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Processo n.º 1203/07
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é
recorrente A., Lda. e recorrido Icor – Instituto para a Construção Rodoviária, a
Relatora proferiu a seguinte decisão sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que figura como recorrente A., Lda e como recorrido
Icor – Instituto para a Construção Rodoviária, vindos do Supremo Tribunal de
Justiça, a primeira veio interpor recurso de acórdão proferido por aquele
tribunal em 02 de Outubro de 2007 (fls. 469 a 479), ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70º da LTC, para que seja apreciada a constitucionalidade “dos
artºs 70º-1 e 71º do Código das Expropriações, aprovado pela Lei nº 168/99, de
18.09, na interpretação que lhes é dada de que a contagem de juros moratórios é
dependente da notificação (interpelação) do dito artº 71º” (fls. 502).
Cumpre apreciar e decidir.
II – DA FUNDAMENTAÇÃO
2. Por força do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, pode ser proferida decisão sumária
quando a questão a decidir se revestir de simplicidade. Ora, a questão da
inconstitucionalidade da norma extraída da conjugação do n.º 1 do artigo 70º e
do n.º 1 do artigo 71º do Código de Expropriações de 1999 [de ora em diante
identificado por CExp1999] já foi alvo de jurisprudência deste Tribunal, no
sentido da sua não inconstitucionalidade, ainda que a propósito de disposição
similar: o então artigo 100º do Código de Expropriações de 1976 [de ora em
diante identificado por CExp1976].
O referido n.º 1 do artigo 100º do CExp1976 determinava que:
“1. Fixado por trânsito em julgado o valor da indemnização a pagar pelo
expropriante, será este notificado para o depositar na Caixa Geral de Depósitos
no prazo de dez dias, excepto se já tiver sido decidido, ainda que sem trânsito
em julgado, o pagamento em prestações.”
A propósito desta norma pronunciou-se este Tribunal, no Acórdão n.º263/98, de 05
de Março de 1998 (publicado in «Diário da República», Série II, n.º 157, de 10
de Julho de 1998, pp. 9576 e segs), com relevância para os presentes autos, do
seguinte modo:
“Ao contrário do que supõem os recorrentes, os artigos 62º, nº 2, e 13º, nº 1,
da Constituição não impõem que, por eles no caso dos autos, ocorresse a
constituição em mora da entidade expropriante com a simples prolação da decisão
da primeira instância. O acórdão recorrido (tal como o Acórdão do Tribunal da
Relação do Porto de 21 de Abril de 1994) entendeu que, com o recurso interposto
daquela decisão pelo Município de Felgueiras e pelos expropriados, a mesma não
tinha ainda transitado em julgado, acrescentando o mesmo acórdão que a
indemnização apenas se tornou líquida com a prolação do Acórdão do Tribunal da
Relação do Porto de 25 de Junho de 1991, pelo que antes disso não podia a
entidade expropriante ser constituída em mora.
Fez apelo o acórdão aqui sub judicio à regra constante da primeira parte do nº 3
do artigo 805º do Código Civil, segundo a qual 'se o crédito for ilíquido, não
há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for
imputável ao devedor'. Ou seja: aplicou aquele aresto o princípio 'in illiquidis
non fit mora', temperado embora pela possibilidade de o credor alegar e provar
que a falta de liquidez se deve a comportamento (acção ou omissão) imputável ao
devedor - o que, manifestamente, nestes autos, o recorrente não curou de fazer.
Aquele preceito da lei civil sempre foi unanimemente entendido na doutrina e
jurisprudência como significando que só existe mora depois de fixado, em
definitivo, pelo tribunal o quantitativo da indemnização: enquanto durar a
acção, não há liquidação da dívida, já que - embora o pedido formulado fosse
eventualmente líquido - não o é a indemnização.
Assim sendo - e em face da regra constante da primeira parte do nº 3 do artigo
805º do Código Civil -, a interpretação dada pelo acórdão recorrido à norma do
nº 1 do artigo 100º do Código das Expropriações de 1976 não traduz a fixação de
qualquer regime excepcional em desfavor do expropriado: tal como qualquer outro
credor, ele só vê o seu devedor constituir--se em mora quando se tornar certo e
líquido, por decisão judicial definitiva, o montante indemnizatório em litígio.
Eis, pois, as razões pelas quais a norma do artigo 100º, nº 1, do Código das
Expropriações, aprovado pelo Decreto‑Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro, não viola
os artigos 62º, nº 2, e 13º, nº 1, da Constituição, nem qualquer outra norma ou
princípio constitucional.”.
A actual redacção do n.º 1 do artigo 71º do CExp1999 determina que:
“1. Transitada em julgado a decisão que fixar o valor da indemnização, o juiz do
tribunal de 1ª instância ordena a notificação da entidade expropriante para, no
prazo de 10 dias, depositar os montantes em dívida e juntar ao processo nota
discriminada, justificativa dos cálculos da liquidação de tais montantes.”
Daqui decorre que a actual redacção do preceito legal que corporiza a norma
objecto do presente recurso se afigura ainda mais garantística dos direitos dos
expropriados, visto que, por um lado, esclarece que cabe ao juiz de 1ª instância
a notificação da entidade expropriante e, por outro lado, emprega uma forma
verbal do verbo “ordenar” que não deixa sombra de dúvidas sobre a imposição de
um dever de notificação, o mais célere possível, do expropriante.
Não tendo havido qualquer inflexão da jurisprudência consagrada no citado
acórdão, deve a mesma ser aplicada ao caso presente. Com efeito, por argumento
de maioria de razão, se este Tribunal já considerou que a redacção do anterior
n.º 1 do artigo 100º do CExp1976 não era inconstitucional por confronto com o
princípio da igualdade (artigo 13º da CRP), muito menos será inconstitucional a
presente redacção literal do n.º 1 do artigo 71º do CExp1999.
A redacção literal desta norma visa precisamente reforçar o dever de notificação
do expropriante pelo juiz de primeira instância, evitando que aquele possa ser
alvo de juros moratórios (nos termos do artigo 70º CExp 1999) sem que tenha sido
previamente interpelado para proceder ao pagamento do montante indemnizatório.
Deste modo, é absolutamente evidente que não se vislumbra que a norma extraída
da conjugação entre o n.º 1 do artigo 70º e o n.º 1 do artigo 71º do CExp1999
incorra em qualquer violação do princípio da igualdade (artigo 13º da CRP).
Em suma, reitera-se a fundamentação e o sentido da jurisprudência anterior deste
Tribunal – v.g., do Acórdão n.º 263/98, de 05 de Março de 1998 –, que é
integralmente aplicável aos presentes autos, por argumento de maioria de razão.
II. DECISÃO
Nestes termos, e ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se não julgar inconstitucional a norma
resultante da conjugação do n.º 1 do artigo 70º e do n.º 1 do artigo 71º do
Código de Expropriações de 1999, quer pelos fundamentos constantes do Acórdão
n.º 263/98, de 05 de Março de 1998, quer pelos fundamentos supra expostos,
retirados, por maioria de razão, daqueloutra jurisprudência.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7
UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de
Outubro.»
2. Inconformado com esta decisão, vem o recorrente reclamar, para a conferência,
com os fundamentos que de ora em diante se sintetizam:
«(…)
2. Entendeu a douta decisão ora reclamada que o caso era idêntico àquele
sobre o qual já se pronunciou o Tribunal Constitucional «a propósito de
disposição similar: o então artigo 100° do Código de Expropriações de 1976» — o
Ac. TC nº 263/98, de 05.03.1998 (DR. II Série, nº 157, de 10.07.98, págs. 9576
segs.) —,
3. entendeu, também e portanto, que as situações de facto e jurídicas
naquele aresto como no do Supremo Tribunal de Justiça sob o presente recurso
eram semelhantes,
4. e decidiu, então, aqui (tal como ali o fora) — agora já sob a égide
do art° 71º do actual C Exp. de 1999 —, «no sentido da sua não
inconstitucionalidade», ou seja, que não ocorreria aquele vício, pela
interpretação dada a este artigo pelo Tribunal recorrido.
5. Com o maior respeito devemos começar por concluir que tal decisão
sumária laborou em equívoco, que convirá desfazer.
6. E cremos que não será difícil de verificar que as situações não são
em nada idênticas, quer no aspecto factual quer no aspecto jurídico.
ASSIM:
7. Baseia-se a decisão reclamada, no essencial, em que aconteceria, aqui
— tal como no acórdão que traz à colação — que não podia falar-se em juros sobre
a quantia de indemnização fixada por só ser lícito falar-se nestes quando o
respectivo crédito se tornar certo e líquido,
8. pelo que, no texto daquele aresto ali transcrito, «a interpretação
dada pelo acórdão recorrido à norma (..) [na altura o art° 100º CExp. de 76;
hoje o art° 71º CExp. de 99] não traduz afixação de qualquer regime excepcional
em desfavor do expropriado: tal como qualquer outro credor, ele só vê o seu
devedor constituir-se em mora quando se tornar certo e líquido, por decisão
judicial definitiva, o montante indemnizatório em litígio» (o destaque é nosso),
9. e daqui conclui que «Não tendo havido qualquer inflexão da
jurisprudência consagrada no citado acórdão, através da nova redacção do art°
71°-1 CExp. de 99, «deve a mesma ser aplicada ao caso presente».
ORA:
10. O caso presente é precisamente o oposto daquele a que se reportava o
“acórdão/fundamento”:
10.1. No CASO DESTE decidiu-se (usando transcrição e destaque):
* que não ocorre «a constituição em mora da entidade expropriante com a
simples prolação da decisão da primeira instância»;
* e antes «que a indemnização apenas se tornou líquida com a prolação
do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (..),pelo que antes disso não podia a
entidade expropriante ser constituída em mora», dentro do princípio do art°
805°-3 CCiv. de “in illiquidis nonfit mora”, isto é, depois disso já ficou
constituída em mora (os destaques são nossos)
10.2. No PRESENTE CASO podemos afirmar claramente que, e usando em parte
expressões daquele mesmo acórdão, há muito que se tornara «certo e líquido, por
decisão judicial definitiva, o montante indemnizatório em litígio».
SEGUE-SE QUE:
11. O paralelismo suscitado pela douta decisão sumária não existe,
12. e, ao invés, o apelo àquele outro acórdão permite concluir exactamente
o contrário.
13.1. Foi proferida decisão definitiva, TORNANDO O CRÉDITO CERTO E LIQUIDO,
no Tribunal da Relação de Coimbra, em 22.06.2004,
13.2. esta fixou o valor da indemnização em € 1.210.250,00, «actualizável de
acordo com a evolução do índice dos preços do consumidor com exclusão da
habitação, publicado no INE relativamente ao local da situação dos bens desde a
data da declaração de utilidade pública até à data do trânsito em julgado da
decisão».
13.3. Houve o Exp.te por bem requerer a reforma desta decisão,
13.4. pelo que por acórdão tirado em conferência no mesmo Tribunal da Relação
de Coimbra, de 26.10.2004, foi aquele pedido de reforma indeferido.
13.5. Então, o Exp.te houve por bem interpor ainda um recurso proibido — o
que nada tem a ver com recurso improcedente — dito de agravo de 2 Instância,
para o Supremo Tribunal de Justiça,
13.6. o qual, precisamente por ser proibido, não foi admitido por despacho do
Senhor Desembargador-Relator de 07.01.2005.
(…)
OU SEJA:
13.17. Desde que transitou em julgado a decisão definitiva, CERTA E LÍQUIDA, de
fixação da indemnização o Exp.do logrou, ele mesmo, fazer demorar a baixa do
processo à 1ª instância, para que pudesse ser cumprida notificação a que se
refere o art° 71º CExp. nada menos do que 299 dias.
13.18. Acresce que, para além dos já referidos 299 dias, sobre o trânsito em
julgado da decisão definitiva, que também foram os de tramitação extemporânea do
processo, este reentrou na Secretaria da 1ª Instância em 22.03.2006.
13.19. Foi só então proferido despacho nos termos do art° 71° CExp. em
24.03.2006,
13.20. o qual foi notificado ao Exp.do por registo de 24.03.2006.
13.21. Ficou a saber-se, só então, que o Exp.te procedera, afinal e porém, ao
depósito em 17.03.2006, do que deu conhecimento no processo e à Exp.da em
27.03.2006, dez dias depois
EM SUMA:
13.22. Desde que a dívida se tornou certa e líquida tinham passado 330 dias até
à data do respectivo cumprimento.
O DIREITO:
13.23. Salta os olhos com enorme evidência, quer pela realidade jurídica do
Direitos das Obrigações, quer pela “prova dos nove” que ocorre no caso concreto,
que a contagem de juros moratórios não pode ficar dependente de circunstâncias
alheias ao devedor, desde que ocorreu o vencimento da obrigação,
13.24. e isso independentemente do tipo dessas circunstâncias — que, por acaso,
na situação concreta, tiveram base no procedimento escandaloso (o qualificativo
é mera constatação) do devedor, o Exp.do, mas que podem provir, como é muito
frequente, de atrasos dentro do(s) próprio(s) Tribunal(is), bastando a demora de
“baixa”, de tramitação, etc..
(…)
13.33. Deste modo, a notificação a que se refere o citado art° 71° CExp. foi
estabelecida, apenas, para que a Exp.da pudesse beneficiar, no próprio processo
e sem necessidade de intentar acção autónoma, de um mecanismo processual
expedito, incluindo o valor dos juros moratórios.
13.34. Se assim não fosse, ou seja, se não for essa a interpretação daquela
norma, a Exp.da seria tratada como uma credora diferente de qualquer outra,
13.35. com perda do seu direito ao pagamento pontual por parte do devedor, o
Exp.te,
13.36. ficando, designadamente, como se viu, na dependência de circunstâncias —
no caso, em especial, do procedimento concreto do devedor, o Exp.te — sobre as
quais não tem qualquer comando ou controlo.
13.37. Quer dizer, uma interpretação do art° 71° que, por ligação com o art°
70°, ambos do CExp., estabelecesse que a mora do devedor, o Exp.te, da dívida de
indemnização já certa e líquida por decisão com trânsito em julgado, ficava
dependente da notificação (pretendida como “interpelação” — que não é) a que a
norma alude, seria manifestamente inconstitucional,
13.38. pois que seria contrária ao principio da igualdade, garantida esta pelo
art° 13° CRP., disposição que seria, como foi, violada.
FINALMENTE:
14. Observa a mesma decisão ora reclamada — aí já com autonomia
argumentativa — que «A redacção literal desta norma [a do art° 71°-1 CExp. de
99] visa precisamente reforçar o dever de notificação do expropriante pelo juiz
de primeira instância, evitando que aquele [o Exp.te] possa ser alvo de juros
moratórios (nos termos do artigo 70º CExp. 1999) sem que tenha sido previamente
interpelado para proceder ao pagamento do montante indemnizatório».
15. Mas, com a consideração devida, esta afirmação é, face precisamente ao
problema que vem posto à consideração e decisão do Venerando Tribunal
Constitucional, uma petição de princípio,
16. pois que precisamente o que se pretende saber é se é lícita uma
interpretação daquela norma que confira ao Exp.te, devedor de indemnização
tornada certa e líquida com o trânsito em julgado da decisão que a fixou, um
verdadeiro privilégio face a qualquer outro credor,
17. com o gravame de poder “comandar” a data dessa pretendida
“interpelação” (que, como se sabe dos princípios gerais e já se disse, não é
precisa),
18. e, por tudo isso mesmo, uma interpretação criadora de desigualdade
chocante do credor ... que só teria o “azar” de ser Exp.do!,
19. isto é — e usando de novo por paralelismo a transcrição “mutatis
mutandis” do acórdão deste TC invocado pela decisão reclamada (supra 8.) —, o
que já «traduz [traduziria] a fixação de» um «regime excepcional em desfavor do
expropriado», pois que, ao contrário de «qualquer outro credor, ele» não «vê o
seu devedor constituir-se em mora quando se tornar certo e líquido, por decisão
judicial definitiva, o montante indemnizatório em litígio».
20. Desta feita, a esta questão — a de saber se tal interpretação
normativa ofende, ou não, o princípio da igualdade — a douta decisão não
responde, senão através daquela asserção (supra 14.), atrás transcrita, seguida
da conclusão (mera conclusão) negativa.»
3. Notificado da reclamação, o recorrido deixou expirar o prazo para resposta
sem que viesse aos autos pronunciar-se.
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. O principal fundamento da reclamação ora deduzida reside na circunstância de,
segundo a reclamante, não existir paralelismo de situações entre o Acórdão n.º
263/98, de 05 de Março, e o caso em apreço nos presentes autos. Segundo esta,
naquele Acórdão ter-se-ia decidido questão relativa a decisão que fixava o
“quantum” indemnizatório de expropriação, de modo não definitivo, por ainda
estar sujeito a recurso para a competente Relação, enquanto que, no caso dos
autos, já teria sido proferida – segundo o seu entendimento, repita-se – decisão
transitada em julgada por parte do Tribunal da Relação de Coimbra.
Ainda de acordo com a reclamante, a conduta processual da ora reclamada, nos
autos recorridos, teria provocado um protelamento ilícito da lide, pelo que,
tendo aquela recorrido a meios processuais inidóneos, se deveria ter por
verificado o trânsito em julgado do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra,
proferido em 22 de Junho de 2004, nos termos do qual a reclamada foi condenada
ao pagamento de quantia certa e líquida.
Sucede, porém, que este Tribunal não pode deixar de relembrar aquilo que já
havia decidido em relação aos autos de recurso (então interposto pela ora
reclamada), que correram termos precisamente no âmbito destes mesmos autos
recorridos e que teve como partes as ora reclamante e reclamada. Dessa feita,
apreciando recurso interposto pela ora reclamada (então reclamante), este
Tribunal teve a oportunidade de tomar clara posição quanto ao momento processual
que é apto a gerar a definitividade da decisão recorrida. Através do Acórdão n.º
80/2006, de 31 de Janeiro de 2006 (in
www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), foi dito:
“1.A primeira questão que importa decidir nos presentes autos de reclamação é a
da tempestividade da apresentação do recurso de constitucionalidade. Na verdade,
a reclamante pretendeu interpor recurso de constitucionalidade do acórdão do
Tribunal da Relação de Coimbra de 22 de Junho de 2004, ao abrigo da alínea g) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), através de um requerimento
apresentado em 17 de Junho de 2005. Tal pretensão foi indeferida no Tribunal da
Relação de Coimbra em 23 de Junho de 2005, fundando-se o despacho de não
admissão do recurso de constitucionalidade na intempestividade da sua
interposição.
A norma que regula o prazo de interposição do recurso de constitucionalidade é o
artigo 75.º da Lei do Tribunal Constitucional. Dispõe essa norma:
“Artigo 75.º
(Prazo)
1. O prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é de 10
dias e interrompe os prazos para a interposição de outros que porventura caibam
da decisão, os quais só podem ser interpostos depois de cessada a interrupção.
2. Interposto recurso ordinário, mesmo que para uniformização de
jurisprudência, que não seja admitido com fundamento em irrecorribilidade da
decisão, o prazo para recorrer para o Tribunal Constitucional conta-se do
momento em que se torna definitiva a decisão que não admite recurso.”
São relevantes para a apreciação da questão da tempestividade do recurso os
factos que seguidamente se elencam e que resultam dos autos:
§ o acórdão recorrido foi proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra
em 22 de Junho de 2004 (fls. 517);
§ a reclamante foi notificada desse acórdão em 25 de Junho de 2004 (fls.
518);
§ em 5 de Julho de 2004 a reclamante requereu a reforma do referido
acórdão (fls. 519);
§ em 26 de Outubro esse pedido de reforma foi indeferido pelo Tribunal
da Relação de Coimbra (fls. 542);
§ em 10 de Novembro de 2004 a reclamante interpôs recurso da decisão do
Tribunal da Relação de Coimbra, que deveria ser aceite como agravo em 2.ª
instância (fls. 544);
§ em 7 de Janeiro de 2005 foi proferido despacho de não admissão desse
recurso (fls. 563), de que a reclamante foi notificada em 13 de Janeiro (fls.
564);
§ em 27 de Janeiro de 2005 a reclamante requereu a reforma, quanto a
custas, dos acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 22 de Junho de 2004 e
de 26 de Outubro de 2004, e, ainda, do despacho de não admissão do recurso de 7
de Janeiro de 2005 (fls. 566);
§ tal pedido foi deferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 5 de
Abril de 2005 (fls. 575);
§ ainda em 27 de Janeiro de 2005, a reclamante apresentara reclamação
para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça do despacho de não admissão do
recurso de agravo em 2.ª instância proferido em 7 de Janeiro de 2005 (fls. 603);
§ essa reclamação foi indeferida no Supremo Tribunal de Justiça, por
despacho de 25 de Maio de 2005 (fls. 663);
§ a reclamante foi notificada dessa decisão por carta registada expedida
em 27 de Maio de 2005 (fls. 664);
§ a reclamante requereu a reforma dessa decisão quanto a custas, em 6 de
Junho de 2005 (fls. 665);
§ esse pedido de reforma foi deferido no Supremo Tribunal de Justiça,
por despacho de 7 de Junho de 2005 (fls. 668);
§ a reclamante foi notificada desse despacho por cartas enviadas em 8 de
Junho de 2005 (fls. 669)
§ a reclamante interpôs em 17 de Junho de 2005 recurso para o Tribunal
Constitucional (fls. 585);
§ por despacho de 23 de Junho de 2005, não foi esse recurso admitido no
Tribunal da Relação de Coimbra (fls. 676).
Ora, o presente caso insere-se na previsão do n.º 2 do artigo 75.º da Lei do
Tribunal Constitucional, pois esta norma aplica-se precisamente aos casos em
que, interposto recurso ordinário da decisão, este vem a não ser admitido por
aquela decisão ser já irrecorrível, sendo que, como correctamente nota o
representante do Ministério Público, essa irrecorribilidade apenas se torna
definitiva com o indeferimento da reclamação que tenha sido endereçada ao
Presidente do tribunal superior.
Assim, tendo o recurso, nos presentes autos, sido interposto no prazo previsto,
de 10 dias a contar da prolação da decisão de indeferimento da reclamação para
tribunal superior, complementada pelo deferimento do pedido de reforma quanto a
custas, é de considerar tempestivo.” (com sublinhado e realce nosso)
Acresce ainda que o tribunal de primeira instância – Tribunal Judicial da
Comarca da Guarda –, por despacho de 24 de Abril de 2006, entendeu expressamente
que:
“É certo que nos autos a decisão do Tribunal da Relação transitou no
dia 5/7/2005 (assim o decidiu o mesmo Tribunal, o STJ, bem como o Tribunal
Constitucional).
Acontece, porém, que até ao processo baixar à 1ª instância não se
pode dizer que exista atraso imputável (no sentido da responsabilidade) à
entidade expropriante no andamento do processo. O que resulta é que a mesma
pretendeu fazer valer judicialmente a sua pretensão sem sede de recurso, não o
tendo conseguido.” (fls. 6)
Confirmando aquele entendimento, o Tribunal da Relação de Coimbra pronunciou-se
no mesmo sentido, entendendo expressamente que no artigo 70º do Código de
Expropriações de 1999:
“(…) não podem caber os meios legais ainda que improcedentes que
tiverem protelado a descida do processo à primeira instância; Tanto mais que não
foram objecto de um juízo de censura de litigância de má fé… e a mera
improcedência das razões apresentadas não basta por si para emitir um juízo de
censurabilidade ainda que a título de negligência.
É bem certo que a agravante [a ora reclamada] defende que com o
trânsito em julgado da sentença/acórdão que fixa a indemnização, ocorre o
vencimento da obrigação, não sendo necessária qualquer outra interpelação já que
esta é a que resulta da notificação da decisão judicial. Mas com o devido
respeito não é assim. Na verdade a liquidação da indemnização só surge a partir
do momento em que estão arrumados todos os incidentes que podem surgir face à
sentença ou acórdão que arbitre a indemnização – e como é óbvio o legislador não
pretendeu eliminar – tendo o seu momento dentro do prazo de 10 dias a contar da
notificação da entidade expropriante para juntar ao processo nota discriminada
justificativa da liquidação dos montantes em dívida. E o facto de esta
notificação abrir porta à possibilidade de impugnação do montante em dívida nos
termos do nº 3 do artigo 71º confirma uma vez mais que a problemática da
indemnização não se queda unicamente na respectiva fixação da sentença ou
acórdão. Ao contrário do que a agravante sustenta, o Legislador nos artigos 71º
e ss não se limitou a criar uma expedita execução da indemnização, já que
implicitamente fixou o momento que marca o início da mora eventual das partes,
nomeadamente do expropriante.
(…) para além de lembrar-se uma vez mais que o princípio da
igualdade só impõe tratamento igual para aquilo que é igual, deveremos referir
que cada processo tem a sua especificidade própria, num podendo surgir problemas
que outros não suscitam e que têm de ser resolvidos, sob pena de não o fazendo,
se cair numa lesão aqui efectiva e grave dos princípios constitucionais
nomeadamente do artigo 20º da CRP. Sustentar o contrário seria acalentar uma
utopia que não seria concretizável nem ao nível do ordenamento jurídico ideal.”
(fls. 322 a 324)
Daqui decorre que a tese da ora reclamante, segundo a qual a decisão do Tribunal
de Relação de Coimbra, de 22 de Junho de 2004, nos termos da qual foi fixado o
“quantum” indemnizatório da expropriação já teria transitado em julgado não foi
acolhida pelas instâncias recorridas. Questão essa que não pode agora ser
reaberta por este Tribunal, visto não dispor de poderes para tal.
Aliás, ainda que na sua reclamação – à semelhança do que fez nas instâncias
recorridas – a ora reclamante venha reclamar a inadmissibilidade legal dos actos
processuais praticados pela reclamada, acusando-a de litigância de má fé –,
certo é que em momento algum as instâncias recorridas entenderam condenar aquela
como litigante de má fé (ver, a título de exemplo, fls. 233: “Não há elementos
seguros de litigância de má fé”).
Em suma, conclui-se que, apesar de a reclamada alegar o contrário, o caso em
apreço nos presentes autos se reveste de manifesto paralelismo com aquele
apreciado no âmbito dos autos que deram lugar ao Acórdão n.º 263/98, de 05 de
Março.
Como tal, conforme aliás bem expresso pela decisão reclamada, por identidade de
razão o raciocínio judicativo levado a cabo pelo Acórdão n.º 263/98, de 05 de
Março, a propósito do (então) n.º 1 do artigo 100º do CExp/1976, é absolutamente
transponível para o caso em apreço nos presentes autos, em que se pretendia
apreciar a constitucionalidade do actual n.º 1 do artigo 71º do CExp/1999. Tal
paralelismo já fora igualmente notado pela própria decisão recorrida, proferida
pelo tribunal “a quo”, pelo que nada há a reparar na decisão ora reclamada,
mantendo-se o entendimento de que a interpretação conferida pelo Supremo
Tribunal de Justiça àquela norma não padece de inconstitucionalidade, pelos
fundamentos já expostos no Acórdão n.º 263/98, que ora se reiteram.
5. A finalizar, quanto à alegada falta de fundamentação relativa à violação do
princípio da igualdade, resta expressar que a decisão reclamada é manifestamente
clara, ao remeter para a fundamentação do Acórdão n.º 263/98 que, a este
propósito, já afirmara:
“O problema do ressarcimento dos prejuízos suportados pelo expropriado em
consequência do atraso do pagamento da indemnização por parte da entidade
expropriante não apresenta quaisquer especificidades relativamente às
consequências jurídicas do não cumprimento pontual de qualquer outra obrigação
de conteúdo patrimonial. Não se vê, na realidade, qualquer razão válida para,
com fundamento nos princípios constitucionais da 'justa indemnização' por
expropriação e da igualdade, privilegiar o expropriado no que toca ao eventual
atraso na satisfação pontual da indemnização relativamente ao regime que, no
direito civil, vigora relativamente a qualquer outra pretensão creditória
insatisfeita.
Ao contrário do que supõem os recorrentes, os artigos 62º, nº 2, e 13º, nº 1, da
Constituição não impõem que, por eles no caso dos autos, ocorresse a
constituição em mora da entidade expropriante com a simples prolação da decisão
da primeira instância.
(…)
Assim sendo - e em face da regra constante da primeira parte do nº 3 do artigo
805º do Código Civil -, a interpretação dada pelo acórdão recorrido à norma do
nº 1 do artigo 100º do Código das Expropriações de 1976 não traduz a fixação de
qualquer regime excepcional em desfavor do expropriado: tal como qualquer outro
credor, ele só vê o seu devedor constituir--se em mora quando se tornar certo e
líquido, por decisão judicial definitiva, o montante indemnizatório em litígio.”
Deste modo, não subsiste fundamento para alteração da decisão reclamada, na
medida em que a interpretação conferida pelo Supremo Tribunal de Justiça ao n.º
1 do artigo 70º do CExp/1999 não é apta a colocar em causa o princípio da
igualdade (artigo 13º da CRP), antes visando evitar que os expropriados sejam
tratados de forma injustificadamente mais favoráveis do que os demais credores.
III – DECISÃO
Neste termos, pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no n.º 3
do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi
dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente
reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 13 de Março de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão