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Processo n.º 532/04
3ª Secção Rel. Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A., arguido nos autos de recurso penal n.º ---------/03 do Supremo Tribunal de Justiça (Recurso Penal n.º -------/03.1 do Tribunal da Relação do Porto / Processo Comum n.º ------/02.6TBPNF do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de --------), reclama do despacho de 12 de Março de 2004, que não admitiu o recurso que interpôs para o Tribunal Constitucional do acórdão de 19 de Fevereiro de 2004, ao abrigo do artigo 77º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro ( LTC).
Sustenta que, contrariamente ao que foi considerado pelo despacho sob reclamação, na motivação do recurso interposto para o STJ “o ora reclamante desde logo, indicou que o facto de não considerar que a decisão recorrida padecia dos vícios do n.º 2 do artº 410 do CPP, não alterando a qualificação de homicídio doloso para homicídio negligente, violava o princípio ‘in dubio pro reo’ e artº 32º n.º 1 da C.R.P..”
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público responde que a presente reclamação deve improceder porque o recorrente “não suscitou, durante o processo e em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para servir de base ao recurso interposto para este Tribunal”.
2. Para decisão da reclamação interessa considerar as ocorrências processuais seguintes:
a) Concedendo parcial provimento a recurso interposto pelo arguido, ora reclamante, o Tribunal da Relação do Porto (reduzindo a pena e a indemnização em que fora condenado pelo 3º Juízo do Tribunal da Comarca de --------), condenou-o na pena de seis anos de prisão pelo crime de homicídio, nos termos dos artigos
131º, 71º n.ºs 1 e 2 e 73º n.º 1 do Código Penal, e no pagamento de €70.0000, a título de indemnização à assistente B.. b) O arguido impugnou esse acórdão da Relação perante o Supremo Tribunal de Justiça, sustentando que o crime por si cometido foi o de homicídio involuntário, nos termos da motivação que constitui fls. 17/34, na qual conclui
[transcrição da parte útil]:
“1- A decisão recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova, artº 410 n.º 2 al. c) do C.P.P.
2- Pois, da análise da factualidade que o douto acórdão considerou provada e não provada, entendemos que existe a dúvida, quanto à intenção de matar, essa dúvida só não foi reconhecida por erro notório na apreciação da prova, vício e conhecimento oficioso, previsto na alínea c) do n.º 2 do artº 410 do C.P.P.
3- Este vício é susceptível de ser apreciado em recurso por este douto tribunal.
[...]
9- Entendemos que só por erro notório na apreciação de toda a prova constante dos autos é que não foi o recorrente condenado por homicídio negligente.
[...]
11- O tribunal recorrido ‘ficcionou o dolo’, quando toda a prova aponta no sentido da negligência, defendendo nos desde o início a existência de
‘negligência grosseira’ artº 137 n.º 2 do C.P.
12- Acresce que, existiu erro notório na apreciação do Relatório Médico-legal a fls. 380 e s.s., em que o tribunal atentou, mas de que não retirou o que deveria ter retirado, pois o mesmo aponta para o homicídio involuntário, aí se diz:
‘4. É lícito pensar que a deficiência grave do ombro superior esquerdo, só por si ou associada à instabilidade muscular e de movimentos que a idade lhe confere, ou mesmo a perturbação externa, terá perturbado de forma decisiva a sua postura e contribuído para o resultado final’.
13- Ora, como é consabido, tal Perícia faz prova plena nos termos do artº 163º do C.P.P.
[...]
20- A decisão recorrida, para além de outros, viola o artº 131, 14, 15, 137 ambos do C.P., violou ainda o princípio in dubio pro reo, artº 32 da C.R.P., artºs. 163 e 410 n.º 2 ambos do C.P.P.”
c) Por acórdão de 19 de Fevereiro de 2004 (certificado a fls. 35/57), o Supremo Tribunal de Justiça decidiu rejeitar esse recurso por manifestamente infundado no que toca aos vícios da decisão recorrida (erro notório de apreciação da prova) e por ilegitimidade quanto ao montante da indemnização e negar-lhe provimento no mais, mantendo o acórdão da Relação, destacando-se da fundamentação, quanto àquela primeira questão, o seguinte:
“[...]
12.1. A questão da qualificação jurídica correlacionada com o referido erro notório na apreciação da prova (princípio in dubio pro reo). Esta questão já foi colocada pelo recorrente no recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto. Começa por ser uma questão atinente à matéria de facto, pretendendo o recorrente a requalificação dos factos como crime de homicídio negligente do art. 137º n.º 2 do CP (negligência grosseira). Ora, a factualidade sobre que há que operar a qualificação jurídica encontra-se definitivamente assente pelas instâncias, cabendo apenas ao STJ, como tribunal de revista, o reexame da matéria de direito. E, se é certo que o art. 434º do CPP ressalva o disposto no art. 410º n.º 2 do CPP, isto é, os vícios atinentes à matéria de facto que afectam intrinsecamente a decisão e atingem, como tal, a solução jurídica dada à causa («sem prejuízo do disposto no art. 410º nº.s 2 e
3, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito»), a verdade é que tem entendido a jurisprudência deste Supremo que tais vícios não podem constituir objecto do recurso para ele interposto e, com razão acrescida, quando sobre a matéria de facto já se exerceu um duplo grau de jurisdição, como é o caso.
[...] Também no caso sub judice, a Relação apreciou a pretensão do arguido/recorrente e concluiu, depois de analisar com detalhe o fundamento da convicção dos julgadores, pela inconsistência da tese da negligência. Com efeito o tribunal «a quo» salientou a inspecção feita ao local pelo tribunal colectivo e as conclusões resultantes de tal exame e pôs ainda em destaque a fundamentação do acórdão da 1ª instância no que tange à apreciação dos variados depoimentos, para acabar por concluir pela rejeição da tese do «disparo acidental» e pela conformidade da decisão de facto, nomeadamente quanto à voluntariedade e intencionalidade do disparo, com as regras gerais da experiência comum, conjugadas com o princípio da livre convicção do tribunal, fundadamente objectivada esta em razões plausíveis. Temos, assim, como já dito, que a matéria de facto se deve ter como definitivamente fixada, não enfermando esta de qualquer erro notório na apreciação da prova (nomeadamente na vertente da violação do princípio in dubio pro reo) que este Tribunal devesse oficiosamente declara, em aplicação, apesar do atrás expendido, da ressalva inicial do artº 434º do CPP. O recurso será, pois, de rejeitar nesta parte, por manifestamente improcedente, considerando-se fixada definitivamente a matéria de facto.”
d) O ora reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro
(LTC), nos termos seguintes:
“Pretende-se que seja apreciada a inconstitucionalidade das seguintes normas:
1- Artigo 410, n.º 2 do C.P.P., na interpretação aplicada na decisão do Supremo Tribunal de Justiça, segundo a qual tais vícios não podem constituir objecto do recurso, estando fora do âmbito legal do recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
2- Artigo 163, nº. 1 do C.P.P., na interpretação dada na decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Tais normas violam, respectivamente as seguintes disposições constitucionais:
1) Artigo n.º 32º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, em vigor.
2) Artigo n.º 32º n.º 1 da C.R.P., em vigor. As questões da inconstitucionalidade foram suscitadas no Recurso.”
e) Sobre esse requerimento recaiu o seguinte despacho, em 12 de Março de
2004 [despacho reclamado]:
“Não admito o recurso agora interposto para o Tribunal Constitucional pelo recorrente A., dado que o mesmo não suscitou durante o processo a inconstitucionalidade de nenhuma norma do Código de Processo Penal, cuja interpretação em dado sentido ofendesse qualquer norma ou princípio constitucional, nomeadamente o art.º 410º n.º 2 do CPP, bem como art.º 163º do mesmo diploma legal. No recurso para o STJ, o recorrente limitou-se a arguir como violado o art.º 32º da CRP, no caso de existirem dúvidas quanto à existência de homicídio doloso ou negligente, devendo ser aplicado o princípio ‘in dubio pro reo’. Não indicou, porém, qual a norma que, em tal caso, interpretada de determinada maneira, violaria o referido normativo constitucional (cf. alegações de recurso do recorrente).”
3. Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, é pressuposto de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade interposto de decisões dos restantes tribunais ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, que a inconstitucionalidade – sempre referida a normas (na sua integralidade, em dada dimensão ou em determinada interpretação) porque, no nosso sistema, o recurso de constitucionalidade não é do tipo recurso de amparo
– haja sido “suscitada durante o processo” (citada alínea b) do n.º 1 do artigo
70º), ou seja, colocada “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”
(n.º 2 do artigo 72º da mesma Lei n.º 28/82). O recorrente só pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade “durante o processo” nos casos excepcionais ou anómalos em que não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal com os n.ºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II Série, de 28 de Maio de 1994).
Ora, o recorrente não suscitou, no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, qualquer questão de constitucionalidade relativamente às normas que agora refere no requerimento de interposição de recurso (Nem, aliás, relativamente a quaisquer outras). Limitou-se a defender que houve erro notório na apreciação da prova, cognoscível pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, e violação da força probatória conferida à perícia médica legal pelo artigo 163º do mesmo Código. A única referência que fez a normas ou princípios constitucionais é a de que “[n]o caso de existirem dúvidas quanto à existência de homicídio doloso ou negligente devia ser aplicado o princípio in dubio pro reo e a presunção de inocência do arguido, artº 32º da C.R.P., no sentido de a dúvida ser resolvido a favor do arguido”, quando censura o tribunal recorrido porque “ficcionou o dolo, quando toda a prova aponta no sentido da negligência”.
Como se afirma no despacho reclamado, nunca indicou qual a norma que, em tal caso, interpretada de determinada maneira, violaria o referido normativo constitucional. Se alguma imputação de inconstitucionalidade se puder descortinar no recurso do reclamante é ao próprio acórdão da Relação, ao dizer-se, na conclusão 20ª, que “[a] decisão recorrida [ ...] violou ainda o princípio in dubio pro reo, art 32 da C.R.P. [...]”. Porém, não podendo a fiscalização da constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional incidir sobre a decisão, mas sim sobre as normas que nela hajam sido aplicadas, essa crítica não cabe na via do recurso para este Tribunal.
Assim, por não ter sido suscitada perante o tribunal a quo, de modo processualmente adequado, a questão da constitucionalidade das normas de direito ordinário referidas no requerimento de interposição do recurso, não merece censura o despacho que, por falta do referido pressuposto, não admitiu o recurso para este Tribunal.
Acresce dizer – porque, se o acórdão devesse ser interpretado como o reclamante propõe, poderia pensar-se na ocorrência de uma daquelas situações excepcionais em que a jurisprudência do Tribunal tem vindo a admitir que a suscitação prévia não é exigível por não se verificar a razão que a justifica – que o n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal não foi aplicado na decisão recorrida com o sentido que o recorrente enuncia, isto é, com o entendimento segundo o qual “tais vícios não podem constituir objecto do recurso, estando fora do âmbito legal do recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça”. Efectivamente, as considerações que no acórdão recorrido se tecem sobre a delimitação dos poderes de cognição nos termos do artigo 434º do mesmo Código, [supra 2. c)] que, numa leitura isolada, poderiam induzir a essa conclusão – mas, então, a acusação de lesividade às garantias de defesa deveria centrar-se mais neste preceito do que no n.º 2 do artigo 410º – não impediram, o Supremo Tribunal de Justiça de concluir, face à fundamentação do acórdão da Relação, que a fixação da matéria de facto não enfermava de erro notório na apreciação da prova. Assim sendo, a “ratio decidendi” não reside na interpretação normativa que o reclamante submete ao juízo de constitucionalidade. Também por esta razão o recurso não pode ser admitido.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a reclamação, confirmando o despacho que não admitiu o recurso.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Lisboa, 11 de Maio de 2004
Vítor Gomes Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida