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Processo n.º 592/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Por acórdão proferido em 30/01/2012, foi o arguido A. condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º do D.L. 15/93, de 22/01, na pena de quatro anos de prisão, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.ºs. 1, alínea c) e 2 da Lei n.º 5/2006, na redação conferida pela Lei n.º 17/2009, de 6 de junho, na pena de dois anos de prisão. Em cúmulo jurídico dessas duas penas, foi condenado na pena única de quatro anos e oito meses de prisão.
O arguido A. interpôs recurso desse acórdão, impugnação que não lhe foi admitida, por extemporânea.
Apresentou, então, o arguido, reclamação do despacho de não admissão.
Por decisão da Srª Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, foi a reclamação indeferida.
Fundou-se essa decisão, no que interessa ao presente recurso, no seguinte:
«(...)
Questão prévia
Como resulta do despacho proferido em 6-7-2012, a fls. 284, após a prolação do despacho reclamado e, em requerimento autónomo à reclamação apresentada, requereu o arguido a prorrogação do prazo para interpor recurso, nos termos do artigo 107.º, n.º 6 do CPP.
No aludido despacho de fls. 284 foi a pretensão do arguido indeferida por já ter decorrido o prazo dentro do qual era admissível a prorrogação do prazo de recurso.
Desconhece-se se este despacho foi impugnado pelo arguido, por via de recurso.
Ainda assim, na presente reclamação, não deixou o arguido de invocar a inconstitucionalidade do referido preceito, por considerar que viola o princípio da igualdade e os meios de defesa do arguido preso, porquanto, tendo sido declarada a excecional complexidade do processo, ao abrigo do disposto no artigo 215.º, n.º3 do CPP os prazos previstos para a prisão preventiva operaram automaticamente, sendo que os meios de defesa do arguido não operam da mesma maneira, visto que há necessidade de requerer a prorrogação dos prazos constantes do aludido artigo 107.º, n.º 6.
A excecional complexidade (nomeadamente, atendendo ao número de arguidos, ou de ofendidos ou ao caráter altamente organizado do crime) apenas pode ser declarada, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente (n.ºs 3 e 4 do art. 215.º).
Em função da fase processual dos autos, estabelece este preceito que a requerimento do arguido pode o juiz prorrogar o prazo previsto no n.º1 do artigo 411.º, até ao limite máximo de 30 dias. Ou seja, o prazo de interposição de recurso de 20 dias pode ir até 50 dias.
Ora, no caso vertente, e em tempo, não viu o arguido necessidade de requerer a prorrogação do prazo de interposição de recurso e, mesmo podendo beneficiar de um prazo mais longo, de 30 dias, caso o recurso que interpôs tivesse por objeto também a reapreciação da prova gravada, optou por restringir o recurso a matéria de direito e a invocação de vícios resultantes do texto do acórdão.
Não se vislumbra, pois, que o arguido tenha ficado diminuído nos seus direitos de defesa no âmbito do presente processo, ou que tenham sido violados preceitos constitucionais».
2. Inconformado, o arguido A. veio interpor recurso da decisão de indeferimento da reclamação para este Tribunal Constitucional.
Após convite que lhe foi dirigido, nos termos do n.º 6 do artigo 75-A da Lei do Tribunal Constitucional, o recorrente formulou a sua pretensão nos seguintes termos:
«O arguido ao recorrer da decisão singular do Venerando Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra para o Tribunal Constitucional, pretende que, nos termos do artigo 70.º, n.º1, alínea b) do LTC, seja declarada a inconstitucionalidade da norma do artigo 107.º, n.º 6 do Código Processo Penal, quando interpretada no sentido de que o arguido preso preventivamente que vê os prazos da sua prisão preventiva substancialmente agravados, de forma automática, nos termos e para os efeitos do artigo 251.º n.º3 e 4 do CPP, deverá, querendo, requerer o prorrogamento dos prazos constantes do artigo 107, n.º 6 do CPP, sem que tais prazos operem também de forma automática a favor do arguido.
No modesto entendimento do ora recorrente esta norma, com esta interpretação e este sentido, e por todos os motivos explanados no recurso, viola simultaneamente os princípios e direitos constitucionalmente protegidos nos artigos 13.º (princípio da igualdade), 18.º, n.º 2 e 3 (direito a manter a extensão e o alcance, nomeadamente do direito ao recurso, apesar da restrição), 20.º, n.º4 (direito a um processo equitativo) e o o artigo 32.º, n.º 1 (direito ao recurso), todos da CRP.
Face ao supra exposto, deve ser declarada a inconstitucionalidade da norma do artigo 107.º, n.º6 do CPP nos precisos termos supra referidos, e no seu lugar, a contrario, deverá ser adotado e prevalecer o entendimento de que o arguido preso preventivamente que vê os prazos da sua prisão preventiva substancialmente agravados, de forma automática, nos termos e para os efeitos do artigo 215.º n.º3 e 4 do CPP, deverá também ver prorrogado, de forma automática, os prazos constantes do artigo 107.º, n.º 6 do CPP, sem necessidade de requerer tal prorrogamento, por ser este o entendimento que está em conformidade com os princípios da nossa Constituição, e, em consequência, deverá considerar-se como alargado o prazo de interposição do Recurso do ora recorrente para a Relação para 30 dias, admitindo-se este como tempestivo».
3. Notificados para o efeito, o recorrente e o Ministério Público apresentaram alegações.
3.1. O recorrente A. extraiu das alegações as seguintes conclusões:
I) Não se conformando o ora recorrente com o despacho de retificação datado de 18.06.2012 que rejeitou o recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra, veio o ora recorrente reclamar de tal despacho arguindo a inconstitucionalidade do artigo 107, n° 6 do CPP, por considerar que viola o princípio da igualdade e os meios de defesa do arguido preso preventivamente, pois tendo sido declarada a especial complexidade do processo, ao abrigo do disposto no artigo 215°, n° 3 do CPP, a agravação substancial dos prazos previstos para a prisão preventiva operaram automaticamente, sendo que os meios de defesa do arguido não operam da mesma maneira visto que há necessidade de requerer a prorrogação dos prazos constantes do aludido artigo 107° n° 6.
II) No entanto, em 13.08.2012, foi o arguido notificado da decisão singular proferida pelo Venerando Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, que indeferiu a reclamação e considerou que o recurso interposto pelo arguido para o Tribunal da Relação de Coimbra foi apresentado extemporaneamente, limitando-se a não vislumbrar que o arguido tenha ficado diminuído nos seus direitos de defesa no âmbito do presente processo ou que tenham sido violados preceitos constitucionais pois o arguido podia sempre beneficiar de um prazo mais longo, de 30 dias, bastando, nomeadamente, para tal requerer a prorrogação do prazo de interposição de recurso nos termos do artigo 107, n° 6 do CPP, que é concretamente a norma em crise e cuja inconstitucionalidade o arguido invoca.
III) É desta última decisão singular que o arguido recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n° 1 do artigo 70° da lei do TC (LTC) a fim de ver apreciada a seguinte questão de inconstitucionalidade:
'A norma do artigo 107, n° 6 do CPP, interpretada no sentido de que o arguido preso preventivamente que vê os prazos da sua prisão preventiva substancialmente agravados, de forma automática, nos termos e para os efeitos do artigo 251 n° 3 e 4 do CPP, deverá, querendo, requerer o prorrogamento dos prazos constantes do artigo 107, n° 6 do CPP, sem que tais prazos operem também de forma automática a favor do arguido, viola os artigos 13°, 18° n° 2 e 3, 20° n° 4 e 32° da CRP.
Assim,
IV) Declarada a especial complexidade do processo, por despacho proferido nos autos, o arguido preso preventivamente desde 4.09.2010, viu, de forma automática e sem qualquer ação de qualquer sujeito processual, os prazos de duração da prisão preventiva substancialmente agravados, e que no limite poderão levar o arguido a cumprir prisão preventiva até quatro anos (vide art. 215 n° 3 e 5 do CPP), mas, pelo contrário, o prazo para a defesa, para o exercício dos seus direitos, nomeadamente o direito ao recurso, mantêm-se inalteráveis, a não ser que haja um procedimento em jeito de incidente, um impulso processual da parte do arguido, a requerer o alargamento do prazo para 30 dias para a defesa ou recurso do arguido, conforme o disposto no artigo 107° n° 6 do CPP.
V) A lei, através do confronto dos artigos 215 n° 3 e 4 e 107, n° 6, determina, no fundo, que os direitos fundamentais do preso preventivo sejam limitados, restringidos e coartados, de forma imediata e automática, mas, em contrapartida, não estabelece, de forma equitativa e automática, um conjunto de direitos que salvaguardem um equilíbrio manifesto entre os direitos restringidos e os direitos de defesa que o arguido preso preventivamente tem ao seu dispor.
VI) O Tribunal recorrido usou, pois, de 'dois pesos e duas medidas'
VII) A lei, através do confronto dos artigos 215 n° 3 e 4 e 107, n° 6, não coloca em pé de igualdade a restrição automática do direito (à liberdade) que é coartado ao arguido preso preventivamente e o direito à defesa condigna e equitativa que para ser acionada a lei faz depender de um 'impulso processual', em manifesta violação do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado no artigo 13° da CRP e do artigo 20°, n° 4, também da CRP.
VIII) Igualmente, por via da aplicação do artigo 107, n° 6 do CPP, em confronto com o artigo 215, n° 3 e 4 do CPP, resulta coartado o direito de recurso do ora recorrente, e com isto, mostra-se violado o direito fundamental constitucionalmente consagrado no artigo 32° da CRP.
IX) Entende o Venerando Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra que o arguido recorrente poderia ter acionado a prorrogação do prazo de recurso de 20 para 30 dias, não vislumbrando que o arguido tenha ficado diminuído nos seus direitos de defesa ou que tenham sido violados preceitos constitucionais.
X) Este entendimento é incorreto, por um lado, uma vez que o arguido preso preventivamente viu o seu recurso interposto para a Relação declarado extemporâneo, por nomeadamente não preencher os requisitos do artigo 107, n° 6, o que necessariamente provocou uma diminuição dos seus direitos de defesa, por não ter havido a correspondência equitativa supra alegada.
XI) Por outro lado, este entendimento normativo é inconstitucional por violação do reduto nuclear das garantias de defesa do arguido, nomeadamente o direito ao recurso, consagrado no artigo 32° da Lei Fundamental, por violação do direito à igualdade, consagrado no artigo 13° da CRP e o direito a um processo equitativo (art. 20° da CRP)
XII) Daí que não sejam admissíveis, numa perspetiva dos direitos de defesa, nomeadamente o direito ao recurso, as rejeições formais que limitam intoleravelmente, dificultam excessivamente, imponham entraves burocráticos ou restringem restringem desproporcionalmente tal direito.
XIII) O arguido foi condenado a 4 anos e oito meses de prisão efetiva e cumpre prisão preventiva desde 4.09.2010, tendo visto os limites da prisão preventiva substancialmente agravados nos termos do artigo 215° n° 3 e 4 do CPP, e, por razões processuais erradas e inconstitucionais está a ver o seu direito ao recurso coartado, impedindo-se, desta forma, que o acórdão condenatório seja examinado por um Tribunal Superior.
XIV) O legislador ao produzir a norma excecional constante do artigo 107° n°6 do CPP não pretendia, certamente, fixar um preceito restritivo que, na prática suprimisse o direito ao recurso.
XV) Pretendeu sim proceder a uma equivalência entre os direitos restringidos ao arguido preso preventivamente no âmbito da declaração de especial complexidade ao processo e os direitos de garantia de defesa do arguido, reforçando estes na mesma proporção.
XVI) Ora, a verdade é que não o conseguiu, em absoluto, pois ao determinar que a agravação substancial dos prazos da prisão preventiva opera de forma imediata e automática com a consequente restrição e privação da liberdade do arguido preso preventivamente, não reproduziu, de forma equivalente e equitativa para o disposto no artigo 107, n°6, as garantias de defesa do arguido, pois fá-las depender de um impulso processual a exercer pelo arguido, não operando estas garantias e direitos de modo igualmente automática, em manifesto prejuízo das garantias de defesa consagrados constitucionalmente ao arguido e do princípio da igualdade, pois o tratamento que o legislador proporciona aos direitos restringidos ao arguido e os direitos que lhe são concedidos para 'compensar' aquela perda de direitos, é manifestamente desproporcional e desigual.
XVII) Assim, entende o recorrente que o n° 6 do art. 107° do CPP, com a interpretação conferida pela decisão singular agora censurada é inconstitucional por flagrante, desproporcionada intolerável e iníqua denegação do direito ao recurso, tal como está consagrada no art. 32°, n° 1 da CRP e no artigo 2 do protocolo n° 7 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pelos argumentos aduzidos supra e também porque
XVIII) Tal inconstitucionalidade parece resultar ainda do pensamento dos Professores Jorge Miranda e Rui Medeiros, quando escrevem: «É possível, por isso, fundar constitucionalmente um genérico direito de recorrer das decisões jurisdicionais. E, se é certo que cabe ao legislador ordinário concretizar, com maior ou menor amplitude, o seu âmbito de aplicação e conteúdo, está-lhe vedado abolir o sistema de recursos in totum ou afetá-lo substancialmente através da consagração de soluções que restrinjam de tal modo o direito de recorrer que, na prática, se traduzam na supressão tendencial dos recursos (acórdãos n.°s 489/95, 673/95, 377/96 e 490/97 — cfr. Ainda Jorge Miranda, Manual..., IV cit. pág. 269 e 270).
XIX) O arguido ao recorrer da decisão singular do Venerando Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra para o Tribunal Constitucional, pretende que, nos termos do artigo 70°, n° 1, alínea b) do LTC, seja declarada a inconstitucionalidade da norma do artigo 107, n° 6 do Código Processo Penal, quando interpretada no sentido de que o arguido preso preventivamente que vê os prazos da sua prisão preventiva substancialmente agravados, de forma automática, nos termos e para os efeitos do artigo 251 n° 3 e 4 do CPP, deverá, querendo, requerer o prorrogamento dos prazos constantes do artigo 107, n° 6 do CPP, sem que tais prazos operem também de forma automática a favor do arguido.
XX) No modesto entendimento do ora recorrente esta norma, com esta interpretação e este sentido, e por todos os motivos explanados no recurso, viola simultaneamente os princípios e direitos constitucionalmente protegidos nos artigos 13° (princípio da igualdade), 18°, n° 2 e 3 (direito a manter a extensão e o alcance, nomeadamente do direito ao recurso, apesar da restrição), 20°, n° 4 (direito a um processo equitativo) e o artigo 30°, n° 1 (direito ao recurso), todos da CRP.
XXI) Face ao supra exposto, deve ser declarada a inconstitucionalidade da norma do artigo 107, n° 6 do CPP nos precisos termos supra referidos e, no seu lugar, a contrario, deverá ser adotado e prevalecer o entendimento de que o arguido preso preventivamente que vê os prazos da sua prisão preventiva substancialmente agravados, de forma automática, nos termos e para os efeitos do artigo 215° n 3 e 4 do CPP, deverá também ver prorrogado, de forma automática, os prazos constantes do artigo 107, n° 6 do CPP, sem necessidade de requerer tal prorrogamento, por ser este o entendimento que está em conformidade com os princípios da nossa Constituição, e, em consequência, deverá considerar-se como alargado o prazo de interposição do Recurso do ora recorrente para a Relação para 30 dias, admitindo-se este como tempestivo.
3.2. Por seu turno, o Ministério Público rematou as suas alegações, nestes termos:
1.º Qualificado o processo de especial complexidade, os prazos de prisão preventiva podem ser alargados nos termos do artigo 215.º, n.ºs 3 e 4 do CPP;
2.º A possibilidade que é conferida ao arguido de, em processos assim qualificados, pedir prorrogação dos prazos de interposição de recurso (artigo 107.º, n.º6, do CPP) afasta a violação da Constituição, não levando aquela exigência à violação do direito ao recurso consagrado no artigo 32.º, n.º1 da Constituição.
3.º Acresce que aquele ónus é de fácil cumprimento, aplica-se também aos restantes sujeitos processuais e tem fundamento.
4.º Deve, pois, negar-se provimento ao recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
4. Importa, antes de mais, delimitar o objeto do recurso, em face da questão colocada pelo recorrente.
O recorrente indica pretender ver apreciada uma interpretação do n.º 6 do artigo 107.º do Código de Processo Penal, o que na economia da motivação apresentada, refletida nas conclusões XIV a XVI, corresponde à interpretação literal do preceituado, no que concerne à necessidade de formulação de requerimento por parte de arguido preso preventivamente em procedimento declarado de excecional complexidade para ver apreciada, e subsequentemente, decidida a prorrogação dos prazos previsto no mesmo preceito. Assim, o sentido normativo cuja conformidade constitucional vem posta em crise cinge-se à opção legislativa de vincular a prorrogação de prazos processuais em procedimentos de excecional complexidade para arguido preso preventivamente ao princípio do pedido, sem qualquer outro critério normativo aduzido pelo Tribunal a quo.
