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Processo n.º 732/08
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I Relatório
1. Na sequência de agravo interposto de despacho proferido no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Guimarães, que indeferiu a penhora de salário ao executado no processo de execução para pagamento de quantia certa que a exequente A. Lda, move ao executado B., a Relação de Guimarães manteve o despacho recorrido, e recusou a aplicação da norma do artigo 824.º n.º 1 alínea a) e n.º 2 do Código de Processo Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 180/96 de 25 de Setembro, com o sentido de permitir a penhora de vencimento quando o respectivo valor é igual ao salário mínimo nacional, dispensando a prova de insuficiência económica por parte do executado, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, resultante da disposição conjugada do artigo 59.º, n.º 1, alínea a) e 2, alínea a) da Constituição. Disse a Relação:
«(…) No caso dos autos a questão a decidir respeita à viabilidade da penhora de parte de salário cujo valor é igual ao salário mínimo nacional.
A execução iniciou-se em 2003 pelo que o regime aplicável é o introduzindo pelo DL n.º 180/96 de 25.09, uma vez que o actual regime, introduzido pelo DL n.º 38/2003 de 08.03 só se aplica a processos instaurados a partir de 15.09.2003 – art. 2l.º do DL n.º 38/2003.
A penhora de vencimentos está prevista no art. 824º que na redacção anterior à reforma de 2003 estipulava (no que interessa à decisão deste litígio) que não podiam ser penhorados dois terços do vencimento ou salários auferidos pelo executado.
O juiz fixava a penhora entre 1/3 e 1/6 podendo eventualmente isentar os rendimentos de penhora tendo em conta a natureza da dívida e as necessidades do executado e respectivo agregado familiar.
O salário mínimo nacional para o ano de 2007 foi fixado em 403 € – DL n.º 02/2007 de 03.01.
O despacho impugnado indeferiu a pretensão de penhora da agravante com fundamento da inconstitucionalidade do art. 824º quando interpretado no sentido de ser possível a penhora de vencimento quando o respectivo valor é igual ao salário mínimo.
Argumenta a agravante com a constitucionalidade do preceito invocando o Ac. do TC de 16.02.2007.
Efectivamente neste acórdão decidiu-se pela constitucionalidade do art. 824º do CPC quando interpretado no sentido de permitir a penhora do vencimento do executado mesmo quando o valor deste seja o do salário mínimo nacional.
O fundamento assenta na diferenciação que o legislador faz quanto à natureza de salários e pensões e na possibilidade de uma eventual isenção decretada pelo Juiz.
Efectivamente o Ac. de 2002 respeita a pensões e o de 2006 respeita a salários.
No Ac. de 2002 estipulou-se que é inconstitucional a norma que resulta da conjugação do disposto no art. 824º n.º 2 e n.º 1 al. b) do CPC na parte em que permita a penhora até um terço das prestações periódicas pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional, por violação do princípio da dignidade humana contido no princípio do Estado de Direito, e que resulta das disposições conjugadas do art. 1.º, da al. a) do n.º 2 do art. 59.º e dos n.º 1 e 3 do art. 63º da CRP.
O Ac de 2006 tem dois votos de vencido e nestes votos os respectivos subscritores (Mário Torres e Maria Fernanda Palma) defendem a aplicação da teoria de 2002 aos salários dizendo que “...o juízo de inconstitucionalidade visa afastar as normas jurídicas que se mostrem desconformes com normas ou princípios constitucionais, tal objectivo não sendo assegurado se permite a existência dessas normas com a mera esperança de que uma intervenção casuística de um juiz mais sensível ou atento venha a evitar a produção do resultado tido como constitucionalmente intolerável: a privação dos rendimentos estritamente necessários a uma vida minimamente condigna do executado e seu agregado familiar...”.
Ora bem o TC estabeleceu um valor de referência pelo que se entende que o mesmo serve de igual modo para os salários.
Acresce que também o Ac. n.º 96/2004 in DR II série, 01.04.2004, se decidiu exactamente pelo oposto do Ac. de 2006.
A inconstitucionalidade dispensa qualquer prova de insuficiência económica por parte do executado.
As conclusões da agravante improcedem pois na totalidade.(…)»
2. É desta decisão que o Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.ºs 1, alínea a) e 3 da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC). Admitido o recurso, o Ministério Público recorrente alegou e concluiu:
«(…)1 – Não é materialmente inconstitucional o regime constante do artigo 824º, n.º 1, alínea a), e nº 2 do Código de Processo Civil (na redacção anterior à emergente do Decreto-Lei nº 38/03) que se traduz em não considerar estabelecida a impenhorabilidade, total e automática, dos rendimentos do trabalho, auferidos pelo executado, e que não excedam o montante do salário mínimo nacional.
