativa concedida
ao Governo para modificar a composição e competências do Conselho Superior dos
Tribunais Administrativos e Fiscais, pelo Decreto em apreço, dada a forma
utilizada («aperfeiçoar as regras») consente que nela possam vir a ser
abrangidas matérias que, no respeitante à alteração da composição do CSTAF,
podem afectar a «independência interna» do Conselho, com repercussão na própria
independência dos juízes, o que desde logo afectaria as garantias estatutárias.
No que se refere à modificação das competências do CSTAF, uma vez que o núcleo
essencial desta competência e que está constitucionalmente definido, se reporta
à nomeação, colocação, transferência e promoção dos juízes e ao exercício da
acção disciplinar, aspectos estes todos eles integradores do conteúdo essencial
do estatuto dos juízes, enquanto titulares de órgãos de soberania, a autorização
concedida pelo Decreto pode também afectar matéria nuclear do referido estatuto.
Assim, e, independentemente de saber se o CSTAF é ou não um órgão
constitucional, para efeitos da 2.ª parte da alínea l) do artigo 167.º da
Constituição — questão que não se torna necessário agora resolver —, havendo que
decidir se o estatuto dos juízes é ou não matéria de reserva absoluta de
competência legislativa da Assembleia da República (última questão suscitada
pelo Presidente da República), parece aconselhável que se aprecie a questão da
modificação da composição e competências do CSTAF, na parte aqui relevante,
apenas depois de se resolver a questão relativa ao estatuto dos juízes.
Assim, passa-se de imediato à apreciação desta questão para voltar, depois dela
resolvida, a tratar da questão do Conselho Superior.
10 — Estatuto dos Juízes
O Presidente da República questiona, relativamente a esta matéria, a
legitimidade da modificação do Estatuto dos Juízes dos Tribunais Administrativos
e Fiscais, no sentido de proceder ao alargamento das áreas de recrutamento
desses juízes.
10.1 — Nesta matéria, o pedido de autorização legislativa vem assim
fundamentado:
7 — Num plano bem diverso introduzem-se ainda duas importantes inovações no que
toca ao estatuto dos juízes do contencioso administrativo e fiscal.
Por um lado, atendendo à necessidade imperiosa de acentuar a formação
profissional especializada, quer inicial quer em exercício, dos juízes do
contencioso administrativo e fiscal, e enquanto o Centro de Estudos Judiciários
a não puder assegurar, alarga-se o acesso à respectiva magistratura a
licenciados em Direito habilitados com cursos equivalentes ad hoc, a realizar
mediante acordo prévio entre o Ministério da Justiça, o Conselho Superior dos
Tribunais Administrativos e Fiscais e as Faculdades de Direito ou o Instituto
Nacional de Administração.
Por outro lado, podem ainda candidatar-se ao concurso de provimento nos
tribunais administrativos de círculo e nos tribunais tributários e aduaneiros os
docentes universitários de Direito Administrativo ou de Direito Fiscal com, pelo
menos, dois anos de serviço, e os doutores e mestres nas mesmas especialidades
sem esta última exigência.
Está portanto, em causa, o alargamento das áreas de recrutamento dos juízes dos
tribunais administrativos e fiscais, ou seja, matéria que integra o estatuto
destes juízes.
Importa, por isso, traçar aqui uma síntese do que estabelece a este respeito tal
estatuto.
10.2 — De acordo com o preceituado no artigo 77.º do ETAF, o regime estatutário
dos magistrados do contencioso administrativo e fiscal é complexo: «os juízes
dos tribunais administrativos e fiscais formam um corpo único e regem-se pelo
disposto na Constituição da República Portuguesa sobre a independência, a
inamovibilidade, a irresponsabilidade e as incompatibilidades dos juízes, por
este estatuto e, com as necessárias adaptações, pelo Estatuto dos Magistrados
Judiciais».
No que respeita ao seu recrutamento, o artigo 85.º do ETAF estabelece que «os
juízes dos tribunais administrativos de círculo, dos tribunais tributários de
1.ª instância e dos tribunais fiscais aduaneiros são recrutados de entre juízes
de direito com classificação não inferior a Bom, seleccionados e graduados
mediante apreciação curricular e discussão de, pelo menos, um trabalho do
candidato sobre matéria de direito administrativo ou tributário, com relevância
para o respectivo contencioso a) e de entre licenciados que tenham frequentado
com aproveitamento cursos e estágios de formação para juízes dos tribunais
administrativos e fiscais no âmbito do Centro de Estudos Judiciários b).
São assim óbvias as modificações que se pretende introduzir: por um lado, a
criação de cursos realizados ad hoc para habilitar licenciados em Direito ao
acesso à magistratura do contencioso administrativo e fiscal e, por outro lado,
a admissibilidade ao concurso de provimento nos tribunais em causa de docentes
universitários nos ramos de direito administrativo ou fiscal que tenham dois
anos de serviço e de doutores e mestres das mesmas especialidades, sem exigência
de tempo de serviço.
10.3 — A questão que vem suscitada no pedido é de saber se esta matéria,
respeitando, directa e inequivocamente, ao estatuto dos juízes do contencioso
administrativo e fiscal, pode constituir objecto de uma autorização legislativa.
A este respeito — estatuto dos Juízes —, escrevem Gomes Canotilho e Vital
Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., p. 667) em
comentário ao artigo 167.º, alínea l), da Constituição, que «quanto aos juízes,
não é seguro se estão incluídos aqui, enquanto ‘titulares de órgãos de
soberania’ (os tribunais), ou se estão abrangidos no artigo 168.º, n.º 1, alínea
q), sobre a competência legislativa reservada apenas relativamente em matéria de
organização dos tribunais».
Esta dúvida tem vindo a manter-se porquanto o próprio Estatuto dos Magistrados
Judiciais, aprovado por lei da Assembleia da República (Lei n.º 21/85, de 30 de
Julho) invoca como normas fundantes o artigo 164.º, alínea d), artigo 168.º, n.º
1, alínea q), e o artigo 169.º, n.º 2, da Constituição com total omissão do
artigo 167.º, alínea l), todos da Constituição. Acresce também que o próprio
diploma criador do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos Fiscais e que
contém disposições sobre o estatuto daqueles juízes foi aprovado por simples
decreto-lei do Governo, editado, como se referiu, no uso de autorização
legislativa em 1984, embora depois ratificado, com alterações, pela Lei n.º
4/86, de 21 de Março.
Importa por isso analisar mais detidamente as normas em causa, por forma a que o
Tribunal decida a questão acima equacionada.
10.4 — Como se referiu atrás nos pontos 5 e 6, aquando da 1.ª revisão
constitucional, em que se desdobrou o artigo 167.º da Constituição de 1976 em
dois preceitos, um contendo matéria da reserva absoluta de competência
legislativa da Assembleia (artigo 167.º) e outro integrando matéria da reserva
relativa dessa competência (artigo 168.º), o critério decisivo para tal
separação de competências foi o de que na reserva absoluta se haveriam de
incluir as matérias de maior relevo jurídico-constitucional, para cuja aprovação
em forma de lei se deveria sempre exigir uma discussão pública na qual
interviessem todos os representantes das diversas opções políticas presentes na
Assembleia da República, sujeitando-se assim tais matérias à passagem pelo crivo
democraticamente relevante da discussão política parlamentar.
Estas matérias ficariam excluídas da possibilidade de sobre elas o Governo
legislar mesmo através de uma autorização legislativa, pois o sentido da reserva
absoluta aponta para o reforço da componente parlamentar com exclusão de
qualquer intervenção do executivo, não sendo por isso tais matérias susceptíveis
de autorização legislativa.
Entre estas matérias incluídas no artigo 167.º consta na alínea l) o «Estatuto
dos titulares dos órgãos de soberania e do poder local». Ora, como também já se
referiu supra, os tribunais são órgãos de soberania expressamente previstos na
Constituição (artigo 113.º, n.º 1), e os seus titulares são os juízes.
Assim, enquanto titulares de um órgão de soberania — os Tribunais —parece que
deveria concluir-se sem mais que o estatuto dos juízes deveria ser matéria da
reserva absoluta da Assembleia da República.
10.5 — Porém, a Constituição ao elencar as matérias que integram a reserva
relativa de competência da Assembleia da República (1.ª revisão constitucional),
manteve, na alínea q) do n.º 1 do artigo 168.º, a matéria respeitante à
«organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos
respectivos magistrados», podendo ver-se prima facie na letra do preceito também
incluída a matéria do «estatuto dos juízes».
Há, por isso, necessidade de compatibilizar as duas normas constitucionais por
forma a delimitar o âmbito de competência de cada uma delas, uma vez que não é
admissível a existência no mesmo diploma fundamental de duas normas sobre
competência legislativa cujo recorte material se sobreponha, mas postulando
exigências profundamente diversas quanto à forma de exercício dessa competência.
O Tribunal entende que o modo razoável de efectuar a compatibilização das duas
referidas normas é o de considerar que o estatuto dos juízes, enquanto titulares
do órgão de soberania «Tribunais» pertence à competência legislativa reservada
da Assembleia da República, achando-se incluída na alínea l) do artigo 167.º da
Constituição, reportando-se a alínea q) do n.º 1 do artigo 168.º quando refere a
«organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos
respectivos magistrados» na parte respeitante ao inciso «estatuto» apenas ao
estatuto dos magistrados do Ministério Público.
Vejamos as razões que podem ser aduzidas em defesa de um tal entendimento.
10.6 — Como se referiu atrás (ponto 3, deste acórdão), a Constituição depois de,
no artigo 113.º, n.º 1, estabelecer que os Tribunais são órgãos de soberania,
desenvolve na sua Parte iii sob a epígrafe «Organização do Poder Político»,
Título v «Os Tribunais», os princípios gerais desta matéria, começando por
afirmar no artigo 205.º que «os tribunais são os órgãos de soberania com
competência para administrar a justiça em nome do povo».
É desde logo inequívoco que aos juízes cabe a qualificação de titulares dos
órgãos de soberania que são os Tribunais.
Ora, a matéria relativa ao estatuto dos juízes é, sem dúvida, uma daquelas que,
pela importância que os Tribunais e a função jurisdicional assumem no sistema
global da Constituição, se repercute, por via das alterações que lhe forem
introduzidas em toda a vida comunitária, uma vez que constitui o cerne de uma
das funções mais relevantes do Estado de direito democrático; por essa razão,
merece ver os diplomas que a tenham por objecto sujeitos a uma discussão pública
e pluralista, retirando-a do âmbito das autorizações legislativas.
Por outro lado, na ausência de elementos decorrentes da discussão parlamentar
sobre a revisão constitucional que veio a aprovar a Lei Constitucional n.º 1/82,
de 30 de Setembro, e de outros elementos sistemáticos que permitam ao intérprete
tomar uma posição que aponte decisivamente para um entendimento restritivo do
conteúdo da alínea l) do artigo 167.º [v. g., no sentido de que a mesma alínea,
tendo resultado da eliminação da alínea u) da versão originária do artigo 167.º,
que estabelecia a reserva de competência legislativa quanto à remuneração do
Presidente da República, dos Deputados, dos membros do Governo e dos juízes dos
tribunais superiores, apenas contemplaria relativamente aos juízes o aspecto
remuneratório, já que se manteve a alínea j) da versão originária como alínea q)
da versão de 1982], tem de se concluir no sentido de que não é legítimo ao
intérprete fazer distinções onde a própria lei não distingue.
Acresce que uma interpretação sistemática da Lei Fundamental impõe que os
conceitos jurídicos utilizados na Constituição devam ser lidos com a dimensão e
alcance que ela própria lhes outorga. Assim, se no artigo 167.º, alínea l), a
Constituição refere o «estatuto dos titulares dos órgãos de soberania» como da
reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia e se os juízes dos
Tribunais são eles próprios titulares de órgãos de soberania enquanto exercem
tais funções, apenas a demonstração da existência de um fundamento material
bastante, extraído de modo nítido e inequívoco de quaisquer elementos
interpretativos disponíveis, poderá levar o intérprete e aplicador da norma a
«ler» na referida alínea constitucional todos os outros titulares de órgãos de
soberania, excluindo os juízes dos tribunais, ou restringindo o âmbito do seu
estatuto a algumas normas directamente respeitantes a tal titularidade.
Sem dúvida que seria possível tentar realizar a compatibilização das duas normas
através da descoberta de um critério material que permitisse manter dentro da
competência legislativa absoluta da Assembleia apenas as normas relativas ao
estatuto dos juízes que directamente respeitassem à sua qualidade de titulares
de um órgão de soberania remetendo para a competência relativa as que
respeitassem essencialmente ao aspecto profissional do juiz com referência à
organização e competências dos próprios tribunais.
É certo que é possível encontrar no estatuto dos juízes normas que, por se
mostrarem directamente relacionadas com a própria e específica organização dos
tribunais, não repugnaria ver retiradas do âmbito desse estatuto e inseridas no
particular domínio organizacional desses órgãos de soberania.
Tratar-se-ia primordialmente de normas relacionadas com a afectação de juízes
aos diferentes tribunais e com a própria movimentação dos magistrados dentro das
diferentes categorias de tribunais na mesma ordem jurisdicional. Estas normas,
em princípio, não poriam em causa a relação de titularidade do órgão de
soberania — este, enquanto tal, tem de se caracterizar pela permanência e
continuidade, enquanto que a titularidade é, em regra, temporária — mas apenas
se reportariam aos aspectos organizacionais do próprio órgão.
Esta possibilidade, todavia, não só estaria votada ao insucesso pela extrema
dificuldade em definir um critério material que pudesse permitir separar, com
segurança, normas estatutárias para as submeter a diferente regime de garantia
de formação como também, e desde logo, tal hipótese não conseguiria encontrar um
mínimo de apoio quer nos trabalhos preparatórios quer no próprio elemento
sistemático.
Por outro lado, mesmo que se pudesse discernir um tal critério separador, o
certo é que, no caso em apreço, a matéria, relativamente à qual se suscitam
dúvidas de constitucionalidade, nunca poderia ser considerada como matéria que
pudesse integrar-se nos aspectos meramente organizacionais do estatuto dos
juízes para poder ser retirada do âmbito do núcleo essencial desse estatuto,
enquanto titulares de cada um dos órgãos de soberania que são os Tribunais.
Com efeito, o que vem verdadeiramente questionado é o alargamento da área de
recrutamento dos juízes dos tribunais administrativos e fiscais. Ora, esta
matéria nada tem a ver quer com aspectos organizacionais, quer com aspectos de
afectação individual de juízes: do que se trata é de abrir o âmbito pessoal de
recrutamento de juízes para todo e qualquer tribunal administrativo e fiscal,
isto é, dos futuros titulares de órgãos de soberania.
Ora, esta matéria insere-se inequivocamente no âmbito pessoal do estatuto dos
juízes e vem a afectar decisivamente a situação estatutária de titularidade de
órgão de soberania de todos quantos se encontram já a desempenhar tais funções
dentro dos tribunais administrativos e fiscais. Sendo, por isso, uma matéria
característica do estatuto dos juízes e sendo estes titulares de cada um dos
órgãos de soberania que são os Tribunais, tal matéria não pode deixar de se
considerar incluída na reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia
da República, nos termos do que se dispõe na alínea l) do artigo 167.º da
Constituição da República (versão actual).
Neste sentido aponta inegavelmente o facto de a Constituição no seu Título v,
sob a epígrafe «Tribunais», conter o Capítulo i, sobre os «Princípios Gerais»
(artigos 205.º a 210.º), o Capítulo ii relativo à «Organização dos Tribunais»
(artigos 211.º a 216.º) e o Capítulo iii, sob a epígrafe «Estatuto dos Juízes»
onde se referem os princípios constitucionais que definem este estatuto,
designadamente a unidade do mesmo, a forma de recrutamento dos magistrados
judiciais da 1.ª e 2.ª instâncias, o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça
(artigo 217.º); as garantias e incompatibilidades dos juízes (artigo 218.º); a
nomeação, colocação, transferência, promoção dos juízes e o exercício da acção
disciplinar (artigo 219.º), e finalmente (artigo 220.º) se estabelece a
composição do Conselho Superior da Magistratura e se aplica aos seus vogais as
regras sobre garantias dos juízes.
Considera-se assim que dos preceitos atrás referidos resulta um conceito
constitucionalmente adequado do estatuto dos juízes enquanto titulares de órgãos
de soberania, e que pela própria relevância sistemática derivada do atrás
referido enquadramento constitucional, é matéria que tem necessariamente de se
considerar integrada na reserva absoluta da competência da Assembleia.
Acresce ainda que não faria sentido não considerar o estatuto dos juízes dos
tribunais administrativos e fiscais incluído em tal reserva, quando é certo que
o estatuto dos titulares do próprio Conselho Superior do Ministério Público
(entre outros órgãos constitucionais que se podiam citar) aí há-de ser incluído,
pois se trata de um órgão constitucional (artigo 222.º, n.º 2), sendo certo que
o Ministério Público, nos termos do n.º 2 do artigo 221.º da Constituição, goza
de estatuto próprio e de autonomia, enquanto que os tribunais são independentes
e apenas estão sujeitos à lei (artigo 206.º), independência esta que se
transmite aos próprios juízes enquanto titulares daqueles órgãos de soberania.
No sentido de que a matéria do estatuto dos juízes se integra decididamente no
âmbito da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da
República, pronuncia-se Cardoso da Costa (in A Jurisdição Constitucional em
Portugal, 2.ª ed., revista e actualizada, Coimbra, 1992, p. 20, nota 18), onde
escreve:
Diversamente, a reserva do artigo 168.º, n.º 1, alínea q), CR, respeitante à
«organização e competência dos tribunais», em geral, assume um carácter
meramente «relativo» (quer dizer, permite a delegação no Governo). Já, porém,
há-de entender-se que o «estatuto» dos juízes em geral, volta a integrar — como
o dos juízes do Tribunal Constitucional e o dos titulares dos restantes órgãos
de soberania — a matéria de reserva parlamentar «absoluta», agora por força do
artigo 167.º, alínea l), CR (e que a referência daquele outro preceito ao
«estatuto dos respectivos magistrados» se reporta, assim, apenas ao do
Ministério Público).
Assim, o estatuto dos juízes, enquanto titulares de cada um dos órgãos de
soberania que são os Tribunais, não pode deixar de se considerar como estando
incluído no âmbito da norma do artigo 167.º, alínea l), da Constituição.
O que vale por dizer que quanto a tal matéria — modificação do estatuto dos
juízes — não é legítima a concessão de uma autorização legislativa ao Governo
para legislar sobre ela, pelo que, nesta parte, a norma constante do artigo 1.º
do Decreto n.º 266/vi da Assembleia da República, conjugada com o disposto na
alínea g) do artigo 2.º do mesmo Decreto, quando concede autorização ao Governo
para legislar sobre a introdução de aperfeiçoamentos no estatuto dos Juízes do
contencioso administrativo e fiscal, com o alargamento das áreas de
recrutamento, viola o preceituado na alínea l) do artigo 167.º da Constituição.
11 — O Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais
Alcançada uma conclusão quanto à matéria do estatuto dos juízes, importa voltar
à questão deixada em aberto relativa à introdução de aperfeiçoamentos sobre a
composição e competências do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e
Fiscais.
11.1 — Este Conselho foi criado pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril
(ETAF), ratificado com alterações pela Lei n.º 4/86, de 21 de Março. Com
efeito, foi pelo artigo 98.º, n.º 1, deste diploma que se deu vida ao CSTAF, ali
configurado como «órgão de gestão e disciplina da jurisdição administrativa e
fiscal».
Este Conselho tinha as competências constantes das diversas alíneas do n.º 2 do
referido preceito e a composição que constava do artigo 99.º, na redacção da Lei
n.º 4/86.
Importa referir quanto à competência deste Conselho que lhe cabia
designadamente, «nomear, colocar, transferir, promover, exonerar e apreciar o
mérito profissional dos juízes dos tribunais administrativos e fiscais e exercer
a acção disciplinar relativamente a eles» [alínea a) do n.º 2 do artigo 98.º];
«proceder à selecção e graduação a que se refere a alínea a) do n.º 1 do artigo
85.º» [alínea b)]; «conhecer de reclamações das decisões em matéria
administrativa e disciplinar dos presidentes e juízes dos tribunais
administrativos» [alínea c)]; «aprovar o regulamento interno do Conselho»
[alínea f) do artigo 98.º].
No que respeita à composição, o CSTAF é presidido pelo Presidente do STA e
integra a sua composição um juiz eleito de entre e pelos juízes da Secção de
Contencioso Administrativo do STA, um juiz eleito de entre e pelos juízes da
Secção do Contencioso Tributário do STA, um juiz dos TAC’s eleitos pelos seus
pares, um juiz dos Tribunais Tributários de 1.ª instância ou dos tribunais
fiscais aduaneiros eleitos pelos seus pares, um jurista de reconhecida
competência em matérias administrativas e com experiência na administração
activa, designado pela Assembleia da República, um jurista de reconhecida
competência em matérias fiscais e com experiência na administração activa,
também designado pela Assembleia da República, um docente da Faculdade de
Direito que tenha regido disciplinas de direito administrativo e outro que tenha
regido disciplinas de direito fiscal, ambos designados pela Assembleia da
República e finalmente, um jurista de reconhecido mérito designado pela
Assembleia da República.
11.2 — Importa referir que, à data da criação deste Conselho, pelo diploma
referido que foi emitido ao abrigo da Lei de Autorização Legislativa n.º 29/83,
de 8 de Setembro, a Constituição da República, em matéria de tribunais
administrativos e fiscais, apenas previa como possível a sua existência (artigo
212.º, n.º 2, 1.ª parte, da Constituição, na versão da Lei Constitucional n.º
1/82), estabelecendo no n.º 3 desta referida disposição que «a lei determina os
casos e as formas em que os tribunais previstos nos números anteriores se podem
constituir, separada ou conjuntamente, em tribunais de conflitos».
E, na mesma versão da Lei Fundamental — artigo 222.º, n.º 2 —, estabelece-se que
«a lei define as regras e determina a competência para a colocação,
transferência e promoção, bem como para o exercício da acção disciplinar em
relação aos juízes dos restantes tribunais, com salvaguarda das garantias
previstas na Constituição».
Nenhuma referência existia, na Constituição, ao CSTAF, que não tinha, assim,
existência constitucional.
11.3 — Mas, uma vez criado pelo referido diploma o Conselho como órgão de gestão
e disciplina dos juízes da jurisdição administrativa e fiscal, a revisão
constitucional de 1989 resolveu que os tribunais administrativos e fiscais
deixassem de ser tribunais meramente facultativos, como eram até ali, para
passarem a ser considerados como uma categoria de tribunais com um estatuto
próprio e, embora separado, de alguma forma paralelo ao dos tribunais judiciais,
com uma competência específica para o julgamento das questões expressamente
referidas no n.º 3 do artigo 214.º da Constituição (v. g., o julgamento das
acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios
emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais).
Simultaneamente com esta «constitucionalização positiva» da jurisdição
administrativa e fiscal, o legislador constituinte de 1989 também alterou a
matéria do Estatuto dos Juízes e, no artigo 219.º, sob a epígrafe «Nomeação,
colocação, transferência e promoção de juízes» (correspondente ao anterior
artigo 222.º — versão de 1982), introduziu um novo n.º 2 em que atribuiu a
competência para proceder à nomeação, colocação, transferência e promoção dos
juízes dos tribunais administrativos e fiscais, bem como para exercer a acção
disciplinar «ao respectivo conselho superior, nos termos da lei».
E é esta a única referência que o texto constitucional faz ao CSTAF: confere
dignidade constitucional às funções que o ETAF já atribuía na alínea a) do n.º 2
do artigo 98.º ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Há assim um reconhecimento constitucional deste Conselho, sendo porém inegável
que, diferentemente do que acontece com o Conselho Superior da Magistratura o
qual tem a sua composição expressamente estabelecida na Constituição que por sua
vez define por forma rigorosa os estatutos dos seus membros (artigo 220.º), no
que se refere ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, para
além da referida atribuição de funções, a Constituição é totalmente omissa,
remetendo a totalidade do seu regime, incluindo a própria composição, para a
lei.
