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Proc. nº 333/91
1ª Secção
Cons. Rel.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - No Tribunal Cível da Comarca de Lisboa a A. requereu a
providência cautelar de restituição provisória da posse de um imóvel de que era
arrendatária. Na petição afirmava que o Estado subentrara na posição do
senhorio-particular com quem contratou e denunciara o arrendamento nos termos do
artigo 9º do Decreto-Lei nº 507-A/79 de 24 de Dezembro. Este preceito reputava-o
de orgânica e materialmente inconstitucional.
O pedido foi indeferido por decisão do juiz de 6 de Setembro de 1989
e desta decisão recorreu a A. para o Tribunal da Relação de Lisboa. Em alegações
reiterou a tese de inconstitucionalidade material e orgânica do artigo 5º do
Decreto-Lei nº 507-A/79 de 24 de Dezembro e referiu-a também aos artigos 8º 10º
e 11º do mesmo Decreto-Lei.
Essa tese fundava-a por um lado no artigo 2º da Constituição
considerando que aquelas normas afrontavam a garantia constitucional da
segurança jurídica e da protecção da confiança que se deriva do princípio do
Estado de direito democrático; por outro lado no artigo 13º da Constituição
considerando que as mesmas normas construíam um regime de desfavor para os
arrendatários dos imóveis do domínio privado do Estado com relação aos demais
arrendatários; e por outro lado ainda em que o Decreto-Lei nº 507-A/79 de 24 de
Dezembro tratando matéria relativa ao regime do arrendamento rural e urbano
houvera sido editado sem autorização parlamentar justamente aí onde o artigo
168º nº 1 alínea h) a impunha.
Em acórdão de 19 de Junho de 1990 a Relação de Lisboa negou
provimento ao recurso. A A. recorreu ainda para o Supremo Tribunal de Justiça
mas sem êxito pois que em acórdão de 8 de Maio de 1991 esse Supremo Tribunal
confirmou a decisão da Relação.
A mesma Sociedade interpôs então recurso para o Tribunal
Constitucional nos termos do artigo 70º nº 1 alínea b) da Lei nº 28/82 de 15 de
Novembro. Em alegações reiterou a tese de inconstitucionalidade das normas dos
artigos 8º a 11º do Decreto‑Lei nº 507-A/79 de 24 de Dezembro. E concluiu assim:
'I) - O artigo 9º. nº 1 do Decreto-Lei nº 507-A/79 de 24 de
Dezembro por erro publicado como sendo o Decreto nº 139-A/79 da mesma data
(vd. rectificação in D.R. I S. nº 168 de 23-7-1980) prevê a aplicação das
respectivas normas mesmo quando se trata de prédios que o Estado tenha adquirido
e que já estejam arrendados.
II) - Mas a retroactividade da lei como sucede neste caso ofende o
princípio do Estado de Direito democrático consignado no Preâmbulo da
Constituição e no seu artigo 2º. quando as normas posteriormente editadas sejam
desfavoráveis para os cidadãos traindo a confiança depositada na ordem jurídica
anterior com violação do princípio da segurança jurídica.
III) - Por isso a norma do citado artigo 9º. nº 1 do Decreto-Lei nº
507-A/79 é inconstitucional na medida em que prevê a aplicação dos respectivos
preceitos aos arrendamentos de prédios que o Estado tenha adquirido já
arrendados.
IV) - E o arrendamento sub judice está nessas circunstâncias pois a
ora recorrente já era arrendatária da loja com o nº ----------- da Rua
----------------------- em Lisboa quando o Estado adquiriu o prédio de que a
mesma faz parte consoante mostram os documentos de fls. 7 e segs.
V) - Aliás as normas dos artigos 8º a 11º. inclusive do Decreto-Lei
nº. 507-A/79 contrariam o princípio da igualdade consignado no artigo 13º da
Constituição e no artigo 7º. da Declaração Universal dos Direitos do Homem
estando assim ainda por tal razão feridas de inconstitucionalidade.
VI) - Por outro lado atento o disposto no artigo 168º. nº 1 alínea
h) da Constituição a publicação do Decreto-Lei nº 507-A/79 carecia de
autorização da Assembleia da República o que não se verificou encontrando-se
assim as referidas normas por esse motivo igualmente feridas de
inconstitucionalidade.
VII) - Portanto negando provimento ao recurso interposto a fls. 63 o
acórdão recorrido (como aliás também as decisões que o procederam) violou a do
artigo 207º. da Constituição.
Alegou também o Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal.
Considerou então que dentre as normas impugnadas pela recorrente só as dos
artigos 8º e 9º nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 507-A/79 estão aptas a constituir-se
em objecto do recurso de constitucionalidade. Afirmou assim:
'Face à matéria dada como provada e ao teor das diferentes decisões
e das alegações parece-nos que o que cumpre apreciar é a constitucionalidade das
normas que estabelecendo um regime especial permitem ao Estado denunciar os
contratos de arrendamento dos bens imóveis de que é proprietário não estando
essa denúncia dependente de acção judicial e que determinam a aplicabilidade do
diploma aos arrendamentos cujo primitivo contrato de arrendamento não tenha sido
celebrado pelo arrendatário com o Estado proprietário.
Ora os preceitos onde se encontram estabelecidas tais questões são
os artigos 8º e 9º nºs 1 e 2.
Os outros preceitos (artigos 10º e 11º) referem-se a indemnizações e
compensações ou à aplicabilidade do regime do nº 2 do artigo 9º a outras
situações questões estas que são totalmente estranhas à matéria dos presentes
autos'.
Depois pronunciou-se pela não inconstitucionalidade daquelas normas
dos artigos 8º e 9º nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 507-A/79 de 24 de Dezembro.
II - A delimitação do objecto do recurso
Desde o momento das alegações de recurso na Relação de Lisboa que a
A. vem suscitando o problema da constitucionalidade das normas dos artigos 8º a
11º do Decreto-Lei nº 507-A/79. Essas normas dispõem assim:
'Artigo 8º - O Estado só pode denunciar os contratos de arrendamento
relativos aos seus prédios antes do termo do prazo ou da renovação quando esses
prédios ou os correspondentes locais se destinam à instalação dos seus serviços
ou outros fins de utilidade pública.
Artigo 9º - 1 - Nos casos previstos no artigo anterior o
arrendatário será notificado da denúncia do arrendamento pela Direcção-Geral do
Património - ou quando o prédio tenha sido adquirido já arrendado pelo serviço
que realizou a aquisição - com antecedência não inferior a seis meses antes do
termo do prazo do contrato ou da sua renovação através de carta registada e sem
dependência de acção judicial.
2 - Se o arrendatário despedido não desocupar o prédio no termo do
prazo concedido a entidade administrativa ou policial fará imediatamente o
despejo.
Artigo 10º - 1 - Os arrendatários de dependências para habitação têm
direito à indemnização prevista no nº 1 do artigo 1099º do Código Civil.
2 - No caso de arrendamento de dependências para instalação de
estabelecimento comercial ou industrial para exercício de profissão liberal ou
de prédio rústico não sujeito ao regime de arrendamento rural os arrendatários
despedidos terão sempre direito à indemnização referida no número anterior e
ainda a uma compensação sempre que por acto seu as dependências arrendadas
tenham aumentado de valor locativo.
3 - A importância da compensação mencionada no número precedente é
fixada pelo director-geral do Património e não pode exceder dez vezes a renda
anual.
4 - Os arrendatários não terão direito a qualquer indemnização ou
compensação se vierem a beneficiar de novas instalações fornecidas pelo Estado
que reúnam condições idênticas às que desocuparem.
Artigo 11º - O disposto no nº 2 do artigo 9º é também aplicável sem
dependência de acção judicial nos casos de denúncia com fundamento na alínea b)
do artigo 1096º do Código Civil bem como nos casos de resolução ou de caducidade
do contrato por qualquer dos fundamentos admitidos no mesmo Código e uma vez
respeitados os prazos estabelecidos na lei civil'.
Analisando o concreto processo de restituição provisória da posse -
de que emerge o presente recurso - há-de ver-se que a matéria controversa
consiste aí na denúncia pelo Estado de
contrato de arrendamento comercial de imóvel de que é proprietário mesmo quando
sucedeu ao locador que celebrou aquele contrato e isso com independência de
prévia acção judicial.
Sobre esta matéria se construiu toda a argumentação das alegações e
sobre esta matéria apenas se decidiu no acórdão recorrido do Supremo Tribunal de
Justiça. Isso implica - em ordem ao artigo 70º nº 1 alínea b) da Lei do Tribunal
Constitucional - que dentre as normas que se vêm de transcrever só as dos
artigos 8º e 9º nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 507-A/79 estão aptas a constituir-se
em objecto do recurso de constitucionalidade [A espécie de acção aliás - acção
de restituíção da posse - afasta por natureza o problema da indemnização]. A
questão delimita-se pois nessas normas na medida em que por elas se determina
que o Estado pode denunciar o arrendamento de imóvel para fins comerciais mesmo
quando adquiriu esse imóvel já arrendado e com independência de prévia acção
judicial.
III - A recorribilidade da decisão
A decisão recorrida emerge de providência cautelar de restituição
provisória da posse [C.P.C. artigo 393º e seguintes].
Não define assim por modo definitivo a solução do litígio. Perguntar-se-á se o
carácter provisório daquela mesma decisão implica aqui o não conhecimento do
recurso. Ou seja é necessário averiguar se aqui se verificam os pressupostos do
artigo 70º nº 1 alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional.
E a resposta é afirmativa. No modo específico por que se realiza a
aplicação das normas dos artigos 8º e 9º nºs. 1 e 2 do Decreto-Lei nº 507-A/79
de 24 de Dezembro há-de ver-se que a eventual emergência de uma decisão de não
restituição provisória da posse provoca já efeitos materiais na esfera de
existência do interessado cuja reversibilidade não pode à partida ter-se por
assegurada. E porque é assim porque na 'ordem prática das coisas' (Jorge
Miranda) a decisão provisória é capaz de no seu espaço de aplicação produzir
efeitos definitivos na esfera do titular do direito ou interesse em causa não
pode afirmar-se a irrecorribilidade para o Tribunal Constitucional dessa mesma
decisão. Não pode porque não está assegurada a consumpção dos efeitos da
sentença provisória nos efeitos da sentença definitiva. Para mais é o próprio
teor dos enunciados relativos aos pressupostos do recurso para o Tribunal
Constitucional da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro a não distinguir entre
sentenças provisórias e definitivas em ordem à tutela do princípio da
constitucionalidade. Do que se deriva aqui uma conclusão que já não é a dos
acórdãos nº 151/85 Acórdãos do Tribunal Constitucional 6º volume pág. 351 e
segs. e nº 267/91 D.R. II Série de 23-10-1991]. Daí que a decisão proferida pelo
Supremo Tribunal de Justiça haja de considerar-se uma decisão recorrível para
efeitos do artigo 70º nº 1 alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional.
IV - A questão de constitucionalidade [material] das normas dos
artigos 8º e 9º nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 507-A/79 de 24 de Dezembro
1. Em vista do direito fundamental de propriedade e também do
princípio da igualdade o Tribunal Constitucional confrontou já estas normas com
a Constituição. No Acórdão nº 267/95 da 1ª Secção [inédito] afirmou
essencialmente que a protecção constitucional da posição do arrendatário -
posição que traduz um valor económico relevante capaz pois de se inscrever no
programa da norma do artigo 62º da Constituição - não apresentava razões de peso
suficientes para fazer recuar o interesse público que ali justificava a
denúncia. E em razão desta justificação teve como não arbitrária a actuação
legislativa que se realiza naquelas normas considerando que a competência ali
atribuída ao Estado‑senhorio não afrontava nem o artigo 62º nem o artigo 13º da
Constituição.
As normas em análise dos artigos 8º e 9º nºs 1 e 2 do Decreto-Lei
nº 507-A/79 têm neste processo um quadro de aplicação concreta idêntico ao que
se reconhecia naqueloutro da 1ª secção. É verdade que agora o recorrente invoca
em alegações também o artigo 205º da Constituição da República para pôr em causa
a legitimidade da 'dispensa de juiz' na execução do despejo [sendo que esse
argumento não é depois levado à conclusão das alegações]. Dir-se-á contudo que o
problema de constitucionalidade nesta perspectiva do artigo 205º vai ligado ao
problema da justificação (ou não justificação) da denúncia pelo Estado do
arrendamento nos termos em que o definem as normas em apreço: justificada a
denúncia naqueles termos segue-se que ao legislador não é vedado regular por
aquele modo a sua execução. Aqui devolvemo-nos para a jurisprudência do Acórdão
nº 267/95 que se reitera concluindo pela conformidade das mesmas normas à
Constituição da República designadamente aos artigos 62º 13º e 205º.
2. Mas a questão de constitucionalidade não é aqui apenas referida a
essas normas constitucionais. Segundo a recorrente ela releva ainda do princípio
do Estado de Direito democrático e da garantia da segurança jurídica que daí se
deriva (CRP artigo 2º) e releva da ordem de competências de legislação
constitucionalamente estabelecida para o regime do arrendamento rural e urbano
(CRP artº 168º nº 1 alínea h)).
2.1. Sobre a garantia constitucional da segurança jurídica
afirma-se então que ela está a ser posta em causa ali onde as normas do artigo
9º nºs 1 e 2 [e a do artigo 8º que com elas entra em relação] determinam que o
Estado pode denunciar o contrato de arrendamento mesmo quando haja adquirido o
prédio já arrendado e que por isso existe uma 'retroactividade da lei' a trair
'a confiança depositada na ordem jurídica anterior'. Mas não é assim.
Desde logo a ordem que antecedeu o Decreto-Lei nº 507-A/79 de 24 de
Dezembro era quanto aos arrendamentos do Estado estabelecida pelo Decreto-Lei nº
23465 de 18 de Janeiro de 1934 que no artigo 7º continha norma idêntica às do
artigo 9º que aqui se analisam.
Depois não é em boa verdade retroactiva esta norma: Aqui
estabelece-se uma complexa regulação da denúncia alertando para que ela está
legitimada quando o Estado é ou vem a ser senhorio. Ao chamar a atenção para a
denúncia quando o Estado tenha adquirido o prédio já arrendado a norma acautela
desde logo um facto provável e futuro e estende-lhe o seu âmbito de regulação.
Contrariamente ao que afirma a recorrente não é isso um direito novo ou num
outro entendimento das alegações um direito novo arrastado por um facto novo mas
um facto novo previsto num direito que já existe.
Não pode então dizer-se que a ordem jurídica vem defraudar a
confiança dos cidadãos neste momento da fixação dos pressupostos da denúncia
pelo Estado de prédios que adquiriu já arrendados. As normas em apreço permitem
uma suficiente calculabilidade sobre a situação jurídica que definem. Não
afrontam pois o artigo 2º da Constituição.
2.2. Afirma-se ainda na petição de recurso que o Decreto-Lei nº
507-A/79 foi produzido sem autorização legislativa do Parlamento por isso sendo
organicamente inconstitucionais as normas impugnadas que dele participam.
Ora ao tempo da elaboração daquele Decreto-Lei a Constituição da
República [redacção originária] não estabelecia uma reserva parlamentar de
competência legislativa em matéria de arrendamento (cf. artigo 167º). Só em 1982
com a segunda revisão constitucional o arrendamento passou a integrar o domínio
reservado da competência (relativa) do Parlamento (cf. artigo 168º nº 1 alínea
h) que se mantém).
Neste plano do controlo dos actos legislativos em vista das regras
constitucionais sobre a produção jurídica vale o princípio 'tempus regit actum':
a validade constitucional orgânica de uma norma legal não é afectada mesmo se
lhe sobrevêm novas regras constitucionais de produção jurídica. Como lembram
Gomes Canotilho e Vital Moreira 'a inconstitucionalidade superveniente só pode
dizer respeito à inconstitucionalidade material pois a inconstitucionalidade
orgânica ou formal - que necessariamente diz respeito à formação do acto - só
pode ser aferida pelas normas constitucionais vigentes à data dessa formação'
[Constituição da República Portuguesa Anotada 3ª edição revista Coimbra 1993
pág. 993; no mesmo sentido cf. entre outros os acórdãos nº 77/88 D.R. I Série de
28-04-1988 241/90 D.R. II Série de 22-01-1991 350/90 D.R. II Série de
19-03-1991].
Do que se conclui que o Decreto-Lei nº 507-A/79 não é organicamente
inconstitucional.
V - A decisão
Nestes termos decide-se:
Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 8º e 9º nºs 1 e 2
do Decreto-Lei nº 507-A/79 de 24 de Dezembro e em consequência negar provimento
ao recurso.
Lisboa 11 de Julho de 1995
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Vítor Nunes de Almeida (vencido pelas razões
que fundamentaram a decisão tirada no Acórdão nº 267/91 publicado no 'Diário da
República' II Série de 23 de Outubro de 1991 quanto á questão do conhecimento do
recurso)
José Manuel Cardoso da Costa (vencido quanto
ao conhecimento de recurso conforme posição assumida nos Acórdãos nºs 267/91 e
151/85 - este último do qual fui relator e versando hipótese que a meu ver não
apresenta qualquer especificidade 'estrutural' em confronto com o objecto do
presente recurso)