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Proc. n.º 459/04
1ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. deduziu reclamação do despacho do Relator do Supremo Tribunal de Justiça que não admitiu o recurso que pretendia interpor para o Tribunal Constitucional.
2. Resulta dos autos que:
2.1. No Tribunal Judicial da Comarca da Lousã, A. intentou, em Janeiro de
2001, contra o seu gestor de negócios e posteriormente mandatário, B., acção de apresentação de coisas ou documentos, com processo especial, pedindo a condenação do Réu a apresentar ao Autor todos os documentos relativos a contas de depósito bancário e demais aplicações financeiras em praças financeiras situadas fora de Portugal e a prestar ao Autor todas as informações que lhe permitam dispor e administrar o património corporizado em tais contas de depósito bancário e demais aplicações financeiras.
2.2. A acção foi julgada improcedente, por sentença de 30 de Outubro de
2001 (fls. 116 e seguintes) que o Tribunal da Relação de Coimbra confirmou
(acórdão de 3 de Dezembro de 2002, a fls. 241 e seguintes).
2.3. A. interpôs recurso de revista. Nas extensas alegações que então apresentou (fls. 252 a 282), imputou diversas nulidades às decisões proferidas no processo, não tendo suscitado qualquer questão de inconstitucionalidade.
2.4. Por acórdão de 7 de Outubro de 2003 (fls. 332 e seguintes), o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que o acórdão então recorrido não enfermava das nulidades invocadas e negou provimento ao recurso.
Lê-se no acórdão, para o que aqui releva:
“[...]
1. - A improcedência da acção resultou não do cumprimento da obrigação [...] mas por carência de prova – não resultou «provada a existência na posse do requerido de qualquer documento atinente a contas alegadamente na Suíça e Inglaterra, ou que o mesmo possua informações acerca das mesmas» (fls. 122), o que a Relação confirmou inteiramente (fls. 242). O requerente, embora sem questionar a natureza de facto constitutivo, defende que é suficiente para a procedência da acção a alegação e prova de o requerido ter sido seu gestor de negócios e, mais tarde, seu mandatário, e, em qualquer dessas qualidade, seu aconselhador. Pugna ainda pela alteração da decisão de facto e, supletivamente pela sua ampliação, tudo enroupado na arguição de nulidades do acórdão.
2. - Acusa o recorrente de nulidade o acórdão por incorrer em omissão de pronúncia sobre a questão relativa à fixação da matéria de facto que, segundo ele, deveria ter uma amplitude maior. Não basta alegar que a decisão incorre em nulidade e que eventualmente a mesma até possa existir – uma nulidade da decisão só poderá proceder se for relevante, isto é, se tiver virtualidade de levar a repensar e conduzir a decisão diferente. Se indiferente, mesmo que reconhecida a sua arguição terá de improceder. Pretende o requerente que o requerido se desempenhe da obrigação de informação e de apresentação de documentos (CC- 573 e 574) para o que recorreu à jurisdição voluntária (CPC- 1476) alegando que este se recusa a prestá-la. Face ao decaimento da prova, reflectem as suas alegações uma falta de distinção entre um pressuposto processual e o direito material. O interesse directo em demandar traduz a legitimidade processual (CPC- 26, 1 e
3); daí não se segue que ao autor assista razão na demanda que instaurou e fundamento para procedência da sua pretensão. A causa de pedir não é, entre nós, uma categoria abstracta mas antes o facto jurídico de que emerge o direito de quem demanda, há-de ser, portanto, o facto que legalmente fundamenta a sua pretensão. Adoptou-se a doutrina da substanciação.
É distinta quer dos factos materiais alegados quer das razões jurídicas invocadas; deve definir-se, como ensinam a doutrina e a jurisprudência, em função da qualificação jurídica desses factos que constituem apenas factos instrumentais necessários à individualização do «facto jurídico». Por outro lado, e como já ensinava J. A. dos Reis, não se confunde com os meios de que a parte se serve para a sustentar ou demonstrar – ali, são argumentos, aqui, são provas procurando, uns e outras, que se fixe a «realidade» ou
«existência» do facto jurídico que serve de fundamento à acção. Da análise quer do art. 573 quer do art. 574 CC decorre que ao demandante não basta alegar e provar que é titular de um direito; há-de convencer o tribunal, além do mais, que o requerido está em condições de prestar as informações ou que
é possuidor ou detentor da coisa ou do documento. Por seu turno, incumbe ao demandado, se para tal tiver fundamento, que tem motivos para se opor à diligência. O que as instâncias concluíram foi, por diferentes palavras, que se não está face a uma situação de «recusa» em prestar informações ou em apresentar documentos mas perante uma situação de ausência de prova de o requerido ser possuidor ou detentor deles, o que não permite concluir, como o requerente pretendia e pretende, pela existência de uma recusa e, se de 'recusa' se não pode falar, não há que equacionar uma oposição à diligência. Decaiu o requerente no ónus da prova, o que o prejudica (CC- 346 e CPC- 516).
Seria indiferente à solução de direito uma eventual nulidade por omissão de pronúncia – o naufrágio da acção sempre seria de ditar.
[...].”
2.5. Notificado deste acórdão, A. deduziu um pedido de aclaração, que foi indeferido (acórdão de fls. 348).
Posteriormente, arguiu a nulidade do acórdão através do requerimento de fls. 351 e seguintes, em que concluiu pedindo ao Supremo Tribunal de Justiça que:
“[declare] materialmente inconstitucional a interpretação do art. 713º, n.º 5 do CPC, por violação do preceituado nos arts. 20° e 205° da Constituição, no sentido de que o poder processual do Tribunal da Relação, conferido pelo mencionado preceito, não abrange os casos em que a decisão de Primeira Instância
é, em recurso de apelação, arguida de nulidade, sob a invocação de fundamentos que, a ser considerados procedentes, podem determinar que a matéria de facto seja modificada, ou seja anulada a decisão de Primeira Instância;
[...]
[declare] materialmente inconstitucional a interpretação implicitamente assumida pelo douto acórdão do Supremo do art. 713°, n.º 2 do CPC, com referência aos arts. 659° a 665° do mesmo Código, por violação do preceituado nos arts. 20° e
205° da Constituição, segundo a qual o Tribunal da Relação em recurso de apelação que verse sobre matéria de facto, não tem que proceder previamente à apreciação fundamentada de toda a prova, incluindo a prova constante da gravação da audiência, previamente à decisão de direito sobre o mérito da causa.
[...].”
O pedido foi indeferido por acórdão de 27 de Janeiro de 2004 (fls.
369).
2.6. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, invocando como fundamento a alínea b) do n.º 1 do artigo 7º da Lei do Tribunal Constitucional
(requerimento de fls. 372 e seguintes), para apreciação da inconstitucionalidade das seguintes normas:
– do artigo 713º, n.º 5, do Código de Processo Civil, “com a interpretação que lhe foi aplicada na decisão recorrida, segundo a qual o Supremo Tribunal se pode substituir ao Tribunal da Relação na invocação daquele preceito para considerar isento de nulidades, arguidas perante este Venerando Supremo Tribunal, o acórdão da Relação – acórdão objecto da revista – proferido sem invocação de tal fundamento. Interpretação segundo a qual – por outro lado – a norma do indicado n.º 5 do artigo 713° do Cód. Proc. Civil abrange, também, aquelas hipóteses em que se arguiram no recurso perante a Relação nulidades da decisão de Primeira Instância, e fora pedida na apelação a modificação da decisão de facto”, por entender que tal interpretação viola os artigos 20º e
205º da Constituição da República Portuguesa;
– do artigo 713º, n.º 2, do Código de Processo Civil, “com a interpretação que dela foi aplicada na decisão recorrida, segundo a qual o dever de fundamentação, a cargo do Tribunal da Relação, da decisão que considerou não ser de alterar a decisão de matéria de facto de Primeira Instância, pedida no contexto de um recurso de apelação em cujas conclusões o Recorrente invocava que determinados factos deveriam ser dados por provados com base nos documentos, no depoimento de testemunhas e na análise crítica desses meios de prova, se considera satisfeito com a mera indicação de que as testemunhas inquiridas nada adiantam no sentido apontado pelo apelante, e de que não ocorre nenhuma das nulidades apontadas”, por entender que tal interpretação viola os artigos 20º e
205º da Constituição da República Portuguesa.
2.7. O Relator, no Supremo Tribunal de Justiça, decidiu não admitir o recurso para o Tribunal Constitucional, por entender que “a invocação de inconstitucionalidade na arguição de nulidade [...] foi tardia, precludira o respectivo direito” (despacho de fls. 378).
2.8. A. veio, ao abrigo do disposto no artigo 76º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional, deduzir reclamação do despacho de não admissão do recurso, através de requerimento (fls. 2 e seguintes do processo de reclamação), em que concluiu:
“[...]
38 – [...] não era exigível ao ora Reclamante, no caso concreto, um qualquer juízo de prognose relativo a essa aplicação, em termos de, também na parte da apontada infracção pelo acórdão recorrido, da disposição do art. 713°, n.º 2 do CPC, o Reclamante se ter podido antecipar à prolação da decisão da revista, suscitando, em momento anterior, a questão da inconstitucionalidade.
39 - Apenas perante a decisão proferida se viu o ora Reclamante na possibilidade de arguir a inconstitucionalidade em causa. Tendo-o feito no requerimento de arguição de nulidade do acórdão que decidiu o recurso de revista, primeiro momento processual em que o podia e se lhe impunha fazer. Efectivamente, o ora Reclamante não dispusera de oportunidade processual para suscitar a questão antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal «a quo», por não poder antever a possibilidade dessa aplicação [...]
[...].”
3. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer (fls.
16 v.º), nos seguintes termos:
“A presente reclamação carece ostensivamente de qualquer fundamento sério, sendo, aliás, verdadeiramente ininteligível qual a especifica interpretação ou dimensão normativa que se pretende questionar. Na verdade – e assente, perante a reiterada jurisprudência constitucional que o mecanismo processual simplificado de dirimição dos recursos consagrado no art.
713º, n.º 5, do CPP, não viola qualquer preceito ou princípio da Lei Fundamental
– é evidente que não pode sindicar-se no âmbito do controlo normativo da constitucionalidade, se os tribunais judiciais fizeram, em cada caso concreto, uso adequado de tal regime jurídico, sem que se identifique minimamente qualquer critério normativo que presidisse à respectiva aplicação.”
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. O ora reclamante pretendia interpor recurso de constitucionalidade da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Assim, constituem pressupostos processuais do recurso interposto:
– a invocação pelo recorrente, durante o processo, da questão de inconstitucionalidade que pretende submeter ao julgamento do Tribunal Constitucional;
– a aplicação, na decisão recorrida, das normas (ou das normas numa determinada interpretação ou dimensão normativa) questionadas pelo recorrente, não obstante a acusação de inconstitucionalidade que lhes é feita.
5. No caso dos autos, o ora reclamante não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade durante o processo; apenas invocou a inconstitucionalidade das normas que pretende ver apreciadas no requerimento em que arguiu a nulidade do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, isto é, em momento processual em que já estava esgotado o poder jurisdicional do Supremo e em que portanto este não podia pronunciar-se sobre tal questão.
O sentido funcional que o Tribunal Constitucional tem atribuído à exigência legal de que a inconstitucionalidade seja suscitada durante o processo tem em vista dar oportunidade ao tribunal recorrido de se pronunciar sobre a questão, de modo que o Tribunal Constitucional venha a decidir em recurso. Deve, portanto, em princípio, a questão de inconstitucionalidade ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido.
Só em casos muito particulares, em que o recorrente não tenha tido oportunidade para suscitar a questão de inconstitucionalidade é que o Tribunal Constitucional tem considerado admissível o recurso de constitucionalidade sem que sobre tal questão tenha havido uma anterior decisão do tribunal a quo (cfr., por exemplo, Acórdão n.º 232/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º vol., p. 1119).
Ora, independentemente da questão de saber se, nas circunstâncias deste processo, poderia considerar-se o recorrente dispensado do ónus de suscitar a inconstitucionalidade antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, certo é que o recorrente não chega a enunciar uma questão de inconstitucionalidade normativa de que este Tribunal deva conhecer.
Na verdade, ao eleger como objecto do recurso de constitucionalidade a norma que prevê o mecanismo simplificado de decisão dos recursos, mas sem especificar o critério normativo que presidiu à respectiva aplicação, o recorrente impugna afinal a própria decisão do Supremo Tribunal de Justiça, concretamente a opção do Supremo pela utilização, no caso concreto, do mecanismo simplificado de decisão dos recursos, admitido em tal norma.
É o que resulta aliás claramente do teor do requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, na passagem que a seguir se transcreve (cfr. fls. 374; itálico aditado agora):
“[...] Tendo infringido a decisão do Supremo Tribunal de Justiça que a apreciou o preceituado no art. 20º da Constituição, violando o direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, e o art. 205º da Constituição, violando o dever de fundamentação das decisões judiciais”.
Com bem refere o Senhor Procurador-Geral Adjunto, não cabe obviamente nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional, no âmbito de um recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, sindicar o modo como os tribunais judiciais fazem uso, em cada caso concreto, do regime jurídico estabelecido no artigo 713º do Código de Processo Civil.
Conclui-se assim que, não sendo especificada uma dimensão normativa susceptível de se reportar às normas referidas no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional – normas constantes do artigo 713º do Código de Processo Civil –, a questão que o recorrente coloca se reconduz afinal a uma discordância relativamente às decisões proferidas no processo, decisões essas que lhe foram desfavoráveis.
Não podem portanto dar-se como verificados no caso dos autos os pressupostos processuais do tipo de recurso interposto. III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 5 de Maio de 2004 Maria Helena Brito Carlos Pamlona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos