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Processo n.º 1056/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam em conferência na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Inconformados com o despacho do Juiz de Instrução Criminal, de 9 de Agosto de
2006, que lhes manteve a medida de coação de prisão preventiva, os arguidos A. e
B., recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa. Este Tribunal, por acórdão
de 19 de Outubro de 2006, decidiu “conceder parcial provimento ao recurso
interposto pelos arguidos” e, em consequência, “declarar nulos e de nenhum
efeito os autos de constituição de arguido [...] bem como os termos de
identidade e residência prestados pelos ora recorrentes, determinando-se a
repetição no tribunal recorrido dos termos de identidade e residência, com
observância da formalidade que foi preterida”. Quanto ao mais, designadamente
quanto à questão da manutenção da prisão preventiva, decidiu aquele Tribunal
manter o despacho recorrido.
2. Na sequência, os arguidos reclamaram para a Conferência tendo, para o que
agora importa, afirmado o seguinte:
“[…] Acresce que o douto entendimento de V. Exas em manter a prisão preventiva
dos ora reclamantes, depois de se ter declarado a invalidade do acto de
constituição de arguido, afronta directamente o preceituado no n.º 4 do art.27°
conjugado com o art.32 n.°1, ambos da Constituição da República Portuguesa, com
referência ao art.191 e 192 n.°1 do CPP, isto no sentido de não estarem
garantidas todos os meios de defesa do arguido, conquanto os ora reclamantes sem
este estatuto não se poderem socorrer dos direitos consagrados no art. 61° do
CPP que dependem directamente do acto de constituição de arguido.
Ou seja, no nosso entendimento é materialmente inconstitucional a interpretação
conjugada doa arts. 57º, 58 n.°1 al a) e b), 61°,122°,191° n.°1, 192° n.°1 e
212° n.° al a) todos do CPP, no sentido de manter a medida de coacção processual
de prisão preventiva após a declaração de invalidade do acto de constituição de
arguido, conquanto a informação que deveria ser dada a quando da detenção não
ter sido prestada legalmente e porque a imposição das medidas de coacção
processual depende da prévia constituição como arguidos dos visados. [...]”
3. Esta reclamação foi interpretada pelo Tribunal da Relação de Lisboa como um
pedido de “alteração” do anterior Acórdão de 19 de Outubro de 2006 e, como tal,
indeferida, com fundamento em que o que os reclamantes pretendiam não era o
esclarecimento de qualquer obscuridade ou ambiguidade do acórdão recorrido, mas
uma modificação essencial do decidido, o que foi considerado como estando “fora
do escopo legal do meio processual” utilizado pelos reclamantes; a saber, o
pedido de correcção da sentença previsto no artigo 380º do Código de Processo
Penal.
4. Foi, então, interposto o seguinte recurso para o Tribunal Constitucional:
“[…] não se conformando com o douto acórdão de 19-10-2006, dele reclamaram,
tendo este douto tribunal emitido o acórdão datado de 16-11-2006 em que negaram
provimento ao requerido, vêm, nos termos da alínea b) do n.°1 do art.70 da Lei
28/82 de 15 de Novembro, dela recorrer para o Tribunal Constitucional, por se
entender que está enferma de ilegalidade e inconstitucionalidade a interpretação
conjunta tida das normas constantes dos art. 58 n.°1 al. a) e b), 61°, 122°,
191° n.°1, 192° n.°1 e 212° n.° al. a) todos do CPP por violar directamente os
preceitos constitucionais dispostos nos art.18°, 27° n.° 4 e 32° n.º l.
A interpretação dada aos referidos preceitos fundamenta a decisão em crise e
cuja constitucionalidade e legalidade se requer que seja apreciada, tendo sido
suscitada esta questão a quando da notificação do acórdão datado de 19-10-2006
por via de reclamação apresentada em 27-10-2006”.
5. Neste Tribunal, o relator proferiu, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento
do objecto do recurso. É o seguinte, na parte agora relevante, o seu teor:
“[...] Importa, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do objecto do
recurso, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal
Constitucional (cfr. art. 76º, nº 3, da LTC). Vejamos.
O recorrente deve, logo no requerimento de interposição do recurso, indicar com
clareza a decisão de que pretende recorrer. Ora, lido o requerimento de
interposição do recurso, que supra já transcrevemos, verifica-se que os
recorrentes o não fazem, não identificando se pretendem recorrer para este
Tribunal da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 19 de
Outubro ou se da proferida em 16 de Novembro de 2006. Faltando tal indicação,
poderia colocar-se a questão da eventual aplicação do disposto no n.º 5 do
artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional. Acontece, porém, que, no caso,
ainda que fosse possível lançar mão do convite a que se refere aquele n.º 5, tal
se não justifica, por força do princípio da limitação dos actos processuais,
contido no artigo 137º do Código de Processo Civil. É que, como de seguida
sumariamente se demonstrará, em qualquer dos casos o recurso nunca seria de
admitir.
5.1. Na verdade, no caso de os recorrentes pretenderam recorrer do acórdão
proferido em 16 de Novembro de 2006, tal recurso não é de admitir porquanto este
acórdão manifestamente não aplicou, como ratio decidendi, os preceitos por eles
indicados no requerimento de interposição do recurso. De facto, o Tribunal da
Relação de Lisboa limitou-se, então, a, com base no disposto no artigo 380º do
Código de Processo Penal, que assim constitui o seu verdadeiro fundamento
normativo, concluir que a questão colocada pelos então reclamantes extravasava o
“escopo legal do meio processual” - pedido de correcção da decisão - por eles
utilizado.
5.2. Mas também não pode, embora neste caso por razão diferente, conhecer-se do
objecto do recurso, se se entender que o mesmo vem interposto da decisão
proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 19 de Outubro de 2006. É que,
como refere expressamente o artigo 72º, n.º 2, da LTC, o recurso previsto na
alínea b), do n.º 1, do artigo 70º, “só pode ser interposto pela parte que haja
suscitado a questão de constitucionalidade [...] de modo processualmente
adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este
estar obrigado a dela conhecer”, constituindo desde há muito jurisprudência
assente neste Tribunal (veja-se, entre inúmeros nesse sentido, os Acórdãos n.ºs
62/85, 90/85 e 450/87, in Acórdãos do Tribunal Constitucional., 5º vol., p. 497
e 663 e 10º vol., pp. 573, respectivamente) que, em princípio, tal implica que a
questão de constitucionalidade seja suscitada antes da prolação da decisão
recorrida. A razão de ser desta disposição é evidente e tem sido reiteradamente
enunciada pelo Tribunal Constitucional: visa que o tribunal recorrido seja
colocado perante a questão de constitucionalidade da norma que aplica como
fundamento da decisão e que o Tribunal Constitucional apenas sobre tal questão
se pronuncie por via de recurso, não se substituindo ao tribunal recorrido no
conhecimento da questão de constitucionalidade fora dessa via. Em consequência
desta jurisprudência, tem o Tribunal afirmado repetidamente que, em regra, o
pedido de reforma da decisão não constitui meio ou momento processualmente
adequado para suscitar, pela primeira vez, a questão de inconstitucionalidade
que o recorrente pretende ver apreciada.
Ora, no caso, os próprios recorrentes afirmam no requerimento de interposição do
recurso para este Tribunal que suscitaram a questão da inconstitucionalidade das
normas que agora pretendem ver apreciadas na reclamação do Acórdão de 19 de
Outubro de 2006, que apresentaram em 27 de Outubro de 2006, o que, de acordo com
a jurisprudência antes referida, obsta ao conhecimento do recurso que agora
pretenderam interpor. Isso mesmo, aliás, já havia sido notado pelo Desembargador
Relator no despacho que admitiu o recurso, o qual, não chegando embora a extrair
daí as devidas consequências, não deixara de notar que “[…] o tribunal recorrido
não aplicou no acórdão posto em crise, qualquer norma cuja inconstitucionalidade
tivesse sido arguida no processo em tempo útil”.
6. Inconformados, vieram os recorrentes, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A,
nº 3, da LTC, reclamar para a Conferência, afirmando, nomeadamente, o seguinte:
“[...] No entendimento dos ora reclamantes, a decisão do Tribunal da Relação de
Lisboa datada de 19 de Outubro de 2006 está enferma de interpretação
inconstitucional e ilegal [...].
[...] Ora, se a questão da constitucionalidade surge exactamente no momento em
que o Tribunal da Relação de Lisboa emite o acórdão datado de 19 de Outubro de
2006, só aqui se pode questionar o mérito da constitucionalidade das normas que
aplicou como fundamento de direito.
Por tal decisão, no entendimento dos ora reclamantes, se basear numa
interpretação inconstitucional e ilegal de leis vigentes, dessa decisão
reclamaram, colocando, perante o emissor da mesma, a questão da
inconstitucionalidade da interpretação das normas que serviram de fundamento à
decisão.
Só nessa altura, e perante a decisão tomada, se poderia suscitar a questão da
inconstitucionalidade e somente por via da reclamação apresentada relativamente
ao aludido acórdão datado de 19 de Outubro de 2006. Como já referido foi, este é
insusceptível de recurso.
Salvo melhor opinião, desta forma, encontra-se cumprido o requisito Imposto pelo
art. 70°, n.°1, alínea b) e n.°2 da Lei do Tribunal Constitucional.
[...]
Contudo, o fundamento para não se conhecer o objecto do recurso em análise,
baseia-se somente na não identificação, com clareza, da decisão de que se
pretende recorrer.
Com o muito e devido respeito pela douta decisão sumária ora em crise, a
identificação da decisão é notória, cumprindo na íntegra o previsto no art.75°A,
n.°2 da Lei do Tribunal Constitucional e o exigido pelo art.71°, n.°1 da mesma
lei.
A referência que se faz ao Acórdão datado de 19 de Outubro serve meramente para
enquadrar funcionalmente o recurso interposto da decisão da reclamação
apresentada junto do Tribunal da Relação.
Pois, como já referido foi, apenas nessa altura, e porque só ai o era possível
fazer, foi o Tribunal da Relação de Lisboa confrontado com a questão da
constitucionalidade/ilegalidade de que se requereu a apreciação, e que constitui
fundamento do recurso apresentado neste Venerando Tribunal.
[...]
Pois, pela sua natureza expedita, a resposta a uma reclamação de uma decisão,
uma vez negado provimento, não encerra em si toda a fundamentação de um acórdão,
no entanto, renova a sua fundamentação por via de remissão e adita,
sumariamente, os motivos da negação ao aí requerido.
Assim, é esta a última decisão tomada pelo tribunal ora recorrido, e é dela que
se recorre. [...]”
7. Notificado o Ministério Público reclamado, veio sustentar que “a presente
reclamação é manifestamente improcedente”, já que “a argumentação do reclamante
em nada abala os fundamentos da decisão reclamada, no que toca à evidente
inverificação dos pressupostos do recurso [...]”.
Dispensados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
III – Fundamentação
8. Na decisão sumária reclamada o Tribunal, ao contrário do que parece terem
entendido os ora reclamantes, concluiu pela impossibilidade de conhecer do
objecto do recurso, não porque estes não tenham identificado, com clareza, a
decisão de que pretendiam recorrer, mas antes, essencialmente, porque:
(i) no caso de se entender que os ora reclamantes pretenderam recorrer do
acórdão proferido em 16 de Novembro de 2006, tal recurso não é de admitir
porquanto este acórdão manifestamente não aplicou, como ratio decidendi, os
preceitos por eles indicados no requerimento de interposição do recurso;
(ii) no caso de se entender que o mesmo vem interposto da decisão proferida pelo
Tribunal da Relação de Lisboa em 19 de Outubro de 2006, o recurso não é de
admitir porque a questão de constitucionalidade não foi suscitada antes da
prolação da decisão recorrida.
9. Com a presente reclamação os reclamantes, afirmando que vêm recorrer do
acórdão de 16 de Novembro de 2006, pretendem demonstrar “que se encontram
cumpridos os pressupostos e requisitos legalmente estabelecidos na Lei do
Tribunal Constitucional para apreciação do recurso em apreço.” Não lhes assiste,
porém, como se verá já de seguida, qualquer razão.
Na verdade, os ora reclamantes pretendiam que o Tribunal Constitucional
apreciasse a constitucionalidade da “interpretação conjunta tida das normas
constantes dos art. 58 n.°1 al. a) e b), 61°, 122°, 191° n.°1, 192° n.°1 e 212°
n.° al. a) todos do CPP por violar directamente os preceitos constitucionais
dispostos nos art.18°, 27° n.° 4 e 32° n.º 1”. Ora, é por demais evidente que o
acórdão recorrido não aplicou tais normas, nem directa nem indirectamente, nem
explícita nem implicitamente, nem por remissão, limitando-se a indeferir a
reclamação, com fundamento em que o que os reclamantes pretendiam não era o
esclarecimento de qualquer obscuridade ou ambiguidade do acórdão recorrido, mas
uma modificação essencial do decidido, o que foi considerado como estando “fora
do escopo legal do meio processual” por eles utilizado, a saber, o pedido de
correcção da sentença previsto no artigo 380º do Código de Processo Penal.
Tanto basta para que, reiterando as razões constantes da decisão reclamada, que
em nada são abaladas pela reclamação apresentada, confirmar o julgamento que ali
se formulou no sentido da impossibilidade de conhecer do objecto do recurso
E nem se diga que, assim, está inviabilizado, em casos paralelos, o recurso para
o Tribunal Constitucional. É que, como se afirmou no acórdão n.º 499/2006,
disponível na página Internet do Tribunal em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/,
“[...] ao contrário do que a recorrente parece crer, em regra não é apenas após
a efectiva aplicação de uma norma por uma decisão judicial (no caso, a decisão
recorrida) que surge a oportunidade processual de suscitar a questão da sua
inconstitucionalidade. Sendo previsível a aplicação de uma norma – ou a sua
aplicação com um determinado sentido normativo – tem efectivamente ao recorrente
o ónus de, antecipando essa possível aplicação, confrontar desde logo o Tribunal
que há-de proferir a decisão recorrida com a questão da sua
inconstitucionalidade. Com efeito, como este Tribunal tem afirmado em inúmeras
ocasiões, recai sobre as partes o ónus de anteciparem as diversas possibilidades
interpretativas susceptíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão e
utilizarem as necessárias precauções, de modo a poderem, em conformidade com a
orientação processual considerada mais adequada, salvaguardar a defesa dos seus
direitos (cfr., nesse sentido, entre muitos outros, o acórdão nºs 479/89,
acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º vol., p. 149).”
III – Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta, por cada um.
Lisboa, 3 de Janeiro de 2007
Gil Galvão
Bravo Serra
Artur Maurício