2 – O interesse na sobrevivência condigna do executado é, neste caso, assegurado, em termos bastantes, pela possibilidade, outorgada ao juiz pelo nº 3 de tal preceito legal, de realizar um juízo de ponderação casuístico e prudencial, articulando os interesses do exequente e executado, de acordo com a natureza do débito e as necessidades do devedor e seu agregado familiar.
3 – Não viola o princípio da igualdade a circunstância de – quanto a pensões ou regalias sociais de valor não superior ao salário mínimo – vigorar (por imposição da própria jurisprudência do Tribunal Constitucional) um regime de impenhorabilidade total e “automática”, já que tais rendimentos assentam ou pressupõem uma situação de particular debilidade, incapacidade ou fragilidade económica do executado, que se não verifica necessariamente quando estiverem em causa rendimentos profissionais, mesmo que de montante reduzido.
4 – Termos em que deverá proceder o presente recurso, em consonância com o decidido no Acórdão nº 657/2006.(…)»
II Fundamentação
3. A Relação de Guimarães abordou a questão de inconstitucionalidade mediante a citação dos acórdãos do Tribunal Constitucional em que a matéria foi apreciada, não tendo tratado ex professo dessa questão. No entanto, apesar de não haver uma declaração expressa do exacto sentido da norma julgada inconstitucional, ele retira-se do texto da decisão sem margem de dúvida; a Relação desaplicou efectivamente o artigo 824.º n.º 1 alínea a) e n.º 2 do Código de Processo Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 180/96 de 25 de Setembro, por considerar que, interpretada no sentido de ser possível a penhora de vencimento quando o respectivo valor é igual ao salário mínimo nacional, independentemente de prova da insuficiência económica do executado. Passemos, por isso, a analisar esta questão.
4. A Constituição reconhece expressamente o valor da dignidade humana no seu artigo 1.º, ao afirmar que Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária. No seu Acórdão n.º 105/91, o Tribunal considerou que a dignidade humana é um valor axial e nuclear da Constituição vigente, inspirando e fundamentando todo o ordenamento jurídico, reconhecendo-se esse valor como eminente da pessoa, como ser autónomo, livre e socialmente responsável. É nesta óptica que tem sido analisadas as questões que se radicam no chamado princípio da sobrevivência condigna ou do direito ao mínimo de sobrevivência, conforme o Tribunal decidiu no Acórdão n.º 232/91, referente a pensões devidas por acidentes de trabalho, e nos arestos tirados sobre norma idêntica à que está agora em causa, contida no artigo 824.º do Código de Processo Civil, que permitia a penhora até um terço dos rendimentos, qualquer que fosse o seu montante. Nos Acórdãos n.ºs 349/91, 411/93, 130/95 e 62/2002, o Tribunal Constitucional voltou a afirmar a prevalência do direito ao mínimo de existência condigna sobre o direito ao ressarcimento do crédito. Entendeu o Tribunal nestes acórdãos que, nos casos em que o rendimento a penhorar não era superior ao salário mínimo, o direito dos credores deveria ceder perante o direito ao mínimo de sobrevivência, determinante da impenhorabilidade das pensões.
Este rumo jurisprudencial (Acórdãos n.º 318/99, 120/2001 e 165/2001) culminou na declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que resulta do artigo 824.º do Código de Processo Civil, na parte em que permite a penhora até um terço das prestações periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou pensão, cujo valor global não é superior ao salário mínimo nacional, por violação do princípio da dignidade da pessoa humana, contido no princípio do Estado de Direito – Acórdão n.º 177/2002, de 23 de Abril (DR, I Série-A, n.º 150, de 2 de Julho de 2002).
5. Vai a decisão recorrida buscar o essencial da sua fundamentação à tese que fez vencimento no Acórdão n.º 96/2004 onde se concluiu que as considerações que suportaram a decisão de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do Acórdão n.º 177/02 (DR, I Série-A, n.º 150, de 2 de Julho de 2002) eram transponíveis para o caso.
Entendeu-se que a decisão tomada no Acórdão n.º 177/2002 se fundou no juízo de que a penhora deveria salvaguardar o montante mínimo considerado necessário para uma subsistência digna do respectivo beneficiário, sendo adequado tomar como referência, para esse efeito, o valor do salário mínimo nacional. Considerou-se, ainda, que esse mínimo necessário a uma subsistência digna não pode manifestamente considerar-se assegurado nos casos em que, não tendo o executado outros bens penhoráveis, é penhorada uma parcela do seu salário, ficando o executado privado de um montante equivalente ao salário mínimo nacional.