Todavia, não pode deixar de se reconhecer que embora vendo remetida para a lei
parte do seu regime, o CSTAF, como órgão de gestão e disciplina dos juízes da
jurisdição administrativa e fiscal, deverá concretizar o modelo
jurídico-constitucional definido para o Conselho Superior da Magistratura,
designadamente como meio de garantir a autonomia dos respectivos juízes e sendo
também uma forma de garantia institucional da independência dos magistrados que
lhe estão sujeitos relativamente aos aspectos constitucionalmente mencionados no
n.º 2 do artigo 219.º da Constituição.
Assim, a composição do CSTAF não pode deixar de se reflectir no próprio estatuto
dos juízes. Com efeito, a estes não é necessariamente indiferente que a
composição dos membros do Conselho Superior, nomeadamente a qualidade destes
(ser ou não juiz), a sua origem (qual a entidade que os designa), a respectiva
relação intra-profissional (maioria de membros do Conselho oriundos da
própria magistratura e eleitos pelos juízes ou maioria de membros exteriores à
magistratura), tudo elementos em que radica a componente essencial da
imparcialidade e isenção do tratamento dos magistrados da jurisdição
administrativa e fiscal e como tais repercutindo-se no núcleo essencial das
matérias que integram o estatuto dos juízes de quaisquer tribunais.
No que respeita às competências do CSTAF, a ligação com o estatuto dos
respectivos juízes é ainda mais flagrante. De facto, compete ao Conselho
Superior a nomeação, colocação, transferência e promoção dos juízes dos
tribunais administrativos e fiscais e bem assim, o exercício da respectiva acção
disciplinar, tudo matérias integradoras, sem margem para quaisquer dúvidas, do
estatuto dos respectivos juízes. Acresce que tais competências estão
constitucionalmente reservadas àquele Conselho.
Para além destas competências, importa referir que ao CSTAF compete ainda nos
termos do ETAF, «proceder à selecção e graduação a que se refere a alínea a) do
n.º 1 do artigo 85.º», ou seja, à selecção e graduação dos juízes dos tribunais
administrativos de círculo, dos tribunais tributários de 1.ª instância e dos
tribunais fiscais aduaneiros.
Esta competência integra-se claramente no domínio do recrutamento e selecção dos
juízes dos tribunais administrativos e fiscais, ou seja, matéria que se inclui
dentro do âmbito do estatuto dos juízes, que no ponto anterior se concluiu
inserir-se no domínio da reserva absoluta da competência da Assembleia da
República.
Nestes termos, e tratando-se de matérias que directa ou indirectamente respeitam
ao estatuto dos juízes enquanto titulares de órgãos de soberania, não pode
deixar de se concluir que a composição e as competências do Conselho Superior
dos Tribunais Administrativos e Fiscais, nessa parte, pertence também à reserva
absoluta da Assembleia da República, não sendo admissível que quanto a ela se
peça e conceda autorização legislativa.
Nesta parte, há que reconhecer que o Decreto da Assembleia da República em
análise, ao conceder autorização legislativa ao Governo para «aperfeiçoar as
regras relativas à composição e competências do Conselho Superior dos Tribunais
Administrativos e Fiscais, viola o preceituado no artigo 167.º, alínea l), da
Constituição da República Portuguesa.
III — Decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
A) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade da norma constante do
artigo 1.º do Decreto n.º 266/vi da Assembleia da República, conjugada com o
disposto na alínea a) do artigo 2.º do mesmo Decreto;
B) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas constantes do
artigo 1.º do mencionado Decreto, quando conjugado com o disposto nas alíneas f)
e g) do seu artigo 2.º, por violação do preceituado no artigo 167.º, alínea l),
da Constituição da República Portuguesa.
Lisboa, 10 de Agosto de 1995. — Vítor Nunes de Almeida — Armindo Ribeiro Mendes
— Antero Alves Monteiro Diniz — Maria da Assunção Esteves — António Tavares da
Costa — Luís Nunes de Almeida — José Manuel Cardoso da Costa.
(1) Acórdão publicado no Diário da República, I Série-A, de 6 de Setembro de
1995.