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Proc.º n.º 222/03
2ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, neste Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1. A., identificada nos autos, reclama para este Tribunal Constitucional, nos termos do art.º 76.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua redacção actual (doravante designada apenas por LTC), do despacho do Relator do Supremo Tribunal de Justiça, de 09 de Janeiro de 2003, que lhe indeferiu o requerimento de interposição de recurso para este Tribunal do Acórdão daquele Supremo, de 01/10/2002 que decidiu conceder a revista pedida pelos AA., revogar a sentença recorrida, julgar a acção procedente e condenar a R. nos pedidos formulados na acção.
2. Para assim decidir o despacho reclamado considerou que a reclamante nunca suscitara a inconstitucionalidade da norma da alínea c), do n.º
2, do art.º 1422.º do Código Civil antes da prolação do acórdão recorrido.
3. Fundamentando a sua reclamação, a reclamante alega que “perante a interpretação, salvo o devido respeito, anómala e violadora da Constituição sufragada no Douto Acórdão, a Recorrente suscitou a nulidade processual consistente na não intervenção do Pleno deste Venerando Tribunal e pugnou por tal intervenção, não tendo deixado de suscitar a questão da constitucionalidade” e que “estamos in casu perante a inconstitucionalidade da interpretação de uma norma feita numa decisão judicial, e não da inconstitucionalidade de qualquer norma, sendo que a interpretação sufragada nessa decisão, e que se pretende pôr em causa, constitui novidade por ser contrária à única jurisprudência deste Venerando Supremo Tribunal de Justiça (cfr. Ac. STJ, de 16/12/93, [em linha
www.dgsi.pt], processo n.º 084135”.
4. Os reclamados responderam sustentando que a reclamante dispusera de várias oportunidades para alegar a inconstitucionalidade da interpretação sufragada pelos ora reclamados, como seja na contestação, no apenso de oposição aos embargos de obra nova e até mesmo nas contra-alegações apresentadas no
âmbito do recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça, e que não obstante isso o não fizeram. Mais argumentam que a interpretação adoptada pelo Acórdão recorrido não pode ser tida como insólita e imprevisível, com a qual a reclamante não pudesse razoavelmente contar, até porque a decisão do próprio acórdão nem sequer é unânime, contendo dois votos de vencido e, além do mais, que a reclamante “não invoca a inconstitucionalidade da norma constante do art.º
1422.º, n.º 2, alínea c) do C. Civil, mas a decisão constante do Acórdão proferido pelo Supremo tribunal de Justiça, em 01.10.2002”.
5. O Ex.mo Magistrado do Ministério Público neste Tribunal Constitucional pronunciou-se, no seu parecer, pela improcedência da reclamação,
«já que não foi proferida nos autos, pelo STJ, qualquer “decisão surpresa”, de conteúdo insólito e imprevisível, com a qual a reclamante não pudesse razoavelmente contar” [....], pois que “ o objecto da controvérsia entre recorrente e recorrida incidia perfeitamente sobre a interpretação da norma a que vem reportado o recurso de fiscalização concreta».
B – A fundamentação
6. Constitui jurisprudência firme e constante deste Tribunal Constitucional que, nos recursos de fiscalização concreta de inconstitucionalidade interpostos ao abrigo do art.º 70.º, n.º 1, alínea b) da LTC, a inconstitucionalidade da norma efectivamente aplicada e que se pretenda ver apreciada tem de se ser suscitada, de acordo com o disposto no artigo
75.º-A, n.os 1 e 2 da mesma LTC, em momento processual funcionalmente adequado, entendendo-se como tal aquele que propicie que ela seja apreciada e decidida na decisão recorrida.
A ratio de uma tal posição é evidente: é que, proferida a decisão, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria da causa.
Tal circunstância explica que não possam ser havidos como momentos processual e funcionalmente adequados de suscitação da inconstitucionalidade aqueles incidentes de que a decisão recorrida é passível, como a arguição da nulidade da decisão ou o pedido da sua reforma, ressalvando-se, como é óbvio, a inconstitucionalidade que se impute às próprias normas que regem esses incidentes.
Esta regra apenas tem sido afastada por este Tribunal - e aqui por evidente exigência da garantia constitucional do acesso aos tribunais consagrada no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa - naqueles casos em que o interessado não teve a oportunidade de suscitar a questão em virtude de não lhe ter sido dada qualquer oportunidade para intervir no processo antes da decisão; na hipótese de, não obstante ter intervindo, a questão de inconstitucionalidade só ter podido colocar-se perante um circunstancionalismo ocorrido já após a sua
última intervenção processual e antes da decisão e, finalmente, se ao interessado não for exigível que antevisse a possibilidade de aplicação da norma ao caso concreto, de modo a impor-lhe o ónus de suscitar a questão antes da decisão. Caberão, nesta última hipótese, aqueles casos anómalos ou excepcionais em que o interessado seja surpreendido por uma interpretação insólita ou imprevisível da norma aplicada.
Na situação em apreço, a reclamante apenas suscitou a inconstitucionalidade da norma da alínea c) do n.º 2 do art.º 1422.º do Código Civil precisamente no articulado da reclamação para a conferência, de fls. 45 e ss. do translado.
Ora, em face da doutrina acima exposta, não poderá considerar-se o momento de apresentação de tal articulado como sendo processual e funcionalmente adequado para suscitar a inconstitucionalidade da norma em questão.
Resta, porém, saber se o caso não caberá na excepção que se deixou recortada: a da reclamante poder eventualmente ser surpreendida por uma interpretação insólita ou imprevisível da norma em causa - a alínea c) do n.º 2 do art.º 1422.º do C. Civil.
A resposta só poderá ser negativa, como, aliás se dá conta o Ministério Público, junto deste Tribunal. É que o objecto da controvérsia existente entre os recorrentes e recorrida, ora reclamante, incidia exactamente sobre a interpretação ou sobre a determinação do sentido dessa norma, sendo manifesta a possibilidade do Supremo Tribunal de Justiça poder vir a optar pela interpretação mais desfavorável aos seus interesses, na lógica do argumentado por aqueles nas suas alegações de recurso para esse Supremo Tribunal.
Na verdade, os recorrentes sustentaram aí que «havia ficado provado, plena e inequívoca e notoriamente, a manifestação da apelada em “pretender desenvolver” aquela actividade médica (dentária), assim como a realização das necessárias obras de adaptação da fracção no âmbito dos serviços a prestar», e que tal violava o disposto no art.º 1422.º, n.º 2, al. c) do Código Civil. Ora, o acórdão recorrido veio a postar-se do lado desta interpretação ao considerar que, pedindo os autores que a ré não instalasse, na sua fracção, um consultório ou clínica ou congénere para exercício da actividade médico-dentária, se bastava, para a procedência da acção, com a iminência da violação do direito, estando esta traduzida nas obras de adaptação já executadas pela R. e que essa iminência da violação do direito estava vedada por aquela norma da alínea c) do n.º 2 do art.º 1422.º do C. Civil. Mais não fosse, seria previsível, de acordo com as regras de prudência técnica ou as leges artis do mandato forense, que, perante as alegações dos recorrentes, a interpretação por eles defendida pudesse vir a ser acolhida pelo acórdão recorrido, como, de facto veio a acontecer. A ser assim, nunca poderá ser havida como imprevisível a interpretação normativa que o Supremo acolheu e que o reclamante apoda de inconstitucional.
Falece, pois, o analisado pressuposto específico deste tipo de recurso.
C – A decisão
7 – Destarte, atento tudo o exposto este Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante com taxa de justiça de 15 UC.
Lisboa, 20 de Maio de 2003 Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos