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Processo n.º 733/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que são recorrentes A., S.A., B., S.A., C., S.A., D., E. e F., e recorrida a Autoridade da Concorrência (AdC), foram interpostos dois recursos de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
O primeiro recurso foi interposto, a fls. 209, do despacho do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.09.2010, com vista à apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 55.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro.
O segundo recurso foi interposto, a fls. 216, da referida sentença do Tribunal de Comércio de Lisboa, com vista à apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 26.º, n.º 2, da Lei n.º 18/2003, de 11 de junho (Lei da Concorrência, doravante LdC).
2. Dos autos emergem os seguintes elementos relevantes para a presente decisão:
? As ora recorrentes recorreram para o Tribunal de Comércio de Lisboa do despacho interlocutório da AdC de 19.03.2009, proferido no âmbito de processo de contraordenação, que indeferiu a presença de advogados constituídos pelos arguidos na audiência oral da coarguida G..
? Por sentença do Tribunal de Comércio Lisboa, de 04.01.2010, foi julgado improcedente o recurso e mantida a decisão da AdC, não se declarando a nulidade dos atos subsequentes ao despacho recorrido (fls. /35/61).
? Inconformadas, A. e Outros interpuseram recurso desta sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual não foi admitido pelo tribunal recorrido (fls. 186).
? Ainda inconformadas A. e Outros reclamaram deste despacho do Tribunal de Comércio de Lisboa para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo a reclamação sido indeferida por decisão do Vice-Presidente desta Relação, datada de 29.09.2010 (fls. 199 e s.).
? Desta decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, as recorrentes interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, para apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 55.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 433/82 (fls. 209).
? E, ao abrigo da mesma norma, interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional da supra referida sentença do TCLx (de 04.01.2010), para apreciação da constitucionalidade da norma do art. 26.º. n.º 2, da Lei n.º 18/2003 (fls. 216).
? No Tribunal da Relação de Lisboa foi proferido despacho, em 15.10.2010, com o seguinte teor: «Admito o recurso para o Tribunal Constitucional dado que o mesmo foi tempestivamente interposto, a parte tem legitimidade para recorrer e a decisão é dele suscetível (…)» (fls. 223).
? Remetido o processo ao Tribunal Constitucional, o primitivo Relator proferiu despacho, em 24.11.10, nos seguintes termos:
«Notifique-se para alegações, sendo certo que se afigura, apenas, de conhecer o recurso interposto da decisão do Tribunal de Comércio de Lisboa, no que concerne ao artigo 26.º, n.º 2, da Lei n.º 18/2003, de 11 de junho.
Quanto ao recurso interposto do artigo 55.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, a sua improcedência é manifesta face à jurisprudência reiterada deste TC.»
? As recorrentes apresentaram alegações apenas quanto à norma do artigo 26.º, n.º 2, da Lei n.º 18/2003 (fls. 230/258)
? A recorrida AdC contra-alegou quanto à mesma norma (fls. 325 e s.).
? Por despacho de 22.02.2011 do primitivo Relator, foi suscitado o não conhecimento do objeto do recurso referente a esta norma do artigo 26.º, n.º 2, da Lei 18/2003 (cfr. fls. 350).
- As recorrentes responderam a este despacho, pugnando pelo conhecimento do objeto do recurso (fls. 351)
- Por despacho de 05.05.2011, o primitivo Relator proferiu despacho considerando que o recurso respeitante à norma do artigo 26.º, n.º 2, não havia sido admitido pelo Tribunal de Comércio de Lisboa que havia proferido a decisão nele recorrida (fls. 367).
- Por despacho de 18.05.2011, o Tribunal de Comércio de Lisboa pronunciou-se no sentido de não existir qualquer despacho a proferir, entendendo que os recursos para o Tribunal Constitucional foram interpostos no Tribunal da Relação de Lisboa, que se pronunciou sobre a sua admissibilidade (fls. 372 e s.)
- As recorrentes vieram pronunciar-se sobre o supracitado despacho de fls. 367 (fls. 378/380).
- Em 26.05.2011, o primitivo Relator proferiu despacho no sentido de nada haver a aclarar e reiterou a necessidade de remessa do processo ao Tribunal de Comércio de Lisboa, para proferir despacho de admissão ou rejeição do recurso (fls. 389).
- Por despacho de 20.06.2011, o Tribunal de Comércio de Lisboa admitiu o recurso interposto a fls. 216, em cumprimento do despacho do Relator no Tribunal Constitucional (fls. 394).
- Em 04.01.2012, o processo foi redistribuído neste Tribunal Constitucional, em virtude da cessação de funções do primitivo Relator.
3. Nas suas alegações, as recorrentes concluem o seguinte:
«1. A questão que se coloca no presente recurso é a de saber se a interpretação do artigo 26.° n.°2 da LdC no sentido de que a aludido disposição não confere aos coarguidos o direito de assistir e participar na audiência oral prevista naquele dispositivo, quando solicitada por outro Arguido, viola o disposto nos artigos 2.°, 20° n.ºs 1, 2 e 4, 32.° n.°s 3 e 10 da Constituição da República Portuguesa.
Inconstitucionalidade por violação do artigo 32.° n.°10 da Constituição da República Portuguesa
II. O artigo 32.° n.° 10 da Constituição do República Portuguesa consagra que nos processos de contraordenação são assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa, sendo, assim, absolutamente proibida a aplicação de qualquer coima ou sanção acessória sem que ao Arguido seja garantida a possibilidade de se defender.
III. A reconhecida inexigibilidade de estrita equiparação entre o ilícito contraordenacional e o ilícito criminal e respetivos processos é conciliável com a necessidade de serem observados certos princípios comuns, designadamente o princípio do contraditório que deverá ser aplicado logo na fase administrativa do processo de contraordenação (Acórdão n.° 659/2006).
IV. Há, assim, nos processos sancionatórios, um núcleo essencial e intocável de respeito pelo princípio do contraditório que impede a prolação de decisão sem ter sido dada ao Arguido a oportunidade de “discutir, contestar e valorar” (Acórdão n.° 278/99).
V. O princípio do contraditório abrange o direito de o Arguido intervir e de se pronunciar quanto a todos os elementos de prova e argumentos jurídicos trazidos ao processo, influindo “em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”.
VI. Visa este princípio atribuir ao Arguido a oportunidade de tomar posição, a todo o momento, sobre o material que possa ser feito valer processualmente contra si, e garantir-lhe uma relação de imediação com as provas.
VII. Só através da efetiva assistência e participação na produção de prova, bem como dos demais elementos relevantes para o tomada da decisão final que podem e devem ser valorados nesta, exercerá o Arguido, cabalmente, o seu direito de defesa.
VIII. Assim, no decurso da fase administrativa do processo de contraordenação é constitucionalmente imposto que o Arguido seja admitido o intervir ativamente na decisão final que vier a ser proferida pela autoridade administrativa, sendo-lhe, designadamente, garantido o direito de participar nos atos que diretamente lhe disserem respeito, isto é, nos atos que em que se produz material que possa ser feito valer processualmente contra si e também o direito de se pronunciar e contraditar todos os meios de prova que sejam produzidos ou trazidos ao processo bem como todos os demais elementos que possam influenciar a decisão final.
IX E sendo que esta imposição jurídico-constitucional é especialmente forte quando em causa esteja a «sub-fase» (dentro da «fase administrativa» do processo de «contraordenação») posterior ao que equivale à formulação da «acusação» pela autoridade administrativa.
X. Como precisamente sucede nos presentes autos.
XI. A determinação da natureza da audição oral prevista no art.º 26.° n.º 2 da LdC não pode ser efetuada mediante mera equiparação com outras diligências previstas no CPP, uma vez que, por um lado, a aplicação subsidiária deste diploma é feita de forma devidamente adaptada às especificidades do processo contraordenacional (artigo 41.° n.º 1 do RGCO), atenta a sua distinta natureza e efeitos, não sendo possível comparar a audição oral a diligências concebidas e pensadas para um processo com estrutura e dinâmica diversas,
XII. E, por outro lado, tendo a audição oral, forma de concretização, na prática, do direito de audição e defesa na fase administrativa, sido decalcada do regime previsto no procedimento administrativo (artigos 100.° a 102.° do CPA), o seu significado e alcance deverão ser aferidos com recurso a tais normas (Assento 1/2003).
XIII. O significado desta diligência (e, particularmente, a sua sujeição ou não ao princípio do contraditório) apenas poderá ser aferido através da análise dos diversos atos que poderão ser praticados no seu decurso, bem como da relevância que estes têm (ou poderão ter) na tomada da decisão final
XIV. Na audição oral tem o Arguido oportunidade para contradizer os factos que lhe são imputados pela AdC, impugnar o seu enquadramento jurídico, invocar factos novos, prestando declarações sobre quaisquer questões relacionadas com o objeto do processo (artigo 26.° n.° 2 da LdC). Neste ato são, pois, apreciadas todas as questões com interesse para a decisão, nas matérias de facto e de Direito (artigo 102.° n.° 2 do CPA).
XV. Atenta a natureza necessária da comparticipação na maioria dos ilícitos anticoncorrenciais (designadamente os previstos no artigo 4.° da LdC que têm que ser necessariamente executadas em conjunto e de forma concertada por todos os agentes) qualquer facto que diga respeito a um Arguido concerne também aos demais.
XVI. Assim, na audição oral, o Arguido pronuncia-se sobre quaisquer questões relevantes para o objeto do processo, trazendo aos autos elementos que podem influenciar a decisão final a ser tomada, quanto a todos os Arguidos.
XVII. O direito de audiência e de defesa do arguido em processo contraordenacional têm como contraponto necessário o dever de pronúncia da autoridade administrativa sobre as questões pertinentes suscitadas.
XVIII. Não pode a autoridade administrativa, na decisão final, abster-se de efetuar qualquer apreciação das declarações do Arguido, baseando-se apenas nos elementos que foram carreados ao processo pela acusação, sob pena de se “esvaziar” o conteúdo do direito de defesa.
XIX. A decisão final, na qual não sejam apreciados os factos relevantes invocados pelo arguido em sede de direito de defesa é, assim nula, por omissão de pronúncia (artigo 379.° n.°1 al. c) do CPP e Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra de 14-042010).
XX. Considerando que as declarações prestadas pelo Arguido no decurso da audição oral têm por objeto quaisquer questões relacionadas com o objeto do processo e devem ser atendidas pela autoridade administrativa no âmbito da decisão final, impõe o princípio do contraditório a efetiva presença e participação dos coarguidos nesta diligência.
Para mais
XXI. A audição oral, em si mesma, enquanto manifestação do princípio da participação dos interessados, tendo sido criada à imagem da audiência dos interessados no procedimento administrativo, não tem paralelo no processo penal.
XXII. Mas, visando esta diligência permitir ao Arguido que se pronuncie sobre todas as questões relevantes para a decisão da causa, o escopo de tais declarações é semelhante às declarações produzidas pelo Arguido em processo penal, nos interrogatórios e nas audiências de julgamento (artigos 141.º n.°5, 343.° n.°1).
XXIII. Assim, as considerações expendidas no que concerne à natureza e efeitos das declarações do Arguido no âmbito do processo penal podem ser aplicadas às declarações do Arguido no processo contraordenacional.
XXIV. As declarações de um Arguido, em processo penal, consubstanciam-se num meio de prova que pode e deve ser valorado no processo (Acórdão n.° 133/2010).
XXV. Admite-se que tais declarações sejam utilizadas para sustentar a demonstração de factos imputados contra um coarguido, desde que a este último seja garantida a possibilidade de contraditar a prova produzida (artigo 345.° n.°4 do CPP e Acórdão n.º 133/2010).
XXVI. Impõe, assim, o princípio do contraditório que o Arguido contra o qual se possa fazer valer tais declarações seja admitido a realizar contrainterrogatório e instâncias, solicitando todos os esclarecimentos que repute pertinentes (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 206-06-2001 e 12-07-2006).
XXVII. Podendo (e devendo — cfr. conclusões XV a XVII) as declarações prestadas por um Arguido, no âmbito do processo contraordenacional, ser valoradas na decisão final, justifica-se a aplicação do citado entendimento no que respeita às declarações em processo penal.
XXVIII. Assim, o Arguido, no âmbito do processo por ilícitos anticoncorrenciais têm o direito de contraditar as declarações prestadas pelo coarguido, no decurso da audição oral deste.
Acresce que
XXIX. Na fase de Instrução, no processo de ilícitos anticoncorrenciais, é exercido o direito de audição e defesa do Arguido e são realizadas, a pedido deste e oficiosamente, todas os diligências probatórias pertinentes à descoberta da verdade (artigo 26.° da LdC).
XXX. Destinando-se, pois esta fase à comprovação dos factos descritos na nota de ilicitude e enquadramento jurídico dos mesmos, a sua finalidade é semelhante à da instrução no processo penal (artigo 286.° n.°1 do CPP).
XXXI. No processo criminal, os sujeitos processuais podem assistir aos atos de instrução por qualquer deles requeridos sendo-lhes garantido o direito de suscitar pedidos de esclarecimento ou requerer que sejam formuladas as perguntas que entenderem relevantes para a descoberta da verdade (Artigo 289.° n.°2 do CPP).
XXXII. Está, pois, consagrado que a fase de instrução, porque despoletada pelo Arguido e destinada à comprovação da acusação, deve ser regida pelo princípio do contraditório na sua máxima plenitude (declarações de voto das Excelentíssimas Senhoras Conselheira Maria Fernanda Palma e Maria dos Prazeres Pizarro Beleza aos Acórdãos 339/2005 e 372/2000)
XXXIII. Atenta a paridade de situações e considerando que a audição oral do Arguido faz formal e materialmente, parte integrante da fase de instrução e, como supra exposto, é um dos atos mais relevantes para a defesa dos coarguidos, justifica-se a aplicação do entendimento sufragado no artigo 289.° n.°2 do CPP, devendo, pois, tal ato estar sujeito ao contraditório.
Posto isto
XXXIV. A ata da audiência oral consubstancia-se (apenas) num extrato das alegações feitas pelos interessados” (artigo 102.° n.°4 do CPA), ao qual não se reconduz (ou reduz) o teor das declarações efetivamente prestadas.
XXXV. Com o mero acesso ao respetivo auto “fica definitivamente fora do seu alcance verificar a formulação das perguntas, acompanhar a forma como as testemunhas lhes respondem e conhecer da correspondência entre os depoimentos prestados e o relato escrito que lhes é, depois, apresentado”. Em suma não pode o Arguido conhecer o que efetivamente decorreu na diligência.
XXXVI. E o direito de contradizer os provas produzidas, bem como todos os demais elementos relevantes para a descoberta da verdade, fica imediatamente coartado quando lhes é vedado o acesso à diligência, já que não podem impor ao Arguido declarante que responda a outras perguntas ou preste quaisquer esclarecimentos.
Mas mais
XXXVII. Na audição oral, o Arguido pode fazer-se acompanhar por técnicos que possuam especiais conhecimentos científicos sobre as infrações em causa, cuja exposição sobre aspetos específicos dos elementos constitutivos das contraordenações, deve, pelo menos materialmente, ser considerada como constituindo prova pericial, já que o seu conteúdo se assemelha a esta diligência probatória (artigo 151.° CPP).
XXXVIII. O contraditório, na prova pericial, apenas pode ser efetuado contemporaneamente à sua produção, assistindo ao Arguido o direito a ser acompanhado por consultor técnico da sua confiança, que pode formular observações e objeções.
XXXIX. Consequentemente, a disponibilização, a posteriori, da ata do audição oral não permite a plena e cabal realização do princípio do contraditório.
XL Conclui-se, pois, que é inconstitucional a interpretação do artigo 26.° n.º2 da LdC no sentido de que está vedado ou possa ser vedado aos coarguidos o direito de assistir e participar na audiência oral, quando solicitada por outro Arguido, por violação do disposto no artigo 32.° n.°10 da Constituição da República Portuguesa.
Inconstitucionalidade por violação do artigo 20.° n.°4 da Constituição da República Portuguesa
XLI. O artigo 20.° n.°4 da Constituição da República Portuguesa consagra o princípio do processo equitativo, inerente ao qual está o princípio da igualdade de armas, (aplicável ao processo contraordenacional — vd. Acórdão n.° 27/2006) que impõe paridade entre as partes no que concerne aos direitos processuais que lhe são atribuídos e aos meios processuais de que dispõe.
XLIL Mesmo quando os sujeitos têm posições no processo que não são equiparáveis, as diferentes soluções não podem ser “arbitrárias, irrazoáveis ou infundadas” (Acórdãos n.° 516/94, 616/98, 688/98 e 153/02).
XLIII. A inibição de acesso dos Arguidos à audição oral leva a que se admita que a acusação presencie diretamente as diligências probatórias e que proceda à audição da pronúncia dos Arguidos, exercendo o contraditório no seu exclusivo interesse, tudo sem a presença da defesa.
XLIV. Mais permite que as declarações dos Arguidos que podem envolver argumentos sobre qualquer aspeto do objeto da causa e que tem que ser valoradas na decisão final, sejam assistidas apenas pela acusação, não sendo garantido idêntica oportunidade à defesa, que sequer pode verificar da correspondência da ata com o que foi efetivamente afirmado na diligência.
XLV. A proibição da assistência e participação do Arguido na audição oral do coarguido por oposição à assistência (e eventual participação) da autoridade administrativa na mesma, ao impedir o Arguido de exercer cabalmente o seu direito fundamental de defesa, constrange excessivamente o princípio do processo equitativo, na sua vertente da igualdade de armas.
XLVI. Consequentemente, a interpretação do artigo 26.° n.°2 da LdC no sentido de que aos coarguidos está vedada a possibilidade de assistir e participar na audiência oral solicitada por um Arguido viola o disposto no artigo 20.° n.°4 da Constituição da República Portuguesa.
Inconstitucionalidade por violação dos artigos 20.° n.º1 e 2 e 32.° n.°3 da Constituição da República Portuguesa
XLVII. Os artigos 20.° n.°1 e 2 e 32.° n.°3 da Constituição da República Portuguesa consagram o direito ao patrocínio que visa assegurar ao Arguido assistência por pessoa habilitada à condução técnico-jurídica do processo permitindo-lhe uma defesa cabal das suas posições jurídicas.
XLVIII. Constituindo a audição oral um ato essencial para a defesa dos demais Arguidos e para o conteúdo da decisão final, impõem tais preceitos que a assistência daqueles, no decurso da diligência, pelos seus mandatários constituídos, não possa ser impedida administrativamente.
XIX. O artigo 26.º n.°2 da LdC interpretado no sentido que aos Arguidos (e respetivos defensores constituídos) está vedada a assistência e participação na audição oral, solicitada por outro coarguido, é inconstitucional por violação dos preceitos contidos nos artigos 20.° n,°2 e 32.° n.°3 da Constituição da República Portuguesa.
L. Deve, pois, ser declarada a inconstitucionalidade da norma indicada na interpretação da sentença recorrida e, em consequência, ser ordenada a revogação da mesma e a sua substituição por outra que aplique o artigo 26.° n.° 2 da LdC num sentido conforme com a Constituição da República Portuguesa, com o que se fará JUSTIÇA.»
4. As conclusões das contra-alegações da recorrida AdC têm o seguinte teor:
«A) Tanto a AdC como o Tribunal de Comércio de Lisboa interpretaram de forma correta, i.e., conforme com a Lei Fundamental, o disposto no artigo 26.° da Lei n.° 18/2003.
B) Da simples leitura de tal preceito, maxime, do respetivo n.° 2, retira-se que não se prevê o direito de os coarguidos estarem presentes na audição oral de uma coarguida, ou de serem notificados da sua realização.
C) O legislador, ao estabelecer a solução constante do artigo 26.°, n.° 2, quis conferir às empresas e associações de empresas a possibilidade de substituírem, ou complementarem, a sua defesa escrita (prevista no n.° 1 do mesmo preceito), não configurando a “audição oral” qualquer diligência probatória, o que resulta da letra e ratio da referida norma.
D) Trata-se de um efetivo direito de defesa, sendo a sua natureza a de instrumento adicional ou substitutivo, constituindo uma oportunidade de as arguidas exporem oralmente a sua defesa face às infrações que lhe são imputadas pela AdC na Nota de Ilicitude, em substituição ou em complemento da defesa escrita.
E) Caso assim não se configure a natureza da “audição oral”, sempre teria que se aceitar a conclusão de que também a resposta escrita das arguidas à Nota de Ilicitude assumiria a natureza de diligência probatória, o que, notoriamente, contraria a mais elementar distinção entre defesa e prova.
F) Também por outra via se verifica que a “audição oral” não pode configurar uma qualquer diligência probatória porquanto, como expressamente resulta do regime constante dos n.°s 2, 3 e 4 do invocado artigo 26.° da Lei n.° 18/2003, e claramente evidencia as diferenças de natureza entre os instrumentos do n.° 2 e aqueles vertidos nos n.°s 3 e 4, a AdC não poderá ordenar às arguidas a sua comparência para efeitos da audição oral prevista na aludido n.° 2, o que já poderá ocorrer quando se trate da realização de diligências complementares de prova (vide artigo 26.°, n.° 4, da Lei n.° 18/2003).
G) A AdC, nos termos do disposto no artigo 26.°, n.° 3, poderá recusar a realização de diligências complementares de prova requeridas pelas arguidas, estando, ao invés, impossibilitada legalmente de recusar a “audição oral” das mesmas no âmbito do n.° 2 do mesmo artigo, o que, novamente, demonstra a natureza não probatória da diligência em causa.
H) Afigura-se evidente a diferença — de natureza, bem como de regime — existente entre o instrumento de exercício dos direitos de defesa das arguidas que configura a “audição oral” e o instrumento de produção de prova a que se reconduzem as diligências complementares de prova requeridas pelas arguidas ou realizadas oficiosamente pela AdC.
I) A “audição oral” não é um instrumento análogo ao debate instrutório, previsto nos artigos 297.° e seguintes do CPP, porquanto o mesmo assume, reconhecidamente, um cariz de contraditório, com intervenção do arguido e do Ministério Público, perante o juiz, não correspondendo, pois, a uma mera substituição ou extensão oral da resposta das arguidas à Nota de Ilicitude da AdC.
J) Não há paralelismo entre a “audição oral” do artigo 26.°, n.° 2 da Lei n.° 18/2003 e o interrogatório de arguido em processo penal, porquanto, para além de ser o mesmo despoletado por iniciativa do Ministério Público, — o que não sucede com a “audição oral” que se realiza a requerimento das arguidas —, aquela Magistratura interroga, efetivamente, o arguido, assumindo posição ativa, com vista ao esclarecimento da factualidade do processo, e no qual poderá obter elementos probatórios.
K) Se aos coarguidos e respetivos defensores, em processo penal, não assiste o direito de estarem presentes (nem de intervir) no interrogatório de um seu coarguido, conclui-se pela inexistência de tal direito dos ora Recorrentes, no processo contraordenacional em apreço, em sede de “audição oral” de uma das arguidas.
L) Conclui-se que a audição oral, prevista no artigo 26.°, n.° 2 da Lei n.° 18/2003, não poderá confundir-se com qualquer diligência de cariz probatório, antes se impondo a sua configuração enquanto instrumento de exercício dos direitos de defesa das arguidas, cuja efetiva utilização, por imperativo lógico, nunca poderia dar origem a uma violação desses mesmos direitos de defesa e, consequentemente, dos preceitos constitucionais que os consagram, maxime, o princípio do processo equitativo.
M) Os Recorrentes sempre teriam (como, in casu, tiveram) acesso ao auto de transcrição da diligência, para, caso assim o entendessem, se pronunciarem, pelo que não se verifica qualquer violação do princípio do contraditório.
N) Inexiste, pois, qualquer inconstitucionalidade da norma do artigo 26.°, n.° 2, da Lei n.° 18/2003, interpretada no sentido de não conferir aos coarguidos em processo de contraordenação o direito de assistir e participar na “audição oral” aí prevista, sendo a mesma compatível com as normas constitucionais constantes dos artigos 2.°, 20.°, n.ºs 1, 2 e 4, e 32.°, n.ºs 3 e 10, o que necessariamente determinará a total improcedência do recurso.
NESTES TERMOS,
deve julgar-se integralmente improcedente o presente recurso e, em consequência, não julgar inconstitucional a norma que resulta da interpretação do artigo 26.°, n.° 2, da Lei n.° 18/2003, de 11 de junho, segundo a qual não assiste aos coarguidos em processo de contraordenação o direito de assistir e participar na “audição oral” aí prevista, por violação dos artigos artigos 2.°, 20.°, n.ºs 1, 2 e 4, e 32.°, n.°s 3 e 10 da CRP, só assim se fazendo JUSTIÇA.»
Redistribuído o processo, cumpre apreciar e decidir.
II ? Fundamentação
Questões prévias
5. Da tramitação dos autos acima descrita resulta que ambos os recursos de constitucionalidade, interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, se encontram agora devidamente admitidos pelos tribunais que proferiram as decisões respetivamente recorridas, nada mais havendo a decidir a este respeito.
6. Mais resulta dos elementos do processo que o objeto do recurso se encontra restringido à apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 26.º, n.º 2, da Lei da Concorrência (segundo recurso interposto), uma vez que o primeiro recurso apresentado, destinado à apreciação da norma do artigo 55.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 433/82, foi, por despacho do primitivo Relator, julgado manifestamente improcedente à luz da jurisprudência reiterada deste Tribunal Constitucional, não tendo tal despacho sido impugnado pelas recorrentes que, pelo contrário, apresentaram alegações versando apenas aquele primeiro recurso.
7. Importa agora apreciar a questão suscitada pelo primitivo Relator, no despacho de fls. 350, quanto à eventual falta de pressupostos para conhecer do objeto do recurso respeitante à constitucionalidade da norma do artigo 26.º, n.º 2 da Lei da Concorrência (LdC). Levanta-se a questão, nesse despacho, da eventual não coincidência da dimensão normativa objeto do presente recurso com a interpretação normativa da mesma norma, aplicada pelo tribunal recorrido, uma vez que as recorrentes sustentam que a audiência oral a que se refere aquela norma tem natureza de diligência probatória, enquanto que a sentença recorrida considerou-a um instrumento de defesa que, por isso, apenas diz respeito ao arguido respetivo.
Em resposta, as recorrentes sustentam que a interpretação reputada inconstitucional é a adotada pela decisão recorrida como sua ratio decidendi e salientam que a fiscalização da constitucionalidade da interpretação em causa não pode ser impedida com base «na formulação de um “pré-juízo” meramente formal de qualificação da audiência oral no sentido de que a mesma “não é uma diligência probatória”».
O presente recurso vem interposto para apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 26.º, n.º 2, da LdC, quando interpretada no sentido de não conferir aos coarguidos em processo contraordenacional e respetivos defensores o direito de assistência e participação na audiência oral prevista naquela norma. É o que resulta, quer do requerimento de interposição de recurso (cfr. ponto 5.º, a fls. 217), quer das alegações das recorrentes (cfr. ponto I – Enquadramento e conclusão I., respetivamente a fls. 230 e 254).
A sentença do Tribunal de Comércio de Lisboa, aqui recorrida, na parte que agora releva, começa por analisar a “natureza e regime da audição oral prevista no artigo 26.º, n.º 2, da LdC”, afirmando que a audição oral «corresponde ao exercício do direito de defesa mediante uma concretização do direito dos arguidos a serem ouvidos», isto é, «um meio que o legislador dá às arguidas de substituir ou complementar a sua defesa escrita, ou seja, de apresentar os argumentos que entenderem relativamente à imputação que lhe é feita na nota de ilicitude». De seguida, a sentença salienta que a audição oral é «distinta de um interrogatório de arguido ou de um debate instrutório», nela não havendo lugar «à inquirição da arguida nem são colocadas quaisquer perguntas perante a sua exposição». Finalmente, faz notar que «tal como sucede com a resposta escrita, juntamente com a resposta oral pode a arguida juntar ao processo documentos e, nessa medida apresentar meios de prova. Mas daqui não resulta que a audição seja, em si mesmo, uma diligência probatória tal como não o é a resposta escrita apresentada pela arguida».
É com base nesta análise que o Tribunal de Comércio de Lisboa decidiu manter a decisão da Autoridade da Concorrência que indeferiu a solicitação de presença dos advogados constituídos pelos arguidos na audiência oral requerida pela coarguida.
É inquestionável que, ao assim decidir, a sentença recorrida interpretou a norma do artigo 26.º, n.º 2, da LdC, no sentido de não conferir aos coarguidos o direito de assistir e participar na audiência oral prevista naquela norma – exatamente o sentido enunciado pelas recorrentes como objeto do recurso. Essa conclusão é, aliás, expressamente afirmada em vários trechos da fundamentação, por exemplo, a fls. 50 e 52 dos autos.
É certo que a conclusão a que chegou o tribunal recorrido parte de uma análise prévia do regime infraconstitucional desta audiência oral para, a partir dele, qualificar juridicamente a audiência em causa. Mas essa análise não é um elemento da norma reputada inconstitucional, antes é um dos elementos convocados para a apreciação e resolução do problema colocado pela interpretação normativa reputada inconstitucional.
Ou seja, a decisão recorrida não chega a uma conclusão diferente da pretendida pelas recorrentes por adotar uma interpretação diversa da norma do artigo 26.º, n.º 2, da LdC. Antes analisa de modo diverso o respetivo regime para dele extrair a regra que, precisamente, as recorrentes reputam inconstitucional.
Tanto assim é que o Tribunal Constitucional, para poder pronunciar-se sobre a compatibilidade constitucional da interpretação normativa em questão, não poderá ignorar o regime infraconstitucional da referida audiência oral, pois só a partir da precisa caracterização da função procedimental desse regime se poderá confrontar com as normas e princípios constitucionais a não permissão da presença das coarguidas e seus representantes nessa audiência.
Nenhum obstáculo existe, por isso, ao conhecimento do objeto do recurso.
8. Constitucionalidade da norma do artigo 26.º, n.º 2, da LdC
O artigo 26.º da Lei da Concorrência (LdC, aprovada pela Lei n.º 18/2003, de 11 de junho, e alterada por último, à data da sentença recorrida, pela Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto), estabelece o seguinte:
«Artigo 26.º
Instrução do processo
1 - Na notificação a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo precedente, a Autoridade fixa às arguidas um prazo razoável para que se pronunciem por escrito sobre as acusações formuladas e as demais questões que possam interessar à decisão do processo, bem como sobre as provas produzidas, e para que requeiram as diligências complementares de prova que considerem convenientes.
2 - A audição por escrito a que se refere o número anterior pode, a solicitação das empresas ou associações de empresas arguidas, apresentada à Autoridade no prazo de cinco dias a contar da notificação, ser completada ou substituída por uma audição oral, a realizar na data fixada para o efeito pela Autoridade, a qual não pode, em todo o caso, ter lugar antes do termo do prazo inicialmente fixado para a audição por escrito.
3 - A Autoridade pode recusar a realização de diligências complementares de prova sempre que for manifesta a irrelevância das provas requeridas ou o seu intuito meramente dilatório.
4 - A Autoridade pode ordenar oficiosamente a realização de diligências complementares de prova, mesmo após a audição a que se referem os n.ºs 1 e 2, desde que assegure às arguidas o respeito pelo princípio do contraditório.
5 - Na instrução dos processos a Autoridade acautela o interesse legítimo das empresas na não divulgação dos seus segredos de negócio.»
Nos presentes autos, está em causa, como se disse, a interpretação da norma do n.º 2 no sentido de não conferir aos demais arguidos em processo contraordenacional e respetivos defensores o direito a assistir e participar na audiência oral prevista naquela norma.
As recorrentes sustentam que esta interpretação normativa viola as garantias de audiência e de defesa e o princípio do contraditório (artigo 32.º, n.º 10, da Constituição); o princípio do processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição); e o direito do arguido ao patrocínio forense (artigos 20.º, n.ºs 1 e 2, e 32.º, n.º 3, da CRP).
O confronto da interpretação normativa com as citadas normas e princípios constitucionais não prescinde de uma prévia compreensão do regime infraconstitucional em causa.
O artigo 26.º da LdC regula a fase da instrução do procedimento contraordenacional respeitante às “práticas proibidas” sancionadas na mesma lei.
O procedimento contraordenacional aqui previsto é da competência da autoridade administrativa (AdC) e inicia-se com a abertura do inquérito – na sequência de notícia sobre eventuais práticas proibidas –, no qual se promovem as diligências de investigação necessárias à identificação dessas práticas, findando essa fase com a decisão de arquivamento ou com a decisão de dar início à instrução (artigos 24.º e 25.º, n.º 1, da LdC).
Quando se conclua haver indícios suficientes de infração às regras de concorrência, a AdC dá início à instrução do processo, através da notificação da acusação (ou nota de ilicitude) à(s) empresa(s) arguida(s) para se pronunciar(em) sobre «as acusações formuladas e as demais questões que possam interessar à decisão do processo, bem como sobre as provas produzidas, e para que requeriam as diligências complementares de prova que considerem convenientes» (artigos 25.º e 26.º, n.º 1, da LdC).
Terminada a instrução, a AdC adota, com base no relatório do serviço instrutor, uma decisão final, na qual pode (i) ordenar o arquivamento do processo; (ii) declarar a existência de uma prática restritiva da concorrência, ordenando as providências necessárias à sua cessação; (iii) aplicar coimas e demais sanções previstas na LdC; e (iv) autorizar um acordo (cfr. artigo 28.º da LdC).
Resulta do exposto que, no procedimento contraordenacional regulado na LdC, a fase da instrução visa assegurar os direitos de audiência e defesa da(s) arguida(s) no caso de esta(s) não se conformar(em) com o teor da nota de ilicitude (no mesmo sentido v. Miguel Mendes Pereira, Lei da Concorrência Anotada, Coimbra, 2009, 281).
Tal como o correspondente artigo 50.º do Regime Geral das Contraordenações (RGCO, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, com as alterações posteriores), o n.º 1 do artigo 26.º da LdC concretiza, no âmbito de procedimento contraordenacional por prática restritiva da concorrência, nesta fase de instrução (ou seja, de audição e defesa da(s) arguida(s)), o princípio do contraditório consagrado no n.º 10 do artigo 32.º da CRP , impondo a notificação às arguidas «para que se pronunciem por escrito sobre as acusações formuladas e as demais questões que possam interessar à decisão do processo, bem como sobre as provas produzida» e, ainda, «para que requeiram as diligências complementares de prova que considerem convenientes».
Resulta do n.º 2 do mesmo preceito que a audição por escrito pode ser, a solicitação das arguidas, completada ou substituída por uma audição oral. Infere-se daqui que esta audição desempenha, por outra via (ou por uma via complementar), a mesma função e persegue o mesmo objetivo da sua equivalente audição escrita, ou seja, permitir à(s) arguida(s) exercer(em) os seus direitos de audição e defesa perante a AdC, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 26.º
Este é o regime da audiência oral que se extrai literalmente das normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 26.º da LdC e é também assim que foi entendido e aplicado pela sentença recorrida. Nesta decisão do Tribunal de Comércio de Lisboa, refere-se que «a audição oral corresponde ao exercício do direito de defesa mediante uma concretização do direito dos arguidos a serem ouvidos», sendo «um meio que o legislador dá às arguidas de substituir ou complementar a sua defesa escrita, ou seja, de apresentar os argumentos que entenderem relativamente à imputação que lhe é feita na nota de ilicitude». O Tribunal acrescenta, ainda, que «tal como sucede com a resposta escrita, juntamente com a resposta oral, pode a arguida juntar ao processo documentos, e, nessa medida, apresentar meios de prova».
Este o sentido e função da audiência oral aqui em causa. Só a partir deles se poderá dar resposta à questão de constitucionalidade objeto do presente recurso, pois só tendo-os em conta se poderá avaliar se os direitos constitucionais das coarguidas são infringidos quando se interpreta o n.º 2 do artigo 26.º da LdC no sentido de não permitir a presença das demais arguidas, e respetivos defensores, na audiência oral de uma das coarguidas.
Poderá esta interpretação contender com o disposto no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição? No Acórdão n.º 659/2006, o Tribunal Constitucional pronunciou-se sobre o conteúdo dos direitos de audiência e defesa do arguido em processo contraordenacional, salientando o seguinte: «Com a introdução dessa norma constitucional (efetuada, pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contra ordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios) o que se pretendeu foi assegurar, nesses tipos de processos, os direitos de audiência e de defesa do arguido, direitos estes que, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspondente ao atual artigo 269.º, n.º 3). Tal norma implica tão só ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (cf. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 363). É esse o limitado alcance da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, tendo sido rejeitada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento ao arguido, “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios”, de “todas as garantias do processo criminal” (artigo 32.º B do Projeto de Revisão Constitucional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da Assembleia da República, II Série RC, n.º 20, de 12 de setembro de 1996, pp. 541 544, e I Série, n.º 95, de 17 de julho de 1997, pp. 3412 e 3466).»
Por outro lado, este Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado a não aplicação direta e global aos processos contraordenacionais dos princípios constitucionais próprios do processo criminal, desde logo o princípio da judicialização da instrução consagrado no n.º 4 do artigo 32.º (neste sentido, cfr. o Acórdão n.º 158/92).
Também já se salientou, no Acórdão n.º 278/99, que «a menor ressonância ética do ilícito contraordenacional subtrai-o às mais “rigorosas exigências de determinação válidas para o ilícito penal” (…), o que não deixará de se refletir no âmbito do contraditório.»
No caso presente, contudo, nem sequer é necessário averiguar onde e em que medida o procedimento contraordenacional pode eventualmente divergir do processo penal em matéria de contraditório do arguido, dado que a interpretação normativa aqui em causa é insuscetível de beliscar o princípio do contraditório, mesmo na sua vertente mais exigente.
Do que acima ficou dito, resulta com clareza que – na letra da lei e na interpretação que dela foi feita pelo tribunal recorrido – a audiência em causa é a versão oral da audição ou resposta escrita a que se refere o n.º 1 do artigo 26.º da LdC. Naquela audição oral, podem as arguidas pronunciar-se sobre as mesmas questões e requerer os mesmos meios de prova que estão ao seu alcance na audiência escrita. O que significa que a norma questionada trata precisamente de concretizar e materializar os direitos de audição e defesa que, em processo contraordenacional, são garantidos pelo artigo 32.º, n.º 10, da Constituição.
Do principio do contraditório não resulta – nem em processo contraordenacional, nem, acrescente-se, em processo penal – o direito de um arguido presenciar e/ou intervir na apresentação da defesa de um outro arguido, que como vimos, é do que trata a audição oral aqui questionada. Basta pensar que as arguidas, e respetivos defensores, não têm o direito de assistir à elaboração da audição escrita de uma das coarguidas (cuja natureza, aliás, inviabilizaria essa presença), não sendo, por razões óbvias, admissível regime diverso para a mesma audição, na sua forma oral.
É certo que no decurso da referida audição oral, a arguida pode apresentar prova (v.g. documentos) ou requerer que seja produzida prova (audição de testemunhas, perícia ou outro tipo de prova); mas não há diferença entre os requerimentos de prova (ou a eventual junção de documentos) oferecidos na audição oral e aqueles que podem ser requeridos (ou juntos) numa defesa escrita. Em qualquer caso, trata-se de requerer ou oferecer prova (n.ºs 1 e 2 do artigo 26.º da LdC) e não de produzir prova, pois esta última carece de decisão da autoridade administrativa, quer admitindo ou rejeitando as diligências de prova requeridas pelas arguidas, quer determinando oficiosamente a realização de diligências complementares de prova, desde que assegurado o respeito pelo princípio do contraditório – cfr. n.ºs 3 e 4 do artigo 26.º da LdC. E, como sustenta a decisão recorrida, «relativamente às verdadeiras diligências complementares de prova, sejam as requeridas pelos arguidos, sejam as ordenadas oficiosamente, é que a AdC tem que assegurar o contraditório».
As declarações prestadas pelo arguido em audição oral ou o eventual oferecimento de prova que aí tenha lugar em nada prejudicam os direitos dos demais coarguidos, nomeadamente, o seu direito ao contraditório, pois é-lhes garantida a possibilidade de contraditarem esse depoimento e de oferecerem prova (ou requererem a sua produção) em contrário.
Basta, para tal, que as coarguidas sejam notificadas da cópia do auto de audição oral – o que, diga-se de passagem, foi feito, no caso em apreço. Só o que constar desse auto e seus anexos releva para efeitos processuais, podendo por eles os coarguidos tomar conhecimento preciso do conteúdo das declarações prestadas, para sobre estas, querendo, tomar posição, em tutela dos seus interesses. Essa sequência temporalmente diferenciada, em termos diacrónicos, de contraposição de intervenções no processo corresponde à forma normal de concretização do princípio do contraditório, pelo menos numa fase de instrução, não se descortinando aqui interesses ou valores particulares que justifiquem a exigência de contemporaneidade do seu exercício, no momento e no ato em que são produzidas as declarações ou oferecidas as provas (eventualmente) a contradizer.
Saliente-se, ainda, que é errado considerar a referida audição oral como um ato que dissesse “diretamente respeito” às demais coarguidas. É, pelo contrário, um ato que respeita diretamente apenas aquela arguida que, através da audição oral, pretende apresentar a sua defesa.
Resulta do exposto que, no procedimento contraordenacional por infração às regras da concorrência, a referida audição oral insere-se na fase da defesa e não na fase da produção de prova. Assim, se quisermos estabelecer algum paralelismo com o processo penal, concluiremos que a audição oral (bem como a audição por escrito), a que se refere o artigo 26.º, n.º 2, da LdC, equivalerá (ressalvadas as devidas diferenças) à contestação do arguido, prevista no artigo 315.º do CPP, na qual este pode também requerer ou oferecer prova (cfr. n.ºs 1, 3 e 4). Já não tem qualquer fundamento, por motivos óbvios, a analogia que as recorrentes estabelecem, ora entre a audição oral e o debate instrutório regulado no artigo 297.º do CPP, ora entre aquela e as declarações do arguido, em primeiro interrogatório (artigo 141.º do CPP) ou em audiência de julgamento (artigos 343.º e 345.º do CPP). Diga-se apenas que o primeiro interrogatório judicial de arguido detido perante o juiz de instrução não tem qualquer equivalente em sede de processo contraordenacional; e que se alguma correspondência pudesse ser feita entre as declarações do arguido em audiência de julgamento e o procedimento contraordenacional, apenas se concluiria que aquelas se incluem na fase do julgamento, destinada, nomeadamente, à produção de prova, enquanto que a audição oral aqui em questão visa – repete-se – a apresentação da defesa sob a forma oral (em substituição ou complemento da defesa escrita).
É igualmente inoportuna a comparação entre a audição oral prevista no artigo 26.º, n.º 2, da LdC, e a audição regulada no artigo 100.º do Código de Procedimento Administrativo. Enquanto que aquela concretiza uma dimensão qualificada do direito de audiência, traduzida no direito de defesa, que é exigência de qualquer processo de tipo sancionatório, nos termos do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, a audiência dos interessados em procedimento administrativo (não sancionatório) constitui uma concretização legislativa do direito de participação dos cidadãos na formação das decisões que lhes disserem respeito, estabelecido no n.º 5 do artigo 267.º da Lei Fundamental. É, aliás, esta diferença fundamental que justifica que a falta de audiência no procedimento administrativo possa dar origem a diferentes desvalores jurídicos (nulidade ou anulabilidade – cfr. Mário Esteves de Oliveira/ Pedro Costa Gonçalves/ J. Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo, 2.ª ed., Coimbra, 1997, 449-451).
Tudo isto para concluir que a interpretação do n.º 2 do artigo 26.º da LdC no sentido de não conferir direito à presença das coarguidas (e seus defensores) na audição oral de uma das arguidas, não ofende o princípio do contraditório garantido pelo n.º 10 do artigo 32.º da Constituição, pois nesta garantia não se inclui a possibilidade de as coarguidas presenciarem ou intervirem na apresentação da defesa por uma outra arguida, mesmo quando esta apresentação decorra sob a forma oral.
Também não se vislumbra qualquer violação do princípio do processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição). Muito pelo contrário, um tal princípio constitucional seria mais pertinentemente invocável na interpretação normativa pugnada pelas recorrentes, na medida em que esta levaria a admitir a intervenção das demais coarguidas no ato procedimental destinado ao exercício da defesa de uma outra arguida (e apenas no caso de esta optar por exercer essa defesa oralmente). Entender, como pretende a recorrente, que o direito ao contraditório faculta às outras arguidas, não apenas o direito de assistência a esse ato, mas a possibilidade de nele colocar questões ou solicitar esclarecimentos, significaria, na verdade, reconhecer que quem opta, no exercício da sua defesa, pela exposição oral não a pode desenvolver livremente, da forma que melhor entender conveniente, sem se sujeitar a interferências externas de representantes de outros interesses, eventualmente não coincidentes com os seus.
Resta dizer que a invocada violação do direito do arguido ao patrocínio forense (artigos 20.º, n.ºs 1 e 2, e 32.º, n.º 3, da CRP) decai inevitavelmente em face do exposto. Não só não se está perante uma situação em que tenha sido negado o direito do arguido a acompanhar-se por defensor, como as mesmas razões que levaram a concluir que ao arguido não assiste o direito de estar presente na audição oral das coarguidas afastam a possibilidade de aquele se apresentar nesta audição acompanhado pelo seu defensor.
III ? Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
Não julgar inconstitucional a norma do artigo 26.º, n.º 2, da Lei da Concorrência, quando interpretada no sentido de não conferir aos demais arguidos e respetivos defensores, em processo contraordenacional, o direito a assistir e participar na audiência oral nela prevista;
Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pelas recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 8 de fevereiro de 2012.- Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.