Por outro lado, pese embora o recorrente argumente com a automaticidade da elevação dos prazos máximos de prisão preventiva decorrente do preceituado nos n.ºs 3 e 4 do artigo 215.º do Código de Processo Penal - e que qualifica de agravação substancial - não se encontra aí o plano de ilegitimidade constitucional questionado. Pretende-se confrontar, ou contrapor, esse conteúdo normativo – e os efeitos que acarreta para os direitos de defesa do arguido – sem a necessidade de pedido, com os requisitos impostos pelo n.º 6 do artigo 107.º do Código de Processo Penal para a prorrogação de prazos processuais do arguido preso preventivo no mesmo processo.
A pretensão do recorrente, desenvolvida nas alegações apresentadas, encontra-se, então, também na correlação entre tais normas, enquanto componentes do regime dos procedimentos de excecional complexidade, vistas na perspetiva do asseguramento do direito de defesa do arguido e, dentre estas, do direito ao recurso do arguido da decisão final condenatória. Na ótica do recorrente, a «forma automática» da elevação dos prazos contemplada nos n.ºs 3 e 4 artigo 215.º do Código de Processo Penal impõe, por efeito da garantia do direito ao recurso do arguido, e por aplicação dos parâmetros de igualdade e de proporcionalidade, como «compensação» e «correspondência equitativa» ao prolongamento da privação da liberdade, que também os prazos de recurso sejam, no mesmo processo, e correspondentemente, automaticamente elevados «a favor do arguido».
5. Feita esta primeira precisão, verifica-se que, configurada a questão colocada à apreciação deste Tribunal como referida indistintamente aos vários prazos referidos no indicado n.º 6 do artigo 107.º do Código de Processo Penal, o recorrente restringe a sua argumentação a apenas um desses prazos: o prazo de recurso previsto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 411.º do Código de Processo Penal, o que encontra consonância na invocação do direito ao recurso como parâmetro constitucional violado.
Ora, foi essa apenas a dimensão normativa do nº 6 do artigo 107º do Código de Processo Penal aplicada na decisão recorrida, que decidiu reclamação do despacho que não admitiu recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra do acórdão condenatório por extemporaneidade, o que significa que a questão colocada não é admissível na sua plenitude, por falecer o pressuposto de efetiva aplicação, como ratio decidendi, na vertente relativa aos demais prazos previstos como prorrogáveis no n.º 6 do artigo 107.º do Código de Processo Penal (al. b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional).
Não será, por esse motivo, conhecido o recurso na parte relativa à subordinação da prorrogação de outros prazos, para além do aludido prazo de recurso, à apresentação de requerimento por parte de arguido preso preventivamente em processo declarado de excecional complexidade.
6. Em segundo lugar, verifica-se igualmente que a questão normativa (admissível), não passa pela discussão sobre a suficiência ou exiguidade do prazo de recurso em procedimentos de excecional complexidade, mas sim, e apenas, sobre o condicionamento do incidente de prorrogação do prazo de recurso a manifestação de vontade, através de requerimento, por parte de arguido em prisão preventiva.
Diferentemente do recorrente, o Ministério Público considera que a declaração de excecional complexidade não justifica, automaticamente, o alargamento dos prazos de interposição de recurso e que o ónus imposto ao arguido para obter a prorrogação desse prazo é de fácil cumprimento.
7. A norma do Código de Processo Penal, e aquela com a qual é posta em relação, apresentam a seguinte redação:
Artigo 107.º
(Renúncia ao decurso e prática de ato fora do prazo)
1. (...)
2. (...)
3. (...)
4. (...)
5. (...)
6. Quanto o procedimento se revelar de excecional complexidade, nos termos da parte final do n.º3 do artigo 215.º, o juiz, a requerimento do Ministério Público, do assistente, do arguido ou das partes civis, pode prorrogar os prazos previstos nos artigos 78.º, 287.º e 315.º e nos n.ºs 1 e 3 do artigo 411.º, até ao limite máximo de 30 dias.
Artigo 215.º
(Prazos de duração máxima da prisão preventiva)
1. (...)
2. (...)
3. Os prazos referidos no no n.º1 são elevados, respetivamente, para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses, e três anos e quatro meses, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excecional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos e de ofendidos ou ao caráter altamente organizado do crime.
4. A excecional complexidade a que se refere o presente artigo apenas pode ser declarada durante a primeira instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente.
5. (...)
6. (...)
7. (...)
8. (...)
8. A redação supra enunciada resulta, para ambos os preceitos, da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, embora a respetiva introdução no ordenamento processual penal tenha ocorrido em momentos distintos.
8.1. A estipulação de prazos de prisão preventiva mais elevados para os procedimentos declarados de excecional complexidade encontra-se logo na versão original do artigo 215º do Código de Processo Penal, tal como aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro.
A primeira modificação do artigo 215.º do Código de Processo Penal decorre da Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, com alteração da redação do n.ºs. 2 e 3, a que se segue a redação em vigor, introduzida, como se disse, pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto. Contempla este último diploma, em especial, a redução dos prazos máximos de prisão preventiva, nas várias fases do processo - e bem assim dos prazos máximos de prisão preventiva em procedimentos declarados de excecional complexidade - e a consagração inquívoca, através da introdução do n.º4, do incidente de declaração judicial de excecional complexidade, ao mesmo tempo que revoga a única norma relativamente à qual era discutida a qualificação genérica do procedimento como de excecional complexidade em função da perseguição de específicos tipos penais (artigo 54.º do Decreto Lei n.º 15/93, de 22/1, revogado pela alínea b) do artigo 5.º da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto; cfr. sobre essa discussão, o Acórdão deste Tribunal n.º 246/99, acessível, como os demais adiante referidos, em www.tribunalconstitucional.pt, e o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 2/2004, do Supremo Tribunal de Justiça, Diário da República, 1ª série, de 2 de abril de 2004).
Uma vez proferida, a declaração de excecional complexidade tem como consequência um conjunto de efeitos jurídico-processuais, esparsos ao longo do Código de Processo Penal (crítico quanto a essa dispersão, Paulo Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição, 2009, p. 279). Entre esses efeitos jurídicos, componentes do regime específico dos procedimentos de excecional complexidade – em virtude da unidade de sentido jurídico -, encontra-se a elevação dos prazos máximos da prisão preventiva e, a partir de 1 de janeiro de 1999, a possibilidade de prorrogação de um conjunto de prazos processuais.
8.2. Com efeito, a inscrição da possibilidade de prorrogação de um conjunto de prazos processuais em procedimentos declarados de excecional complexidade no artigo 107.º do Código de Processo Penal foi introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, com início de vigência no primeiro dia do ano seguinte (salvo para um conjunto de artigos, em que não se incluiu o artigo 107.º).
De acordo com o então n.º 5 do preceito, nesses procedimentos, passou o juiz, a requerimento do arguido, do assistente ou das partes civil, a poder prorrogar os prazos do artigo 78.º (prazo de contestação do pedido cível), 287.º (prazo para requerer a abertura de instrução) e 315.º (prazo para a apresentação de contestação em julgamento), todos do Código de Processo Penal, até ao limite máximo de 20 dias.
A razão para a introdução dessa norma encontra-se na exposição de motivos da proposta de lei na origem da Lei n.º 59/98, de 25 de agosto (proposta de lei n.º 157/VII). Lê-se no seu ponto 18:
«[E]limina-se a possibilidade da prática do ato fora do prazo, anômala no processo penal, e, em contrapartida, permite-se que o juiz prorrogue os prazos para a prática de atos fundamentais como requerimento de instrução, a contestação penal e a contestação do pedido de indemnização civil, em casos de excecional complexidade, procurando-se assim, uma melhor efetivação, no processo, do princípio da igualdade de armas (artigo 107.º, n.º5)».
O alargamento da possibilidade de prorrogação também ao prazo de recurso da sentença final, estipulado no artigo 411.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, e a sua elevação até ao limite máximo de 30 dias chega com a revisão operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto. Paralelamente, alarga-se a legitimidade para requerer a prorrogação de qualquer dos prazos ao Ministério Público.
Como amiúde na revisão do ordenamento processual penal de 2007, a ausência de recolha sistematizada dos trabalhos preparatórios da proposta de lei n.º 109-X, na origem da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, não permite determinar com precisão as razões que presidiram à inovação legislativa aqui relevante: possibilidade de prorrogação do prazo de recurso (do arguido). Não custa, porém, considerar que o legislador reconheceu a subsistência das mesmas razões que justificavam materialmente a possibilidade de prorrogação dos prazos de contestação - penal e civil - e de requerer a abertura de instrução também no plano do exercício do direito ao recurso: melhor efetivação do princípio da igualdade de armas, de forma a que a maior tempo para a perseguição criminal corresponda equitativamente maior tempo para a defesa.
9. A necessidade de extender os prazos processuais de arguição em função da excecional complexidade do procedimento havia, aliás, sido afirmada por este Tribunal Constitucional pouco antes da revisão do Código de Processo Penal operada em 2007, através do Acórdão n.º 42/2007, prolatado em 23 de janeiro. Apreciou-se nesse aresto a norma do artigo 123.º do Código de Processo Penal, de acordo com a qual, num processo especialmente complexo, o arguido dispõe de três dias para arguir irregularidades de atos de inquérito, face ao princípio consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, segundo o qual o processo criminal assegura todas as garantias de defesa. Considerou, então, o Tribunal que a diferenciação do tempo disponível para a investigação em procedimentos especialmente complexos coloca situações em que o tempo para a defesa será objetivamente exíguo, em termos de afetar, nessa medida, as garantias de defesa. Para atingir essa conclusão, ponderou o Tribunal a ausência de norma que permitisse o alargamento do prazo em atenção «às circunstâncias de objetiva inexigibilidade» do prazo de arguição em presença, como agora acontece com os atos processuais previstos no atual n.º 6 do artigo 107.º do Código de Processo Penal.
Releva para o caso em apreço, especialmente o seguinte segmento desse aresto:
«(...) O nº 1 do artigo 32º da Constituição determina que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa.
Do ponto de vista substancial, o princípio consagrado implica a concessão de uma efetiva possibilidade de exercício da defesa (o poder de arguir vícios dos atos praticados no inquérito é inquestionavelmente um direito de defesa), o que pressupõe naturalmente o acesso à informação necessária, ou seja, aos elementos do processo. Tal acesso e a aquisição da informação inerente consomem tempo, variando, naturalmente, a quantidade de tempo em função da dimensão material e da complexidade do processo.
O artigo 123º do Código de Processo Penal estabelece um prazo de três dias para a arguição de nulidades, concretizando o princípio da celeridade processual.
No entanto, como entendeu o Tribunal Constitucional no Acórdão nº 406/98 (www.tribunalconstitucional.pt), o princípio da celeridade processual não se sobrepõe ao núcleo essencial das garantias de defesa. De resto, nesse Acórdão, o Tribunal julgou inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição, o artigo 287º, nº 1, do Código de Processo Penal, na versão anterior ao Decreto-Lei nº 317/95, de 27 de novembro, na medida em que fixava em cinco dias, contados da notificação da acusação, o prazo para o arguido requerer a abertura da instrução, com o fundamento de tal prazo, dada a sua exiguidade, não permitir à defesa a gestão da sua estratégia e das correspondentes iniciativas.
Cabe salientar, neste contexto, que o Código de Processo Penal determina a elevação dos prazos de duração máxima de prisão preventiva nos casos em que é declarada a especial complexidade do processo (artigo 215º, nº 3), reconhecendo a necessidade de diferenciar os processos em função da respetiva complexidade.
Ora, o prazo de três dias a contar da notificação da acusação para arguição de vícios dos atos praticados no inquérito em casos de especial complexidade pode afigurar-se insuficiente, já que se repercute, em princípio, nas possibilidades de identificação desses vícios e, consequentemente, no exercício dos direitos de defesa. Na verdade, o reconhecimento da especial complexidade de um processo repercutir-se-á, não só no tempo disponível para a investigação, mas também no tempo para a defesa exercer os seus direitos de defesa.
Por outro lado, se é certo que haverá irregularidades cuja natureza as tornará questão de fácil e imediata identificação, em outros casos, em processos de especial complexidade, essa complexidade afetará, necessariamente, a avaliação pela defesa de certas irregularidades (recorde-se que estava em causa a arguição de irregularidades de atos de inquérito e que a acusação deduzida contra 57 arguidos tinha 477 páginas com mais de uma centena de alegados lesados e 215 testemunhas de acusação arroladas, podendo a irregularidade repercutir-se na acusação). Deste modo, conjugando a especial complexidade do processo com a natureza da irregularidade em causa, haverá obviamente situações em que o prazo de três dias para arguir a irregularidade é objetivamente exíguo. Ora, não contemplando a lei qualquer possibilidade de alargamento do prazo em atenção às circunstâncias de objetiva inexigibilidade, de acordo com a complexidade do processo e a natureza da irregularidade, entende o Tribunal que a norma em crise é inconstitucional por afetar, nessa medida, as garantias de defesa (artigo 32º, nº 1, da Constituição)».
10. O recorrente sustenta que a exigência de requerimento de prorrogação do prazo de recurso a arguido preso preventivo em procedimento declarado de excecional complexidade viola simultaneamente o direito ao recurso (n.º 1 do artigo 32.º da Constituição) e os princípios da igualdade (artigo 13.º) e da proporcionalidade (n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º), assim como o direito a um processo equitativo (n.º 4 do artigo 20.º)
Importa notar que, pese embora singularizados na argumentação do recorrente, os parâmetros contidos nos artigos 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3 e 20.º, n.º 4 da Constituição encontram como referencial comum e via de materialização a tutela do direito ao recurso, integrante do núcleo essencial do complexo de garantias de defesa do arguido, cuja tutela encontra sede no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição.
Com efeito, o princípio da igualdade material é convocado pelo recorrente na dimensão de igualdade material no tempo de exercício do direito ao recurso, articulado com o princípio da proporcionalidade, enquanto limite à restrição do direito fundamental à liberdade em virtude da sujeição à medida de coação de prisão preventiva. E, na medida em que o direito ao recurso do arguido da decisão final condenatória - que entende suprimido pela norma questionada - constitui elemento precípuo do processo equitativo, considera o recorrente infringido também o n.º 4 do artigo 20.º da Constituição.
Será, assim, a partir do parâmetro matricial de asseguramento das garantias de defesa do arguido, em que se inscreve o direito ao recurso, interpretadas à luz do respeito pelo processo equitativo, ou due process of law, no âmbito de processo penal orientado para a defesa, que cabe apreciar a questão colocada pelo recorrente. Nas palavras de J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4ª edição, 2007, p. 516:
«A fórmula do n.º1 [do artigo 32.º], é sobretudo uma expressão condensada de todas as normas restantes deste artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de defesa. Todavia, este preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam que decorrer do princípio da proteção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. Em ‘todas as garantias de defesa’ engloba-se indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Dada a radical desigualdade material de partida entre a acusação (normalmente apoiada no poder institucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante específicas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas. Este preceito pode, portanto, ser fonte autónoma de garantias de defesa. Em suma, a ‘orientação para a defesa’ do processo penal revela que ele não pode ser neutro em relação aos direitos fundamentais (um processo em si, alheio aos direitos do arguido), antes tem neles um limite infrangível».
11. O recorrente alicerça a violação do direito ao recurso e do princípio da igualdade na utilização pelo legislador de «dois pesos e duas medidas».
Essa desigualdade no tratamento de posições subjetivas do arguido estará, de acordo com a teleologia valorativa do regime dos processos de excecional complexidade, na sujeição da prorrogação do prazo de recurso a impulso processual da sua parte – requerimento - quando o mesmo não aconteceria na elevação dos prazos da prisão preventiva, configurada como automática.
12. Desde logo, não merece adesão o entendimento de que a aquisição processual do regime dos procedimentos de excecional complexidade pode, face ao ordenamento vigente nos autos, ter lugar sem impulso processual autónomo e exercício de vontade exterior ao legislador. A qualificação do procedimento como de excecional complexidade pressupõe sempre uma decisão judicial proferida em função de critério material prudencial, de razoabilidade e de justa medida, assente em fatores objetivos que revelem e projetem dificuldades acrescidas de investigação, com reflexos nos termos e na duração do procedimento, justificativas da concreta elevação dos prazos máximos de prisão preventivo (cfr. Acórdãos n.º 287/05 e 555/08).
Nessa medida, e pelo menos após a Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, ao contrário do que afirma o recorrente, não se encontra na previsão dos n.ºs 3 e 4 do artigo 215.º do Código de Processo Penal qualquer automaticidade na declaração do procedimento de excecional complexidade, e no desencadear dos respetivos efeitos, pois, mesmo quando suscitada oficiosamente, a qualificação implica invariavelmente incidente contraditório que culmina com decisão fundamentada de verificação ou inverificação dos requisitos estabelecidos pelo legislador. A qualificação do procedimento como de excecional complexidade adquire-se sempre ope judicis, e não, como pressupõe o recorrente, ope legis, por ação de mecanismo legal independente da participação da vontade, sem necessidade de ato judicial (declaratório) e de procedimento incidental.
Não existe, então, a operação automática avançada como premissa da conclusão de tratamento desigual de situações materialmente análogas, em violação do princípio da igualdade (processual).
13. Mesmo que assim não fosse, e se reconhecesse a presença de situações iguais tratadas de modo diferente, constitui entendimento constante e uniforme do Tribunal Constitucional que o princípio da igualdade não lhe consente a avaliação substitutiva da razoabilidade das medidas legislativas, escolhendo e impondo a solução que considere mais justa e/ou oportuna. O controlo dos atos normativos ao abrigo desse princípio, consagrado no n.º 1 do artigo 13.º da CRP, conforma-se, antes, como de cunho negativo, de controlo da arbitrariedade, de forma a verificar se a solução legislativa se apresenta em absoluto intolerável ou inadmissível (cfr., entre muitos, os Acórdãos n.ºs 142/85, 188/90, 231/94, 184/2008 e 153/2012; e Gomes Canotilho, A concretização na Constituição pelo Legislador e pelo Tribunal Constitucional, Nos dez anos da Constituição, pp. 353 a 357).
Como sublinham J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 339: «a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relação de vida que hão de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só quando os limites externos da ‘discricionaridade legislativa’ são violados, isto é, quando a medida legislativa não tem adequado suporte material, é que existe uma ‘infração’ do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio».
Ora, no quadro normativo em apreço, não se encontra no segmento colocado em crise do n.º 6 do artigo 107.º do Código de Processo Penal, na sua dimensão jurídico-subjetiva, e enquanto componente objetiva das garantias de defesa inscritas no regime de procedimentos de excecional complexidade, solução normativa desprovida de justificação objetiva e razoável, ofensiva da isonomia inscrita na proteção plena dos direitos de defesa do arguido conferida pelo artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, como da conformação do processo penal como equitativo, informado pelos princípios materiais de justiça (sobre a dimensão objetiva das garantias de defesa, cfr. o recente Acórdão n.º 540/2012).
Denota-se na submissão do incidente ao princípio do pedido e no afastamento da oficiosidade na prorrogação do prazo de recurso, o racional de auto-responsabilização do titular do direito na gestão da defesa dos seus interesses processuais, conferindo-lhe o ónus de requerer a prorrogação dos prazos em seu benefício previstos no n.º 6 do artigo 107.º, mormente o prazo geral de recurso. Na verdade, não se vê quem melhor que o sujeito processual afetado poderá aferir da oportunidade do pedido e fazer prevalecer em juízo as situações em que o prazo geral de recurso se revele insuficiente, em função da complexidade do processo e da concreta maior onerosidade na elaboração da motivação de recurso.
No plano sistemático, a solução normativa questionada apresenta-se ainda fundada no princípio da realização em tempo útil da justiça penal, sem prejuízo das garantias de defesa (n.º 2 do artigo 32.º da Constituição), pois permite afastar do perímetro da prorrogação do prazo de recurso os casos em que não exista justificação bastante ou o beneficiário do prazo entenda, pela simplicidade das questões a colocar à apreciação do Tribunal ad quem, ou em virtude de escolha estratégica assente na minimização das delongas processuais, que o prazo geral é suficiente.
Os prazos de recurso conformam-se como prazos perentórios, em obediência ao interesse de ordem pública na tutela jurisdicional efetiva em tempo congruo, com respeito pelas garantias de defesa, pelo que não se mostra arbitrário adstringir o direito à prorrogação do prazo de recurso ao requisito de formulação de requerimento, como forma a promover a auto-responsabilização do titular da posição subjetiva e de assegurar a verificação judicial de pressupostos materialmente justificadores da inerente extensão da duração do processo.
14. Acresce que não se encontra na situação de privação da liberdade do arguido subsídio relevante na aferição do respeito pela norma questionada do princípio da igualdade, na dimensão de proibição do arbítrio, e da proporcionalidade, por restrição excessiva da esfera de direitos de defesa conexionada ou desencadeada pela privação da liberdade, ofensiva do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição. O arguido preso preventivamente não sofre qualquer restrição, por esse facto, dos seus direitos de defesa em geral, e do direito ao recurso em particular, nem fica por qualquer forma vedada ou postergada a possibilidade de desencadear o incidente previsto no n.º 6 do artigo 107.º do Código de Processo Penal. O preceituado aplica-se nos mesmos termos a todos os sujeitos processuais legitimados para recorrer, sem que se reconheça ao arguido preso preventivamente em processo declarado complexo, por esse facto, e necessariamente, impedimento ou dificuldade substancialmente acrescida na formulação do pedido de prorrogação do prazo de recurso.
15. Cabe referir que, no que concerne especificamente ao direito ao recurso, o Tribunal Constitucional tem afirmado a liberdade do legislador na concretização do seu âmbito de aplicação e conteúdo, mormente através da imposição de ónus no modo de exercício do direito ao recurso, desde que preservado o núcleo essencial das garantias de defesa (cfr., entre muitos, os Acórdãos n.ºs 191/03, 381/06, 215/07 e 485/08).
Recorrendo à síntese do Acórdão n.º 485/08:
«Especificamente quanto ao processo criminal, em que é convocável o parâmetro constitucional do princípio das garantias de defesa, incluindo expressamente o direito ao recurso, tem-se considerado ser lícito ao legislador, na sua regulamentação, impor determinados ónus aos diversos intervenientes processuais. Mister é, no entanto, que, ao fazê-lo, o legislador respeite o princípio da proporcionalidade. Na verdade, a natureza de direito fundamental que desde sempre o Tribunal Constitucional reconheceu ao direito de recurso das decisões penais finais (maxime se condenatórias) e que o legislador constitucional reforçou, ao consagrá-lo explicitamente, na revisão constitucional de 1997, com o aditamento feito na parte final do n.º 1 do artigo 32.º (“O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”), convoca diretamente a aplicabilidade do princípio da proporcionalidade, não apenas para proscrever soluções legais negatórias da admissibilidade do recurso, mas também como critério aferidor da legitimidade dos condicionamentos e da tramitação legal dos recursos. E o juízo de proporcionalidade a emitir neste domínio não pode deixar de tomar em consideração três vetores essenciais: (i) a justificação da exigência processual em causa; (ii) a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado; e (iii) a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento do ónus»
Como se viu, o regime normativo do n.º 6 do artigo 107.º do Código de Processo Penal, na sujeição do incidente ao princípio do pedido, encontra justificação na promoção da efetividade do sistema processual, por via da auto-responsabilização do titular do direito subjetivo, e não aduz onerosidade significativa, em termos de reputar desproporcionada, por excessiva, a sua imposição.
Mesmo que se aceite que, no universo dos arguidos, o preso preventivo encontra dificuldades e obstáculos acrescidos na gestão da sua defesa e no contacto com o seu defensor, decorrentes da privação da liberdade de locomoção e do condicionamento de horários de visita impostos pelo sistema institucional contentor, com reflexos em maior morosidade na decisão informada sobre a interposição de recurso, ainda assim, e como bem observa o Ministério Público, o ónus de formulação de requerimento, sem especiais formalidades impostas por lei, mostra-se de fácil cumprimento. Na hipótese normativa considerada, a excecional complexidade já se encontra declarada e processualmente adquirida e não se conhece jurisprudência que exija motivação aprofundada do pedido. Motivação essa sempre respaldada – e simplificada – pela autonomia estratégica da defesa.
Por outro lado, a omissão do pedido de prorrogação previsto no n.º 6 do artigo 107.º do Código de Processo Penal não preclude a apresentação de recurso, que permanece admissível, desde que não ultrapassado o prazo geral dos n.ºs. 1 e 3 do artigo 411.º do Código de Processo Penal.
Acresce, como fator corretor de indevida desproteção processual, perante perturbação alheia a inércia, desatenção ou menor diligência do sujeito que ponha em causa a real possibilidade de exercício do direito ao recurso, a faculdade de invocar o instituto do justo impedimento, de acordo com n.º 2 do artigo 107.º do Código de Processo Penal (cfr. Acórdão n.º 314/07).
Nestes termos, não tem o recorrente razão quando qualifica a norma do n.º 6 do artigo 107.º do Código de Processo Penal como «preceito restritivo, que na prática suprim[e] o direito ao recurso» (conclusão XIV), do mesmo modo que não estamos perante quadro de aplicação do entendimento de Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª edição, 2010, pp. 451 e 452, em anotação ao artigo 20.º, a que se faz alusão na conclusão XVIII:
«É possível [...] fundar constitucionalmente um genérico direito de recorrer das decisões jurisdicionais. E, se é certo que cabe ao legislador ordenário concretizar, com maior ou menor amplitude, o seu âmbito de aplicação e conteúdo, está-lhe vedado abolir in toto ou afetá-lo substancialmente através da consagração de soluções que restrinjam de tal modo o direito de recorrer que, na prática, se traduzam na supressão tendencial dos recursos (Acs. n.os 489/95, 673/95, 377/96 e 490/97 – cfr. ainda JORGE MIRANDA, Manual, IV, pág. 331).
As limitações ou restrições ao direito de recurso, estão, por isso, sujeitas aos limites constitucionais gerais e, de modo especial, aos princípios da igualdade e da proporcionalidade, pelo que as diferenciações legais não podem ser arbitrárias e as medidas restritivas do direito de recorrer não devem ser excessivas».
Como se demonstrou, não se denota no segmento questionado do n.º 6 do artigo 107.º do Código de Processo Penal diferenciação legal, nem medida restritiva do direito de recorrer, com conteúdo desproporcionado.
16. Resta apreciar o parâmetro do direito a processo equitativo, decorrente do n.º 4 do artigo 20.º da Constituição, o qual, como se disse, encontra densificação no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição (sobre o direito a processo equitativo e a sua concretização em processo penal, cfr. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 415 e, dentre a vasta jurisprudência constitucional, os Acórdãos n.ºs 109/99, 581/00, 413/02, 191/03, 159/04, 724/04, 188/05, 479/09 e 460/10).
Como vem sendo repetidamente afirmado, «a exigência de um processo equitativo, consagrada no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo. Impõe, no entanto, que no seu núcleo essencial os regimes adjetivos proporcionem aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efetiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva» (Acórdão n.º 460/11).
Ora, o que ficou dito encontra propriedade também quanto à inverificação de ofensa ao exercício de «defesa condigna e equitativa», pois permanece preservado o núcleo essencial do direito ao recurso. O respeito pelo due process, informado pelos princípios materiais de justiça e conformado de acordo com a realização de tutela judicial efetiva, em que se inclui o direito ao recurso em prazos razoáveis, mostra-se plenamente assegurado com a subordinação da prorrogação do prazo de recurso de arguido preso preventivamente em processo declarado de excecional complexidade à apresentação de requerimento.
17. Impõe-se, pelo exposto, concluir que a norma do n.º 6 do artigo 107.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que o arguido preso preventivamente em processo declarado de excecional complexidade deverá, para obter a prorrogação do prazo de recurso da decisão final condenatória, apresentar requerimento no processo, não viola o direito ao processo equitativo ou o direito ou recurso, nem ofende os princípios da igualdade processual ou da proporcionalidade, com a consequente improcedência do recurso.
III. Decisão
18. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não declarar a inconstitucionalidade do n.º 6 do artigo 107.º do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de que o arguido preso preventivamente em processo declarado de excecional complexidade, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 215.º do mesmo Código deverá, querendo, requerer a prorrogação do prazo de recurso previsto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 411.º, igualmente do Código de Processo Penal;
b) Julgar improcedente o recurso;
c) Condenar o recorrente nas custas, que se fixam, em atenção à dimensão do recurso e de acordo com o critério seguido por este Tribunal, em 25 (vinte e cinco) Ucs.
Notifique.
Lisboa, 19 de dezembro de 2012.- Fernando Vaz Ventura – João Cura Mariano – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.