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Processo n.º 413/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Vaz Ventura
Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, que A. intentou contra o Município do Porto, veio o primeiro interpor recurso para o Tribunal Constitucional, invocando a alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da Lei 28/82, 15 de novembro (LTC), do Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte, que negou provimento ao recurso de sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
2. Pela decisão sumária n.º 296/13 decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto, com a seguinte fundamentação:
“ (...)
1. Na presente ação administrativa comum, na forma ordinária, intentada por A. contra o Município do Porto, por Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, proferido em 22 de fevereiro de 2013, foi negado provimento ao recurso e confirmada a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que havia julgado procedente a exceção de prescrição e, consequentemente, absolvido o réu do pedido.
2. Inconformado, o autor A. interpôs recurso para este Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
«A., recorrente nos autos acima referidos, tendo sido notificado do, aliás, douto acórdão proferido, por não se conformar, dele vem interpor recurso para o Colendo Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), nº 1, do art. 70º, da Lei nº 28/82, de 15/11, para apreciação da inconstitucionalidade do art. 498º, nº 1, do Código Civil, quando estabeleça o prazo de três anos de prescrição, por imputada conduta ilícita, havendo elementos que mostram a discussão dos valores de indemnização entre as partes, no decurso desse prazo, e permita a declaração de prescrição, defraudando a confiança dos cidadãos, inerente ao princípio do Estado de Direito Democrático, nessa negociação, que se entende violar o disposto nos art.s 2º e do princípio nele consignado e 62º, da Constituição da República Portuguesa, a qual foi suscitada no recurso para esse Tribunal, e foi conhecida no acórdão proferido.»
3. O recurso foi admitido.
II. Fundamentação
4. Sabido que a decisão que admitiu o recurso não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional) e, entendendo-se que, no caso em apreço, o recurso não é admissível, cumpre proferir decisão sumária, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
5. No sistema português, os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade têm necessariamente objeto normativo, devendo incidir sobre a apreciação da constitucionalidade de normas ou interpretações normativas, e não sobre a apreciação de alegadas inconstitucionalidades imputadas pelo recorrente às decisões judiciais, em si mesmas consideradas, atenta a inexistência no nosso ordenamento jurídico-constitucional da figura do “recurso de amparo” contra atos concretos de aplicação do Direito.
Nas palavras do Acórdão nº 138/2006 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), a “distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.”
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, como ocorre no presente caso, a jurisprudência constitucional vem entendendo, de modo reiterado e uniforme, que são pressupostos específicos deste tipo de recurso, de verificação cumulativa, a efetiva aplicação, expressa ou implícita, da norma ou interpretação normativa, em termos de a mesma constituir “ratio decidendi” ou fundamento jurídico da decisão proferida no caso concreto, pressuposto decorrente da instrumentalidade da fiscalização concreta; a suscitação pelo recorrente da questão de inconstitucionalidade “durante o processo” e “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da Lei do Tribunal Constitucional) e o esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam.
6. No caso presente, o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional do artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil “quando estabeleça o prazo de três anos de prescrição, por imputada conduta ilícita, havendo elementos que mostram a discussão dos valores de indemnização entre as partes, no decurso desse prazo, e permita a declaração de prescrição, defraudando a confiança dos cidadãos, inerente ao princípio do Estado de Direito Democrático, nessa negociação”, sentido que entende infringir os artigos 2.º e 62.º da Constituição.
Assim colocada a questão, ressalta que o recorrente não pretende questionar um qualquer critério normativo extraído do preceituado no artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil. Ao invés, e em sintonia com o que o recorrente havia sustentado nas alegações de recurso para o Tribunal Central Administrativo Norte (cfr. conclusões 21.ª a 26.ª), é patente que a questão se reconduz diretamente à decisão recorrida, pois implica a tarefa de apurar da verificação e relevância, no caso em análise, de “elementos que mostram a discussão dos valores de indemnização entre as partes, no decurso desse prazo” e da frustração da “confiança dos cidadãos (…) nessa negociação”, questão inteiramente contida no plano infraconstitucional.
Acresce que para determinar a natureza normativa da questão colocada no recurso não basta a referência feita pelo recorrente a determinado preceito da lei, quando essa menção, ainda que sirva para identificar a disposição legal que fundamenta a concreta solução jurisdicional, é desadequada para retirar a determinação jurídica que se pretende que constitua o objeto do recurso, como no caso em apreço.
Nestes termos, não tendo sido suscitada qualquer questão de (in)constitucionalidade reportada a uma norma ou dimensão normativa e não cabendo nos poderes deste Tribunal sindicar a correção ou a bondade da solução encontrada pelo julgador na valoração das condicionantes específicas do caso concreto, não se poderá tomar conhecimento do objeto do presente recurso.
7. Sempre se diga que ainda que se descortinasse natureza normativa no objeto do recurso, este não seria de conhecer por inverificação do seu pressuposto específico de efetiva aplicação do critério normativo questionado, como “ratio decidendi” da decisão recorrida.
Na verdade, percorrendo o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, verifica-se que este em momento algum, expressa ou implicitamente, acolhe a interpretação recortada pelo recorrente como objeto do presente recurso de constitucionalidade; antes aplicou literalmente o disposto no artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil, considerando prescrito o direito de indemnização no prazo de 3 anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento da possibilidade legal de ressarcimento dos danos que sofreu.
Por consequência, qualquer que fosse a decisão do Tribunal Constitucional sobre a questão colocada, sempre subsistiria intocado o fundamento da decisão recorrida, o que veda, em obediência à natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, a apreciação do recurso.”
3. Inconformada, a recorrente reclamou da decisão sumária para a conferência, nos seguintes termos:
“Nas suas alegações de recurso para o Tribunal a quo, o A. invocou inconstitucionalidade, como consta da conclusão 24ª.
Esse Venerando Tribunal, no seu acórdão, conclui que a interpretação da norma em questão, não vio1a aqueles preceitos constitucionais, não é inconstitucional.
Interposto o presente recurso de constitucionalidade, foi o mesmo admitido pelo Tribunal a quo.
Surpreendentemente, na decisão sumária proferida, agora, diz-se que não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade, reportada a uma norma ou dimensão normativa.
O recorrente não se conforma com as decisões de que tem sido alvo, por entender haver elementos de prova, nos autos, que mostram decorrerem negociações, entre as partes, no decurso do prazo de três anos, após o facto ilícito mencionado, para ser encontrado o valor justo da indemnização que o A. reclamava.
Não obstante, o R., na ação movida, por não ter havido acordo, invocou a prescrição.
Na perspetiva do A., é saber se esta conduta será conforme à Constituição, num Estado de Direito Democrático, como é o nosso(?).
Ou seja, na prática, uma autarquia local aceita negociar com o lesado, protela as negociações... e, finalmente, diz não estar de acordo... para poder invocar a prescrição...
Proposta a ação judicial, invoca a prescrição, sendo a posição acolhida!
Em termos sintéticos, será esta a situação “sub judice”.
Daí, a dimensão normativa apresentada.
E, por isso, considerada, pelo A., inconstitucional, a norma do art. 498º, nº 1, do Código Civil, tal como referido no requerimento de interposição do recurso, que salvo o devido e muito respeito, por opinião diversa, deverá prosseguir os normais termos.”
Termos em que, e nos demais de direito, doutamente supridos, requer a V. Exas., seja revogada a decisão sumária proferida, decidindo-se prossigam os autos os normais termos.”
4. O Recorrido Município do Porto apresentou resposta, dizendo:
“1. A decisão sumária n.º 296/2013, que decidiu não conhecer o recurso em causa, não merece qualquer censura ou reparo.
2. Com efeito, não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade, reportada a uma norma ou dimensão normativa, que permita sustentar o recurso para o Tribunal Constitucional.
3. Quanto ao mais que é referido na reclamação, e porque não tem relevância para a questão tratada e soa mais a desabafo, o Recorrido não irá pronunciar-se.
4. Pelo exposto, deverá a reclamação ser indeferida, pelos fundamentos expostos na decisão sumária colocada em crise pelo Recorrente/Reclamante.”
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. O recorrente A. vem reclamar para a Conferência da decisão sumária n.º 296/2013, que decidiu não conhecer, por ausência de formulação de questão normativa de constitucionalidade, do recurso que dirigiu ao Tribunal Constitucional.
Para tanto, argumenta que suscitou questão de inconstitucionalidade, “reportada a uma norma ou dimensão normativa”, com referência ao artigo 498.º, n.º 1 do Código Civil e a “elementos de prova” que, na sua ótica, consubstanciaram o protelamento pelo Município demandado de negociações com o propósito, conseguido, de invocar a prescrição do direito à indemnização.
6. Ora, resulta claro do requerimento de interposição de recurso que o recorrente não questionou critério normativo, mormente qualquer regra ou padrão extraído do preceituado 498.º, n.º 1, do Código Civil, designadamente no plano da fixação de prescrição para o direito de indemnização, do seu prazo ou modo de contagem e da sua desconformidade com a Constituição. Na realidade, e com renovação nos termos da reclamação para a Conferência em apreço, o recorrente procura ver apreciado o relevo de elementos de facto, que apresenta, para a decisão da lide e, dentre estes, saber “se esta conduta [do Município do Porto] será conforme à Constituição”.
Estamos, então, perante problema desprovido de natureza normativa, inteiramente contido na escolha e aplicação do direito infraconstitucional às particularidades irrepetíveis do caso em apreço, domínio onde forçosamente se inscreve o relevo (ou a sua ausência) da específica conduta extraprocessual do demandado, de âmbito negocial.
E, como se disse na decisão sumária reclamada, esse objeto não é idóneo à fiscalização concreta da constitucionalidade cometida ao Tribunal Constitucional na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição e concretizada na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
7. Acresce que, mesmo que fosse possível – e não é – configurar a enunciação constante do requerimento inicial como colocando questão normativa de constitucionalidade, sempre cumpriria concluir pela incognoscibilidade desse impulso, na medida em que o Tribunal a quo não aplicou, como ratio decididendi, qualquer critério de que faça parte a ponderação de elementos exteriores ao momento do conhecimento do direito por parte do lesado.
Em consequência, intocado o fundamento decisório em que assentou a decisão recorrida, sempre faleceria utilidade ao recurso interposto, enquanto instrumento dirigido à reforma do decidido (artigo 80.º, n.º2 da LTC).
8. Cumpre, pelo exposto, confirmar, a decisão sumária reclamada.
III. Decisão
9. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão sumária n.º 296/2013.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, tendo em atenção os critérios seguidos por este Tribunal e a dimensão do impulso desenvolvido.
Notifique.
Lisboa, 15 de Julho de 2013. – Fernando Vaz Ventura - Pedro Machete - Joaquim de Sousa Ribeiro.