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Processo n.º 586/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1.Em 26 de Agosto de 2002 A. foi detido pela Polícia de Segurança Pública de Vila Real de Santo António por conduzir um veículo de tracção animal em marcha desgovernada e sem luzes de iluminação e apresentar uma taxa de álcool no sangue de 2,48 gr./litro. O julgamento veio a realizar-se no tribunal judicial daquela mesma cidade em 8 de Março de 2003, tendo o arguido sido condenado a uma pena de multa de € 360 e “na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 7 meses (artigo 69º, n.º 1, al. a), do CP)”. Inconformado com esta pena acessória, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, unicamente em matéria de direito, apresentando um quadro conclusivo da motivação do recurso em que suscitou assim a inconstitucionalidade da norma do artigo 69º, n.º 1, alínea a), do Código Penal:
“I. O ora recorrente foi condenado, pela prática de condução de veículo de tracção animal em estado de embriaguez, em pena de multa e em pena acessória de proibição de conduzir, por período de 7 meses, de veículos com motor. II. Tal pena acessória resulta da interpretação de que o artigo 69º, n.º 1, alínea a), do Código Penal também se aplica ao caso presente. III. Uma tal aplicação não cumpre as finalidades de prevenção especial subjacentes àquela sanção acessória, pois terá como efeito prevenir um delito diverso daquele efectivamente cometido, deixando ao seu autor aberta a possibilidade de continuar a conduzir o veículo em que incorreu em infracção. IV. A ser interpretada a norma nesse sentido entende o Recorrente que a mesma é inconstitucional, por violação dos princípios da adequação das normas penais e da não aplicação automática das penas, contidos nos artigos 29º, n.º 1, e 30º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.” Após resposta do Ministério Público, que se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade da norma, invocando a doutrina do Acórdão n.º 143/95 do Tribunal Constitucional (publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Junho de 1995), e junção das alegações do arguido, cujas conclusões retomavam, no que ora importa, as da motivação do recurso, foi negado provimento ao recurso por acórdão de 20 de Abril de 2004, do Tribunal da Relação de Évora, no qual, designadamente, se considerou “perfeitamente despicienda a invocação do art.
29º, n.º 1, da CRP”, que “o art. 30º, n.º 4, da CRP não tem aplicação ao caso vertente”, e que a aplicação da pena acessória prevista na disposição impugnada não violava “o princípio da adequação”. Ainda insatisfeito, apresentou o arguido recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, “por violação do Princípio da Não Aplicação Automática das Penas, contido no n.º 4 do artigo 30º da Constituição da República Portuguesa e do Princípio da Adequação das Normas Penais”, recurso, este, que foi admitido.
2.Determinada a produção de alegações, concluiu assim o recorrente:
“I – Em consequência da sua condenação, pelo Tribunal de Vila Real de Santo António, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 292º do Código Penal, pela prática do crime de condução, em estado de embriaguez, de veículo de tracção animal, foi o recorrente condenado em sanção acessória de proibição de condução de veículos motorizados, pelo período de sete meses, em aplicação por aquele tribunal de 1ª instância, do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 69º do mesmo C. P.. II – Da aplicação dessa sanção acessória veio o recorrente interpor recurso para o Tribunal da Relação de Évora que, por Acórdão que lhe foi notificado com data de 22 de Abril de 2004, veio negar provimento ao mesmo, confirmando a douta sentença recorrida. III – Entende o recorrente que o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 69º do C. P., na redacção actual introduzida pela Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, ao impor taxativamente a aplicação da sanção acessória de proibição de condução aos crimes previstos no art. 292º, viola o princípio da não aplicação automática
(necessária) das penas, previsto no n.º 4 do artigo 30º da Constituição da República Portuguesa. IV – Considera ainda o recorrente que a aplicação do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 69º do C. P. à circunstância da condução, em estado de embriaguez, de veículo de tracção animal, viola o princípio da adequação das normas penais. V – De facto, justificando-se tal disposição penal pela necessidade de prevenção
(prevenção de reincidência, conforme refere o Prof. Figueiredo Dias, ob. cit.), não faz sentido que a aplicação de tal sanção tenha como efeito prevenir o cometimento de um crime diverso do praticado pelo recorrente, inibindo-o de conduzir, pelo período de sete meses, veículos motorizados, ao mesmo tempo que lhe deixa em aberto a possibilidade de conduzir, no mesmo período, o veículo de tracção animal em que a infracção foi cometida.” Respondendo a tais alegações, o Ministério Público neste Tribunal desdobrou as questões suscitadas pelo recorrente em dois argumentos: o da suposta aplicação automática da sanção acessória – que os autos demonstrariam não ter ocorrido, tendo antes resultado da ponderação das circunstâncias do caso; e o da transferência da sanção acessória para uma dimensão diversa da resultante da infracção – que também não ocorreria, visto o ilícito assentar numa “deficiente formação da personalidade do agente” e não em “quaisquer regras ‘técnicas’ específicas, próprias da circulação de veículos sem motor”. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.Consultando a decisão de aplicação da pena de multa e da sanção acessória de proibição de condução de veículos automóveis, verifica-se, como notou o Ministério Público neste Tribunal, que ela teve «na sua base uma efectiva ponderação das circunstâncias do caso, implicando uma evidente “não automaticidade”». Ora, tal é, efectivamente, razão bastante para não se considerar o primeiro argumento no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 69º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, já que, não sendo de excluir, numa certa interpretação, que a tal norma possa ser dado esse sentido, o que é certo é que ele não foi aplicado no caso. O mesmo se decidiu, aliás, por exemplo, no Acórdão n.º 251/99, deste Tribunal, que confirmou decisão sumária no mesmo sentido (acórdão disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Cumpre, aliás, recordar a jurisprudência do Tribunal sobre essa norma, ainda que anterior à alteração da redacção introduzida pela Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, mas valendo também para a nova redacção. Assim, escreveu-se no Acórdão n.º 53/97 (e repetiu-se, por exemplo, no Acórdão n.º 149/2001, ambos disponíveis no mesmo endereço electrónico e o primeiro também em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36º vol., págs. 227-234):
“Admitindo que a faculdade de conduzir veículos automóveis é um direito civil, é certo que a perda desse direito é uma medida que o juiz aplica e gradua dentro dos limites mínimo e máximo previstos, em função das circunstâncias do caso concreto e da culpa do agente, segundo os critérios do artigo 71º do Código Penal. Poder-se-á, assim, dizer que o juiz não se limita a declarar a inibição como medida decorrente de forma automática da aplicação da pena, com mero fundamento na lei (...). A circunstância de ter sempre de ser aplicada essa medida, ainda que pelo mínimo da medida legal da pena, desde que seja aplicada a pena principal de prisão ou multa, não implica, ainda assim, neste caso, colisão com a proibição de automaticidade. A adequação da inibição de conduzir a este tipo de ilícitos revela que a medida de inibição de conduzir se configura como uma parte de uma pena compósita, como se de uma pena principal associada à pena de prisão se tratasse, em relação à qual valem os mesmos critérios de graduação previstos para esta última. Com efeito, a aplicação da inibição de conduzir fundamenta-se, tal como a aplicação da pena de prisão ou multa, na prova da prática do facto típico e ilícito e da respectiva culpa, sem necessidade de se provarem quaisquer factos adicionais. Atenta a natureza da infracção, com a inerente perigosidade decorrente dessa conduta, surge como adequada e proporcional a sanção de inibição de conduzir.”
4.Conclui-se, pois, que a única questão de constitucionalidade de que se pode conhecer (e que, aliás, não tinha antecedentes que poderiam justificar o seu conhecimento por decisão sumária), tendo sido determinante do despacho de produção de alegações, é a da invocada “violação do princípio da adequação das normas penais”, traduzida na prevenção do cometimento de um crime diverso do praticado pelo recorrente, como alega o recorrente (conclusão V das suas alegações). Ora, antes de mais, não pode dizer-se que a restrição da inibição de condução a veículos motorizados vise prevenir “crime diverso do praticado pelo recorrente” já que o tipo legal do n.º 1 do artigo 292º do Código Penal contempla a condução de veículo com ou sem motor com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a
1,2 gr./litro (ou seja, menos de metade do registado pelo infractor). Conclui-se, pois, que o crime cometido, para efeitos de tipificação legal, é o mesmo que a sanção acessória visa prevenir, embora tal sanção acessória se afigure com um âmbito algo diverso do da concreta conduta praticada, por ser circunscrita à condução de veículos motorizados. Em segundo lugar, não pode considerar-se decisivo (nem cumpre aqui discutir): nem que a previsão desta sanção acessória possa ser devida ao facto de “a fiscalização do cumprimento da sanção, assim como as consequências advindas do seu não cumprimento, [se tornar] facilmente alcançável através da entrega do título de condução, ao contrário do que acontece com a condução de veículos de tracção animal”, como admitido na decisão da 1ª instância; nem que ela se possa dever à desigual gravidade da condução de veículos motorizados e a tracção animal sob o efeito do álcool, já que nestes últimos “esse efeito não se
[reflecte] directamente no solípede”, ao passo que nos primeiros os “reflexos de condução são transmissíveis de forma directa à máquina”, como admitido na decisão recorrida; nem, por último, que possa assentar em “motivos estritamente práticos”, por o ilícito cometido assentar numa “deficiente formação da personalidade do agente – e não na violação de quaisquer regras ‘técnicas’ específicas, próprias da circulação de veículos sem motor”, como chegou a admitir, neste Tribunal, o Ministério Público. É que não tem, obviamente, de existir uma correspondência precisa entre a concreta conduta criminosa em questão – e que pode denotar a susceptibilidade da sua repetição, ou de condutas próximas, mas com idêntica relevância típica – e o âmbito da sanção acessória que visa prevenir a sua repetição. Isto, aliás, sob pena de, no limite, a sanção acessória pela condução, sob efeito do álcool, de um veículo de tracção animal só poder ser… a proibição da condução, também sob efeito do álcool, de um veículo também de tracção animal (mas já não, por exemplo, a sua condução em circunstâncias legais). Dizendo-o de uma forma geral: não há razão alguma para que a sanção acessória tenha de reproduzir exactamente, no seu âmbito, os elementos da conduta criminosa adoptada, como parece defender o recorrente. Por outro lado, do ponto de vista do ilícito praticado, tal sanção acessória não
é inadequada, na medida em que o ilícito se consubstancia na prática de condutas na circulação rodoviária criadoras de perigo, por força do consumo de álcool. Ora, a adequação estabelece-se com este tipo de ilícito. Em terceiro e último lugar, não se detecta qualquer falta de adequação ou de proporcionalidade na imposição de um prazo variável de inibição de conduzir veículos motorizados para os responsáveis por infracções estradais – designadamente por uma infracção com a gravidade objectiva da condução na via pública, sob efeito do álcool – e ainda que de veículos de tracção animal, dos quais, aliás, podem igualmente resultar perigos significativos para a circulação. Improcede, pois, nesta parte, o recurso de constitucionalidade interposto. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 69º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na redacção subsequente à Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho; b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, e condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
Lisboa, 4 de Novembro de 2004
Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos