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Processo n.º 10/08
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal
Constitucional, vem A. reclamar da decisão sumária proferida no âmbito dos
presentes autos, concluindo, nos seguintes termos:
“1.ª O ora reclamante indicou atempada e correctamente – e por duas vezes – qual
a norma ou princípio constitucional considerado violado e as peças processuais
onde a invocada inconstitucionalidade fora oportunamente suscitada num juízo
normativo,
2.ª Bem como explicitou, com total clareza e precisão, qual a exacta vertente
normativa das normas reputadas de inconstitucionais (art°s 180.º, 183°, n° 1,
184° do C.P. e 30°, 31° da Lei n° 2/99, de 13/1) em que as mesmas haviam sido
interpretadas e aplicadas, e se revelava como padecendo de manifesta
inconstitucionalidade material.
3.ª Deu assim o recorrente pleno cumprimento ao preceituado no art° 75°-A, n° 2
da Lei n° 82/92, o qual aliás não exige que o requerimento de interposição do
recurso tenha de contar a mesma extensão, profundidade e conteúdo que as
próprias alegações, e ficando assim o Tribunal Constitucional de posse de todos
os elementos que em tal norma se exigem e competindo-lhe agora conhecer do fundo
da questão suscitada.
4.ª Não tem razão o argumento da decisão reclamada de que não estaria aqui em
causa qualquer interpretação normativa dos supracitados preceitos da lei penal
mas tão somente o mero dissídio relativamente a uma decisão que entendera não
estar preenchida a respectiva tipicidade.
5.ª Acresce que o art° 78°-A, n° 1 da Lei 28/82, de 15/11, na vertente normativa
de atribuir a um único Juiz Conselheiro (o Juiz Relator) competência para
proferir decisões de mérito, é materialmente inconstitucional, por violação do
art° 224°, n°s 1 e 2 da CRP (que apenas prevê o funcionamento do mesmo Tribunal
em Plenário e por Secções),
6.ª Sendo que a admissibilidade (óbvia) da figura do Juiz Relator para assegurar
e ordenar a tramitação dos autos não pode ser transformada na admissibilidade (e
agora, até na prática, largamente dominante) de verdadeiras decisões sobre o
fundo da causa.
7.ª Por outro lado, sendo o Tribunal Constitucional (apenas) mais uma das
instâncias que integram o órgão de soberania ‘Tribunais’ e prevendo o art° 224°
da CRP tão somente que a lei estabeleça as regras relativas à sede, organização
e funcionamento, nenhuma justificação constitucional existe para que o mesmo
Tribunal Constitucional tenha um regime de custas próprio, como o consagrado no
Dec. Lei n°303/98, de 7/10,
8.ª Como para que as custas e multas aplicadas pelo Tribunal Constitucional
constituam, e integralmente, nos termos do art° 47°-B, n° 1 da LOTC, receitas
próprias do mesmo Tribunal, podendo ser aplicadas nas respectivas despesas
correntes e de capital,
9.ª Fazendo assim com que o próprio Tribunal Constitucional seja o interessado e
beneficiário directo e exclusivo nas custas em que, como sucedeu na questão sub
judice, condene os recorrentes ou reclamantes.
10.ª Tal solução legal contraria a garantia da imparcialidade, isenção e
independência dos Tribunais, sobretudo na perspectiva objectiva e na lógica da
‘tutela das aparências’, imperativamente estatuída pelo art° 6° da CEDH,
11.ª Inconstitucionalidades estas, ambas, que ficam desde já arguidas para todos
os devidos e legais efeitos.
12.ª Acresce que a tese consagrada no despacho ora reclamado, sobre conduzir à
completa e prática inutilização do sistema de fiscalização sucessiva concreta,
escamoteia que na questão sub judice apenas e tão só se procura apreciar normas
na vertente normativa inconstitucional que foi consagrada pelo Acórdão
recorrido,
13.ª O que é plenamente admitido pelo n° 1 do art° 280° da CRP, sendo, por seu
turno, a interpretação normativa que a decisão reclamada relativamente aos
indicados preceitos da lei penal consagra, por inteiro violadora daquele mesmo
preceito constitucional. Com efeito,
14.ª O recurso interposto para este Tribunal Constitucional não consubstancia
uma mera divergência quanto ao conteúdo do Acórdão recorrido mas a utilização do
meio processual próprio para fazer declarar a inconstitucionalidade material dos
supra-referenciados preceitos da lei penal, tal como foram interpretados e
aplicados no referido Acórdão.
Termos em que,
a) Deve ser declarada a inconstitucionalidade material (por violação do art°
224°, n°s 1 e 2 da CRP) do art° 78°-A, n° 1 da Lei n° 28/82, interpretado e
aplicado como o foi na decisão reclamada, ou seja, no sentido de atribuir
competência ao Juiz Relator para proferir decisões que não de mera instância;
b) Deve também ser declarada a inconstitucionalidade material (por violação do
art° 6° da CEDH) dos preceitos do Dec. Lei n° 303/98, de 7/10, em particular dos
seus art°s 47°-B e 47°-C, quando permitem simultaneamente que o Tribunal
Constitucional possa decidir das custas que aplica e que seja o seu directo e
exclusivo beneficiário (por constituírem, a 100%, suas receitas próprias);
c) Deve, por fim e em qualquer caso, ser rejeitada a tese consagrada na decisão
reclamada no sentido do não conhecimento do recurso por pretensamente não estar
em causa qualquer vertente normativa inconstitucional de preceitos legais, e
consequentemente deve a questão de fundo ser apreciada e decidida, em termos de
ser declarada a inconstitucionalidade material (por violação dos art°s 25°, n°
1, 26°, n° 1 e 13°, todos da CRP, e 10°, n°2 da CEDH) dos indicados art°s 180°,
n° 1, 183°, n° 1 e 184° do Cód. Penal, e 30° e 31° da Lei n° 2/99, de 13/1, na
vertente normativa que foi consagrada pela forma como foram interpretados e
aplicados no Acórdão recorrido.”
2. A decisão reclamada, e no que ora importa, tem o seguinte teor:
“4. No caso em apreço, a decisão recorrida, não tendo pronunciado os arguidos
pela prática dos ilícitos em questão, julgou no sentido do não preenchimento dos
atinentes tipos legais de crime. (…)
Não está em causa, por conseguinte, a interpretação normativa dos referenciados
artigos 180.º, n.º 1, e 184.º, do Código Penal, mas tão-somente a decisão
recorrida que entendeu não se encontrar preenchida a respectiva tipicidade. Com
efeito, face aos factos relevantes dados como provados nos autos, o Tribunal a
quo entendeu não se verificar ofensa da honra do Recorrente – elemento dos tipos
legais elencados. Esta asserção, no entanto, ligando-se exclusivamente à
soberania do Tribunal recorrido na subsunção (no sentido de sotoposição de um
caso individual à hipótese ou tipo legal – Karl Engish, Introdução ao Pensamento
Jurídico, 5.ª Ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1979, p. 78) da
situação concreta às normas incriminadoras, não é apreciável no âmbito de
recurso exclusivamente normativo como é o de constitucionalidade.
Efectivamente, a vertente normativa explanada no requerimento de interposição de
recurso para este Tribunal – a imputação de factos (falsos) ao assistente (…) e
a formulação de juízos (…) não seriam atentatórios da honra e consideração que
são devidos ao assistente, enquanto titular de cargo público e enquanto cidadão’
– mais não é do que a revelação do dissídio do Recorrente sobre a forma como foi
decidido o litígio. No entanto, tal não pode ser objecto de apreciação em sede
de fiscalização concreta da constitucionalidade.
5. Tal suposta normatividade traduz apenas, portanto, a valoração concretizadora
que a decisão recorrida fez das particularidades do caso concreto.”
3. O Ministério Público, bem como o Reclamado B., pronunciaram-se no sentido da
improcedência da reclamação.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto invocou, nomeadamente, que:
“4.º
Note-se que a exigência de que o Tribunal Constitucional apenas possa realizar
um controlo normativo relativamente às decisões proferidas pelos tribunais
situadas nas restantes ordens jurisdicionais não traduz qualquer empolamento
formalístico exacerbado e injustificado, tendo antes que ver com a própria
arquitectura constitucional do órgão de soberania ‘Tribunais’, face à qual o
Tribunal Constitucional se não assume como detentor de poderes para exercitar um
novo, sucessivo e pleno grau de jurisdição relativamente às decisões de facto e
de direito dos restantes tribunais, mas antes como um órgão jurisdicional dotado
de um papel especifico e bem delimitado, direccionado para a eliminação de
‘normas’ violadoras da Lei Fundamental.”
Cumpre decidir.
II – Fundamentação
4. Face ao que se considerou na decisão sumária, ora impugnada, a vertente
normativa explanada no requerimento de interposição de recurso para este
Tribunal mais não é do que a revelação do dissídio do Recorrente sobre a forma
como foi decidido o litígio, sendo certo que o Tribunal Constitucional não tem
poderes para sindicar as decisões dos restantes Tribunais, mas tão somente para
afastar as “normas” que colidam com a Constituição.
Assim, é de manter, nesta parte, isto é, no que concerne ao controlo normativo
referenciado, o decidido.
4. Quanto ao mais, isto é quanto às questões suscitadas, nomeadamente a
invocação de inconstitucionalidade do artigo 78.º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal
Constitucional, no sentido de que, no dizer do Reclamante, atribui ao Relator
poderes para proferir “decisões de mérito”, isto é, que não sejam de “mera
instância”, constata-se que a decisão sumária proferida não foi de mérito, isto
é, não foi substantiva, antes foi meramente procedimental ao não considerar
preenchidos os pressupostos de que depende o conhecimento do mérito do recurso.
Assim, o Reclamante imputa à decisão sumária uma qualidade que a mesma não
revela.
Acresce que o facto de a lei, considerando o que se dispõe no artigo 78.º-A, n.º
1, da Lei do Tribunal Constitucional, atribuir ao Juiz Relator, em determinadas
circunstâncias, a faculdade de exarar decisões sumárias, o que, aliás, ocorre
com diversos Tribunais superiores, não colide com o disposto no artigo 224.º,
n.ºs 1, e 2, da Constituição da República.
Na verdade, e conforme vem sustentando Cardoso da Costa: “Ocorrendo qualquer das
situações previstas no n.º1 do artigo 78.º-A LTC, observar-se-á a tramitação
abreviada descrita no mesmo artigo – em que há lugar a uma simples ‘decisão
sumária’ do relator do processo, susceptível, porém, de reclamação para a
‘conferência’. (…). A propósito da tramitação abreviada do recurso, cabe
recordar que foi introduzida na Lei do Tribunal Constitucional em 1989 (Lei n.º
85/89), mas, então, ainda sem contemplar a possibilidade de uma decisão sumária
apenas do relator. Representou ela, na altura, uma significativa inovação no
conjunto do direito processual português, e seguramente o estímulo para que o
legislador, depois, a viesse a acolher na Reforma do Processo Civil de
1995/1996, conferindo-lhe mesmo os contornos mais radicais decorrentes da
introdução da figura da ‘decisão sumária’ do relator: foi esta figura que a Lei
n.º 13-A/98 veio, por sua vez, transpor para a Lei de processo do Tribunal
Constitucional (e indo mesmo além daquela Reforma, no tocante ao caso de não
conhecimento do objecto do recurso: cfr. art. 704.º, n.º1, do Cód. Proc. Civil).
Entretanto, assinale-se que, não tendo o Tribunal deixado de ser igualmente
confrontado com a questão da legitimidade constitucional de um tal instituto, e
não tão raramente assim, também não deixou ele de reiteradamente julgar sem
fundamento essa questão: v. logo o Acórdão n.º 19/99 e, depois, variados outros,
como, p. ex., os Acórdãos n.ºs 307/01, 495/02, 402/05 ou, por último, o Acórdão
n.º 20/07.” (A Jurisdição Constitucional em Portugal, 3.ª ed., Almedina, 2007)
5. No que concerne aos artigos 47.º-B, e 47.º-C, da Lei do Tribunal
Constitucional, a decisão reclamada não se pronunciou nem fez aplicação de tais
normas, pelo qual não se pode conhecer da invocada inconstitucionalidade.
Sempre se diga, no entanto, que se encontra na liberdade de conformação do
legislador ordinário a possibilidade de erigir um regime de custas próprio para
o processo constitucional, não se antevendo, aliás, vantagens da aplicação a
este tipo de processo, face à sua especificidade, do estatuído no que se refere
a custas penais, cíveis ou administrativas.
Diz o Acórdão n.º 9/2001 deste Tribunal Constitucional (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt):
“(…) como se refere no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro, a
adopção do modelo do Código das Custas Judiciais não deixa de tomar em
consideração as especificidades do processo no Tribunal Constitucional, bem como
a necessidade de adequar a taxa de justiça vigente à ‘intervenção do tribunal
motivada por uma contumácia crescente que importa desincentivar’.
Particularmente quanto a este último ponto, refere-se no mencionado preâmbulo,
que ‘o Tribunal Constitucional não pode ser utilizado […] como pretexto para se
protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado das decisões’.
Em suma, a existência de contrariedade ao Código das Custas Judiciais
(hipotética, já que a requerente não a demonstra minimamente) não permitira
sustentar, nem violação de lei de valor reforçado nem, atentas as
especificidades do processo constitucional e da própria jurisdição do Tribunal
Constitucional, violação do princípio da igualdade. Nem, obviamente, permitiria
sustentar violação do Estado Social de Direito, como chega a sugerir a
requerente, cujos princípios não postulam manifestamente a não tributação de
incidentes processuais infundados.”
6. Também carece de relevância o destino financeiro da receita de custas cobrada
pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente que, com tal facto, se possa pôr em
causa a imparcialidade, isenção e independência com que o Tribunal exerce as
suas funções e que na sua graduação entrem outros factores que não sejam os que
resultam da adequada aplicação da lei.
Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, se mantém a decisão
reclamada.
III – Decisão
7. Assim, acordam em indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido de não tomar conhecimento do objecto do
recurso.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 1 de Abril de 2008
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos