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Proc. n.º 429/03
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A. e B. intentaram no Tribunal da Comarca de Alcácer do Sal acção ordinária contra companhia de seguros C., pedindo que esta fosse condenada a reconhecer que foi citada para contestar uma acção cível intentada contra a aqui Ré, em
7/5/1993, já transitada em julgado, e que, de acordo com o decidido, seja condenada a pagar-lhes juros moratórios desde 7/5/1993 até 19/6/2001. O Tribunal da Comarca de Alcácer do Sal, por decisão de 25 de Janeiro de 2001, absolveu a ré da instância, por considerar verificada a excepção dilatória da falta de interesse em agir.
2. Inconformados com esta decisão os autores recorreram para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 22 de Janeiro de 2003, negou provimento ao recurso, tendo, embora por um fundamento diferente, confirmado a decisão agravada.
3. Novamente inconformados os autores recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 24 de Abril de 2003, julgou o recurso improcedente.
4. Foi desta decisão que foi interposto o presente recurso de constitucionalidade, através de um requerimento que tem o seguinte teor:
“[...] vêm por este meio interpor recurso para o Tribunal Constitucional. Com efeito, os recorrentes fundam este recurso nos seguintes pressupostos:
1 – Os tribunais comuns que julgaram este litígio recusaram a aplicação de normas constantes de actos legislativos (nomeadamente disposições do Código de Processo Civil) com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei de valor reforçado – art. 70º n.º 1 c) da Lei do Tribunal Constitucional.
2 – Aplicaram normas cuja ilegalidade foi suscitada durante o processo com o fundamento referido na alínea c) do art. 70º n.º 1 nos termos da alínea f) da mesma disposição.
3 – Recusaram a aplicação de normas constantes de acto legislativo com o fundamento na sua contrariedade com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
4 – Nos termos do n.º 2 do art. 75º-A os recorrentes vêm indicar as normas e os princípios constitucionais que se consideram violados: a) A disposição do art. 8º, n.º 3, art. 805º n.º 3, art. 561º todos do Código de Processo Civil, n.ºs 4 e 5 do art. 20º da CRP. b) Os recorrentes suscitaram a questão de inconstitucionalidade e da ilegalidade nas alegações quer para a Relação de Évora quer para o Supremo Tribunal de Justiça”.
5. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento do recurso. É o seguinte, na parte decisória, o seu teor:
“[...] 5. Cumpre, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do objecto do recurso, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. artigo 76º, n.º 3, da LTC). O presente recurso vem interposto ao abrigo da alíneas c) e f) do n.º 1 do artigo 70º da LTC. Mas, como vai sumariamente ver-se, é por demais evidente que não estão preenchidos os pressupostos de que depende a admissibilidade dos recursos ali previstos.
5.1. O recurso previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 70º da LTC. O recurso previsto na alínea c) do n.º 1 da Lei do Tribunal Constitucional cabe
“das decisões dos tribunais, que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado”. Trata-se, em suma, de um recurso de legalidade (e não de constitucionalidade) que tem como pressupostos de admissibilidade, entre outros, os seguintes: i) que o tribunal tenha recusado a aplicação de norma constante de acto legislativo; ii) que o tenha feito com fundamento na sua ilegalidade (da norma a que recusou aplicação) por violação de lei de valor reforçado. Ora, in casu, é claro que não estão preenchidos aqueles pressupostos de admissibilidade do recurso, por ser evidente que o Supremo Tribunal de Justiça não recusou aplicar qualquer preceito, com fundamento em qualquer juízo de ilegalidade desse preceito por violação de lei de valor reforçado.
5.2. O recurso previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da LTC. Mas também não estão preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea f), do n.º 1, do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Com efeito, esta alínea refere-se aos recursos de decisões que “apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e)”. É, porém, manifesto, que não foi aplicada pela decisão recorrida qualquer norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com fundamento em: i) violação de lei de valor reforçado (alínea c); ii) violação do estatuto de uma região autónoma ou de lei geral da República – no caso de norma constante de diploma regional – (alínea d); ou, finalmente, iii) violação do estatuto de uma região autónoma – no caso de norma emanada de
órgão de soberania – (alínea e). Ora, in casu, é também manifesto que os recorrentes não suscitaram, durante o processo e de forma processualmente adequada, qualquer questão de ilegalidade normativa no sentido desta alínea f). Designadamente não colocaram, ao contrário do que alegam, a questão da ilegalidade de qualquer norma com fundamento na violação de lei de valor reforçado.
É certo que, a dado passo da alegação de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, os recorrentes se referem aos n.ºs 4 e 5 do artigo 20º da Constituição. Mas, como é evidente, a “lei de valor reforçado” a que se referem as alíneas c) ou f) do n.º 1 do artigo 70º da LTC não é a Constituição, pois, nesse caso, não estamos já perante uma questão de ilegalidade mas de eventual inconstitucionalidade normativa e, nessa hipótese, o recurso que eventualmente caberia seria o previsto nas alíneas a) ou b do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional e não é nenhum destes que vem interposto. Acresce que, no passo em que é feita referência ao artigo 20º da Constituição, não é suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa, mas apenas uma alegada inconstitucionalidade reportada à própria decisão então recorrida. Em face do exposto, e sem necessidade de maiores considerações, torna-se evidente que não pode conhecer-se do objecto do recurso que os recorrentes pretenderam interpor”.
6. É desta decisão que vem interposta a presente reclamação para a Conferência, que os reclamantes concluem da seguinte forma:
“a) A remessa deste processo para o Tribunal Constitucional, sem aguardar pelas alegações dos recorrentes e do recorrido, constitui nulidade processual prevista no artigo 203º do Código de Processo Civil; b) O despacho proferido pelo senhor Conselheiro Relator, violou igualmente o disposto nos artigos 20º, n.º 1 da C.R.P., art. 3º, n.º 3 do CPC e art. 201º, n.º 1, do mesmo diploma; c) O mesmo despacho viola o preceito do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, por, intempestivamente, proferido. d) Nos termos do art. 203º do CPC, aplicável por omissão da Lei do Tribunal Constitucional, vêm os recorrentes arguir a nulidade do despacho por determinante para o exame da decisão da causa (cfr. art. 201º n.º 1 parte final do CPC). e) Devendo ser, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do art. 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, produzido acórdão que julgue procedente a presente reclamação anulando o despacho reclamado”.
7. Por parte da recorrida não foi apresentada, dentro do prazo legal, qualquer resposta.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
III – Fundamentação
8. Na decisão sumária ora reclamada decidiu o Relator não ser possível conhecer do objecto do recurso interposto pelos ora reclamantes ao abrigo do disposto nas alíneas c) e f) do n.º 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por, como então se demonstrou, ser evidente que não estavam preenchidos os pressupostos de admissibilidade dos recursos ali previstos.
Com a presente reclamação contestam os reclamantes, fundamentalmente, que aquela decisão pudesse ter sido proferida sem que os mesmos tivessem previamente sido notificados para alegar. Mas, como é evidente, tal entendimento assenta num evidente desconhecimento por parte dos ora reclamantes da tramitação processual a que estão subordinados os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade a que se refere o artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Com efeito, como resulta expressamente do preceituado nos artigos 78º-A, n.º 5 e 79º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, as alegações nos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade ou da legalidade “são sempre produzidas no Tribunal Constitucional” (cfr. artigo 79º, n.º 1, da LTC), e apenas “quando não deva aplicar-se o disposto no n.º 1” do artigo 78º-A, da LTC (cfr. artigo 78º-A, n.º 5 da LTC); isto é, quando não deva proferir-se decisão sumária no sentido da impossibilidade de conhecimento do recurso.
Andou, por isso, bem o Tribunal a quo ao remeter o recurso para o Tribunal Constitucional e o Relator do processo já neste Tribunal ao proferir decisão sumária sem que previamente tivessem sido produzidas alegações pelos ora reclamantes.
Alegam ainda os reclamantes que a decisão reclamada viola o disposto no artigo
20º, n.º 1, da Constituição. Desta questão, porém, nem sequer se conhecerá, uma vez que, como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, este só conhece de questões de constitucionalidade normativa (i.e., reportadas a normas jurídicas) e não de questões de constitucionalidade das decisões que aplicam tais normas.
Assim, pelas razões constantes da decisão reclamada, que em nada são abaladas pela reclamação apresentada, é efectivamente de não conhecer do objecto do recurso que os ora reclamantes pretenderam interpor.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 24 de Novembro de 2003
Gil Galvão
Bravo Serra Luís Nunes de Almeida