Diz-se no aludido Acórdão n.º 96/2004:
«(…) O fundamento do juízo de inconstitucionalidade constante deste último acórdão não radicou em qualquer presunção de debilidade, incapacidade laboral ou desprotecção do respectivo titular. Radicou, tão-somente, na consideração de que a penhora deveria salvaguardar o “montante mínimo considerado necessário para uma subsistência digna do respectivo beneficiário”, sendo adequado tomar como referência de tal montante o salário mínimo nacional.
A qualquer executado – e não apenas àquele que se encontra numa situação de debilidade, incapacidade laboral ou desprotecção e que, por isso, recebe uma regalia social – deve ser assegurado o mínimo necessário a uma subsistência digna. Ora, esse mínimo necessário a uma subsistência digna não pode manifestamente considerar-se assegurado nos casos em que, não tendo o executado outros bens penhoráveis, se admite a penhora de uma parcela do seu salário e, por essa razão, o executado fica privado da disponibilidade de um montante equivalente ao salário mínimo nacional.(…)»
Como se vê, o argumento que levou o Tribunal, nesse caso, a aderir aos fundamentos do Acórdão n.º 177/2002, foi a circunstância de considerar equiparável, para este efeito, a situação daquele que «se encontra numa situação de debilidade, incapacidade laboral ou desprotecção e que, por isso, recebe uma regalia social», com o trabalhador que, não tendo outros bens penhoráveis, auferindo unicamente o salário mínimo, ficaria privado da disponibilidade de um montante equivalente ao salário mínimo nacional, se fosse permitida a penhora de uma parcela do seu salário. Ora, no caso em presença, esse distinguo não pode deixar de ser sublinhado, visto que se reporta à circunstância de o tribunal recorrido ter desaplicado a norma independentemente de saber se o executado dispõe de outros bens penhoráveis.
O Tribunal já salientou (Acórdão n.º 657/2006) que o tratamento juridicamente distinto de pensões e outras regalias sociais, por um lado, e de vencimentos e salários, por outro, se fundamenta na sua diferente natureza. E é essa diferente natureza que permite considerar que na fixação dos montantes do salário mínimo ocorrem não só considerações atinentes ao princípio de justiça comutativa e à própria ideia de dignidade do trabalho, mas também outras razões sociais e económicas, como as necessidades dos trabalhadores, o aumento de custo de vida, a evolução da produtividade, a sustentabilidade das finanças públicas, o que faz arredar a qualificação, em absoluta segurança, do salário mínimo como garantia indispensável de um mínimo de subsistência, implicado pelo valor da dignidade humana.
Ali se referiu:
«(…) A questão da imposição constitucional de uma impenhorabilidade total, e em abstracto, de rendimentos que não excedam, ou não deixem ao devedor, um montante correspondente ao salário mínimo nacional foi objecto de várias decisões deste Tribunal, e, mesmo de uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
Assim, pelo Acórdão n.º 177/2002 (Diário da República [DR], I Série A, n.º 150, de 2 de Julho de 2004, p. 5158), proferido na sequência de outras decisões (v. logo o Acórdão n.º 318/99, in DR, II série, n.º 247, de 22 de Outubro de 1999) foi declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da “norma que resulta da conjugação do disposto na alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 824.º do Código de Processo Civil, na parte em que permite a penhora até 1/3 das prestações periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, e que resulta das disposições conjugadas do artigo 1.º, da alínea a) do n.º 2 do artigo 59.º e dos n.ºs 1 e 3 do artigo 63.º da Constituição”.
Por sua vez, o Acórdão n.º 62/2002 (in DR, II série, n.º 59, de 11 de Março de 2002) julgou inconstitucionais, por violação dos mesmos princípios constitucionais, as normas dos artigos 821º, n.º 1, e 824º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual são penhoráveis as quantias percebidas a título de rendimento mínimo garantido.
Ambas estas decisões foram proferidas por maioria, com votos de vencido.
4. No presente caso, está em causa, porém, não a norma da alínea b), relativa a pensões e outras prestações periódicas de natureza similar, que esteve em foco no Acórdão n.º 177/2002, do plenário deste Tribunal (ou a quantias recebidas a título de rendimento mínimo garantido, como no citado Acórdão n.º 62/2002), mas antes a norma da alínea a), relativa a vencimentos e salários, ambas do n.º 1 do citado artigo 824.º, conjugadas com o n.º 2, na redacção deste preceito introduzida pelo Decreto-Lei n.º 180/96. Foi, na verdade, a penhora de uma parte do salário dos recorridos que se discutiu na decisão recorrida.
Também sobre a norma da referida alínea a) já existe, entretanto, jurisprudência no Tribunal Constitucional. Na verdade, o Acórdão n.º 96/2004, da 3.ª Secção deste Tribunal (Diário da República, II Série, n.º 78, de 1 de Abril de 2004, pág. 5228), “julg[ou] inconstitucional, por violação do princípio da dignidade humana, decorrente do princípio do Estado de direito, constante das disposições conjugadas dos artigos 1.º, 59.º, n.º 2, alínea a), e 63.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa, a norma que resulta da conjugação do disposto na alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 824.º do Código de Processo Civil (na redacção emergente da reforma de 1995 1996), na parte em que permite a penhora de uma parcela do salário do executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, e na medida em que priva o executado da disponibilidade de rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional” (itálico aditado).
Este Acórdão assentou o seu juízo de inconstitucionalidade na adesão à fundamentação do referido Acórdão n.º 177/2002, considerada transponível para os casos em que a penhora recai sobre salários, e não sobre pensões. Também esta decisão foi proferida por maioria, tendo existido dois votos de vencido.
(…)
Importa, justamente, começar por salientar que o tratamento diferenciado, para efeitos de penhorabilidade e por razões de protecção do devedor, de prestações como pensões, por um lado, e dos vencimentos e salários, por outro, não é inédito entre nós, e antes correspondeu a solução frequente, que se reflectiu, mesmo, em várias decisões sobre questões de constitucionalidade. A impenhorabilidade de prestações devidas pelas instituições de segurança social, em particular, foi, na verdade, por várias vezes objecto de análise pela nossa jurisprudência constitucional.
(…)
A própria previsão da possibilidade de o juiz isentar totalmente de penhora o executado, tendo em conta “a natureza da dívida exequenda e as necessidades do executado e seu agregado familiar”, começou por ser prevista, no artigo 824.º, n.º 3, apenas para as prestações a que aludia a alínea b) do n.º 1 do artigo 824.º, com exclusão dos vencimentos e salários, tendo sido estendida a estes últimos pelo Decreto-Lei n.º 180/96. E esse mesmo tratamento diferenciado é o que se encontra previsto hoje, no artigo 824.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, que apenas veda no caso de pensão ou regalia social a possibilidade de o juiz, tendo em conta as circunstâncias concretas, reduzir o limite mínimo impenhorável, correspondente ao salário mínimo nacional.
Este tratamento distinto das pensões e outras regalias sociais, por um lado, e dos vencimentos e salários – isto é, de retribuição do trabalho – , por outro, fundamenta-se na sua diferente função e natureza. Nesta perspectiva, importa salientar que não só a decisão proferida no citado Acórdão n.º 177/2002, que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da penhora até um terço das prestações periódicas, pagas ao executado a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao “salário mínimo nacional”, não inclui, como vimos, a dimensão normativa em causa no presente recurso, como não impõe só por si uma solução para a apreciação da constitucionalidade desta última, na medida em que um dos fundamentos para uma solução diversa seja, justamente, a diferente natureza e função de uma prestação remuneratória ou retributiva e das pensões ou regalias sociais.
(…) Importa justamente averiguar em que medida podem ser consideradas procedentes, para a penhora de vencimentos e de salários, as considerações que este Tribunal teceu no sentido de uma impenhorabilidade absoluta de montantes inferiores (ou que privem o executado de um montante pelo menos igual) ao salário mínimo nacional. Trata-se de averiguar se são procedentes os argumentos apresentados, a tal respeito, no Acórdão n.º 177/2002, e, designadamente (pois que se pronunciou especificamente sobre a penhora de salários) no Acórdão n.º 96/2004. Ambos os arestos fundaram-se na violação do “princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito”, e que se disse resultar das disposições conjugadas do artigo 1.º, da alínea a) do n.º 2 do artigo 59.º e dos n.ºs 1 e 3 do artigo 63.º da Constituição (isto, apesar de no segundo caso não estar propriamente em causa o direito a uma prestação de segurança social, mas antes a penhora de uma parcela do salário).
(…)
Esses critérios constitucionais e legais explícitos contrariam a qualificação do salário mínimo como garantia indispensável de um “mínimo de subsistência”, implicado pelo valor da dignidade humana, cumprindo notar, aliás, que o que está aqui em causa não é a existência de outras referências possíveis para definir o limiar em causa, mas a inadequação do salário mínimo para tanto. E diga-se que, por outro lado, tal inadequação se não prende com a possibilidade, ou não, de afirmar qualquer presunção, relativa ou absoluta, de debilidade económica ou social do trabalhador que aufere apenas o salário mínimo – muito menos um juízo comparativo sobre tal debilidade económica ou social em relação aos titulares de pensões sociais.
O salário mínimo é uma prestação retributiva do trabalho equivalente ao mínimo que a ideia de dignidade e valor do trabalho (e não da pessoa humana) implicam – ou, se se quiser, repete-se, da pessoa enquanto trabalhador –, e que outras razões sociais e económicas condicionam, mas não é o critério adequado, e muito menos constitucionalmente imposto, para uma abstracta impenhorabilidade total, fundada na protecção da dignidade da pessoa humana. (…) Sendo certo que é mesmo desejável que o montante do salário mínimo se afaste, cada vez mais, do valor do “mínimo de sobrevivência condigna”, este mínimo pode, porém, por outro lado, ser mesmo ser superior ao salário mínimo – e muitas vezes sê-lo-á sem dúvida (por exemplo, em agregados familiares numerosos).
Pode, pois, dizer-se que a RMMG não é o valor referencial adequado para a imposição de uma impenhorabilidade em abstracto, em nome do princípio da dignidade da pessoa humana. Antes, consoante as circunstâncias, pode ser insuficiente, ou pode, pelo contrário, ser excessivo. De acordo com as exigências constitucionais, e quando o valor dos rendimentos do executado for superior ao “mínimo de existência”, é aceitável, pois, a possibilidade, que estava prevista no artigo 824.º, de, sem uma impenhorabilidade absoluta do valor correspondente ao salário mínimo, o juiz fixar o montante penhorável entre um terço e um sexto, ou isentar mesmo totalmente de penhora, considerando a natureza da dívida exequenda e as necessidades do executado e seu agregado familiar (possibilidade, esta, de ponderação que, salvo para pensões ou regalias sociais se encontra hoje também prevista).
(…)
Apenas cumpre salientar que, como se disse, a diferenciação entre estes rendimentos e outros, como os rendimentos provenientes de prestações sociais, para efeitos de penhorabilidade, existiu entre nós, e hoje existe novamente. Tal compreende-se, na óptica das considerações expendidas no ponto anterior, à luz da diferente função e natureza das prestações em causa, e designadamente da sua natureza retributiva, ligada ao valor da prestação laboral, ou não (e não necessariamente – repete se – de qualquer “presunção de debilidade, incapacidade laboral ou desprotecção do respectivo titular”).
Pelo que, evidentemente, mesmo quem tenha aceite a exigência constitucional de uma impenhorabilidade de rendimentos provenientes de prestações sociais como pensões, na medida em que não deixem ao executado um montante igual ao do salário mínimo nacional não é necessariamente levado a estender tal juízo de inconstitucionalidade aos rendimentos laborais. E, acompanhando a diferença de natureza destes rendimentos, será, mesmo, levado a adoptar uma conclusão contrária.
(…)».
6. A presente situação enquadra-se inequivocamente em situação idêntica à julgada no Acórdão n.º 657/2006, em que estava em causa a interpretação do 824.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código de Processo Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 180/96 de 25 de Setembro que permite a penhora do salário do executado de valor igual ao salário mínimo nacional.
De acordo com as imposições constitucionais, é admissível a possibilidade prevista no artigo 824.º, de, sem uma impenhorabilidade absoluta do valor correspondente ao salário mínimo, o juiz fixar o montante penhorável entre um terço e um sexto, ou isentar mesmo totalmente de penhora, considerando a natureza da dívida exequenda e as necessidades do executado e seu agregado familiar. Ou seja: a superioridade do princípio da dignidade humana sobre o direito do credor, quando aquele exija uma solução que conflitue com este, fica suficientemente salvaguardada pela possibilidade de realização de um juízo casuístico de ponderação e adequação dos interesses de exequente e executado, em conformidade com as exigências constitucionais.
III Decisão
7. Em consequência, o Tribunal decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 824.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código de Processo Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 180/96 de 25 de Setembro, interpretada no sentido de ser possível a penhora de vencimento quando o respectivo valor é igual ao salário mínimo nacional;
b) Julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida para ser reformada em consonância com o presente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 29 de Junho de 2010
Carlos Pamplona de Oliveira
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos