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Processo n.º 312/12
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 269/2012:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, em 16 de fevereiro de 2012 (fls. 1097 a 1099), ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido, em conferência, pela 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em 31 de janeiro de 2012 (fls. 1086 a 1089).
2. Face à ausência de indicação – conforme lhe era exigido, pelo n.º 1 do artigo 75º-A da LTC – da norma cuja inconstitucionalidade se pretendia ver fiscalizada, o Relator junto do tribunal recorrido proferiu, em 6 de março de 2012 (fls. 1100) despacho de convite ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição de recurso, ao abrigo do n.º 5 do supra referido preceito legal. Na sequência desse convite, o recorrente viria a esclarecer, em 19 de março de 2012 (fls. 1102 a 1105) que pretendia ver apreciada a constitucionalidade da norma extraída do artigo 127º do Código de Processo Penal (CPP) “se interpretado na dimensão normativa aplicada no caso dos autos, em que se entende que a mera de existência de videogramas com figuras semelhantes ou parecidas com o recorrente (e na ausência de qualquer outro indício adicional) pode motivar/validar a condenação do mesmo em prisão efetiva” (fls. 1102 e 1103), por alegada violação das garantias de defesa (artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa - CRP) e do direito ao contraditório em processo penal (artigo 32º, n.º 5, da CRP).
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
3. O recurso foi admitido por despacho do Relator junto do tribunal “a quo”, proferido em 27 de março de 2012 (fls. 1106). Porém, por força do n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que deve começar-se por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Se o Relator verificar que algum, ou alguns deles, não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
4. Desde logo, o modo como o recorrente fixou o objeto do presente recurso, em sede de requerimento aperfeiçoado, nem sequer corresponde a uma efetiva dimensão normativa do preceito legal contra cuja inconstitucionalidade se protesta. Com efeito, o artigo 127º do CPP limita-se a consagrar o princípio da livre apreciação da prova e o recorrente não aparenta discordar da compatibilidade de tal princípio com a Lei Fundamental. Sucede apenas que o recorrente discorda do juízo concreto que o tribunal de primeira instância formulou acerca da prova que sustentou a decisão condenatória. Ora, como é evidente, a discordância manifestada incide sobre matéria cujo conhecimento não cabe ao Tribunal Constitucional.
Acresce ainda que, mesmo que se admitisse a natureza normativa do objeto do presente recurso – o que já se recusou e por mera exaustão de fundamentação se pondera –, sempre se concluiria que a decisão recorrida nunca aplicou a norma extraída do artigo 127º do CPP em sentido tal que seria admissível a condenação de um arguido com fundamento exclusivo numa similitude física entre aquele e uma pessoa alvo de gravação videográfica. Ora, como resulta por demais evidente da decisão recorrida, tal nunca foi afirmado. Pelo contrário, não só se considerou que foi possível identificar, sem qualquer dúvidas razoável, o recorrente através da comparação entre as gravações de imagens de videovigilância e outras fotografias existentes nos ficheiros policiais (fls. 1056 e 1057) – o que, desde logo, afasta uma interpretação que assentasse numa mera similitude de aparência –, como se deu por provado, através do cruzamento de informações sobre levantamentos e transações efetuadas com cartões de Multibanco, que o recorrente surgia presente nas imagens gravadas relativas aos terminais onde tais operações ocorreram.
Como tal, a (pretensa) interpretação normativa nunca foi efetivamente aplicada pela decisão recorrida, nos precisos e restritos termos em que o recorrente a configurou, pelo que, ao abrigo do artigo 79º-C da LTC, sempre se tornaria forçoso concluir pela impossibilidade de conhecimento do objeto do presente recurso.
III – DECISÃO
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se não conhecer do objeto do recurso interposto.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s para o recorrente, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.»
2. Inconformado com a decisão proferida, o recorrente veio deduzir o seguinte requerimento:
«1 – A fls. 3 da douta decisão sumária considera-se que o arguido não foi condenado com fundamento exclusivo numa similitude física entre este e uma pessoa alvo de gravação videográfica”. (a linhas 2-3 de fls. 3)
2 – Ora, é precisamente esse fator que decorre do conteúdo do acórdão condenatório da instância: nem impressões digitais, nem impressões de ADN, nem testemunhas oculares que tenham reconhecido o arguido, nem a confissão deste ou de outro arguido, nenhuma dessas provas vem referida no acórdão.
3 – Aliás, o “parecer” ou a convicção” dos elementos da PSP (na ausência de qualquer conhecimento direto dos apontados crimes: os agentes não presenciaram qualquer ilícito do recorrente), não passam disso mesmo: “pareces” e “convicções” de agentes policiais para quem, normalmente, “quem faz um cesto, faz um cento”, sendo nula a sua razão de ciência em quaisquer dados com um mínimo de objetividade (o que decorre da consulta da matéria provada pela instância).
4 – Por isso se entendeu ter a instância feito interpretação inconstitucional do art. 127º do CPP, ao fundamentar a condenação do recorrente exclusivamente com o argumento de que o arguido (presente na ausência), era fisicamente parecido com o suspeito presente nas ditas gravações videográficas, E outra prova material/documental não foi produzida na audiência.
Por isso, por se estar em tempo e se deter legitimidade, requer-se com fundamento no disposto no art. 669º 1 do CPC (e art. 4º do CPP – de aplicação subsidiária) a remoção da apontada ambiguidade ou o esclarecimento que se entenda por conveniente.» (fls. 1129 e 1130)
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público veio responder nos seguintes termos, que ora se sintetizam:
«1º
Desde logo, o requerente só aparentemente apresenta um pedido de esclarecimento, ou de aclaração.
Na realidade, subjacente à sua argumentação, está a contestação do bem fundado da Decisão Sumária 269/12, o que leva a que o seu requerimento deva, antes, ser entendido como uma reclamação para a conferência (cfr. a este propósito, designadamente, os Acórdãos 716/04, 222/09, 219/10 e 390/10 deste Tribunal Constitucional).
(…)
7º
Assim, compulsando a forma como se encontra redigido o fundamento do recurso de constitucionalidade, facilmente se intui que o arguido, no fundo, questiona fundamentalmente a forma como o tribunal de segunda instância (e o mesmo se dirá, também, do tribunal de primeira instância) apreciou a matéria de facto.
8º
Está, pois, fundamentalmente, em causa o concreto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, de 15 de novembro de 2011 (cfr. fls. 1025-1066 dos autos), ou seja, a forma como determinou a sua livre convicção quanto aos factos submetidos à sua apreciação (cfr. designadamente fls. 1042-1047 dos autos) e confirmou, nessa medida, o Acórdão de primeira instância, de 10 de janeiro de 2011 (cfr. fls. 866-889 dos autos) proferida no Juízo de Grande Instância Criminal do Tribunal Judicial da Comarca da Grande Lisboa - Noroeste, que condenou o arguido, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 anos e 6 de prisão.
9º
Ora, o tribunal recorrido explicitou, devida e fundadamente, a forma como apreciou a prova submetida à sua consideração, não cabendo, aliás, a este Tribunal Constitucional, sindicar a forma como as instâncias apreciam a prova ou fixam a sanção aplicável, uma vez que só lhe cabe apreciar a constitucionalidade de normas jurídicas.
(…)
12º
O arguido acaba, assim, por não rebater, no seu pretenso pedido de aclaração, a dupla argumentação constante da Decisão Sumária reclamada, limitando-se a repetir argumentos já anteriormente apresentados nos presentes autos.
13º
No fundo, o Réu pretende manifestar a sua discordância pelo sentido do Acórdão condenatório, do Tribunal da Relação de Lisboa, deixado incólume pela Decisão Sumária agora reclamada.
Está no seu direito, mas tal discordância não significa, como pretende fazer crer, que tenha sido aplicada, nos presentes autos, a dimensão normativa que imputa ao art. 127 do CPP.
14º
Por todo o exposto, crê-se que o pretenso pedido de aclaração, em apreciação, não merece provimento, não havendo razões para alterar o sentido da Decisão Sumária 269/12, que determinou a sua apresentação.»
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A título prévio, importa registar que, sob um aparente pedido de esclarecimento, o reclamante limita-se a manifestar a sua discordância face à decisão sumária proferida, não manifestando qualquer concreta dúvida quanto ao teor da respetiva fundamentação. Ora, sendo evidente que o reclamante pretende apenas que seja reapreciado o sentido da decisão anteriormente tomada, opta-se por proceder à convolação do referido pedido em reclamação, nos termos e para os efeitos do n.º 3 do artigo 78º-A da LTC, na linha do entendimento consolidado neste Tribunal por jurisprudência constante (a mero título de exemplo, ver os Acórdãos n.º 716/2004, n.º 222/2009, n.º 219/2010 e n.º 390/2010, disponíveis in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). Essa é a solução que melhor garante o direito de acesso do recorrente à justiça constitucional e, em simultânea, o interesse público na célere tramitação processual.
Quanto à divergência manifestada pelo reclamante, resta apenas constatar que a mesma nada acrescenta à posição que foi sendo por si sustentada, ao longo dos autos. Com efeito, o reclamante não logra abalar nenhum dos fundamentos da decisão reclamada, seja a falta de dimensão normativa do objeto do recurso, seja a ausência de identidade entre o objeto do recurso e a interpretação normativa efetivamente adotada pelo tribunal recorrido. Com efeito, o reclamante limita-se a reiterar considerações acerca do juízo sobre matéria de fato proferido pelos tribunais de primeira instância (e, posteriormente, confirmado pelo tribunal de recurso), discordando do modo como foi decidida a matéria dada por provada.
Por conseguinte, face à ausência de argumentos que possam colocar em crise a fundamentação da decisão reclamanda, mais não resta do que confirmá-la integralmente.
III – Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Fixam-se as custas devidas pelo recorrente em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 26 de setembro de 2012. – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Rui Manuel Moura Ramos.