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Proc. nº. 29/02
1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – A interpôs recurso do despacho do Director de Serviços do IRS, de 12 de Novembro de 1998, que negou provimento ao recurso hierárquico por aquele interposto para o Ministro das Finanças. Tal despacho indeferiu a pretensão de dedução das despesas efectuadas nas obras de conservação de um imóvel (Palácio
... – classificado como imóvel de interesse público pelo Decreto nº. 29 604, de
16 de Maio de 1939), ao abrigo do artigo 46º, nº. 2, alínea b) da Lei nº. 13/85, de 6 de Julho, pretensão essa que acompanhava a declaração de rendimentos, modelo 2, relativa ao ano de 1996.
Constitui fundamento essencial do referido despacho o não reconhecimento em sede de IRS do benefício fiscal que decorria do artigo 46º, nº. 2, alínea b) da Lei nº. 13/85, de 6 de Julho, em virtude de, com a entrada em vigor do Estatuto dos Benefícios Fiscais em 1 de Janeiro de 1989, apenas se manterem os benefícios cujo direito tenha sido adquirido até 31 de Dezembro de 1988 e que resultem de fonte internacional ou contratual e os benefícios temporários e condicionados. Isto, por se ter entendido que 'o regime fiscal especial estabelecido na Lei nº.
13/85, não resultar de qualquer contrato nem estar sujeito a qualquer condição, temporal ou outra, não pode aproveitar do regime transitório do artigo 2º do Decreto-Lei nº. 215/89, de 1 de Julho'.
Disse o ora recorrente nas conclusões das alegações de recurso (em tudo idênticas às da petição de recurso contencioso) para o Tribunal Central Administrativo:
'1º O benefício fiscal da alínea b) do nº2 do artº 46º da Lei nº13/85 de 6 de Julho encontra-se em vigor e deve ser reconhecido em sede de I.R.S.
2º O regime transitório do artº 2º do D.L. nº215/89 de 1 de Julho nada tem a ver com a alínea b) do nº2 do artº 46º da Lei nº 13/85, nem os artºs 2º do E.B.F. e
3º da Lei nº8/89 de 22 de Abril têm nada a ver com aquela alínea b) do nº2 do artº 46º da Lei nº 13/85.
3º Deve, pois, ser revogada a decisão que indeferiu o recurso hierárquico, decisão de fls. 23 e 24.
4º Deve, pois, a importância de 1.619.279$00 ser deduzida ao rendimento colectável que serviu de base à liquidação do I.R.S. referente a 1996, corrigindo-se assim essa liquidação.'
O Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais contra-alegou sustentando, em síntese, que tem de improceder a pretensão do recorrente no sentido da dedução de quantitativo certo nos rendimentos sujeitos a IRS relativos ao ano de 1996, por falta de lei que a suporte (cfr. fls. 71 a 77 dos autos).
Por acórdão de 7 de Novembro de 2001, o Tribunal Central Administrativo considerou que:
'I. O benefício fiscal previsto, para o imposto complementar, na alínea b) do nº. 2 do artigo 46º da Lei nº. 13/85 de 6-7 (dedução de despesas de melhorias em bens classificados do património cultural) não é de fonte internacional, nem contratual, nem assume a natureza de temporário nem condicionado – nos termos do artigo 2º do Decreto Lei nº. 215/89 de 1-7. II. Pelo que não se trata de um direito adquirido antes da entrada em vigor do Código do IRS, em 1-1-1989. III. Com a entrada em vigor do Código do IRS, operou-se a caducidade do benefício fiscal dito em I., pelo que o mesmo não se mantém em sede de IRS', pelo que negou provimento ao recurso contencioso (cf. fls. 99 a 101).
Inconformado, o contribuinte recorreu para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, tendo dito a concluir a sua alegação:
'1 – O acórdão recorrido violou o princípio insito na Constituição da protecção da confiança (doc. nº 5).
2 – Violou ainda como se demonstrou: a. o artº. 9º do Código Civil, nºs 1, 2 e 3 b. o artº. 7º do mesmo código, revogação infundada do benefício fiscal da al. b) c. o artº. 3º, nº 1 da Lei nº. 8/89 d. e o artº 2º, nº 1 do dec. Lei nº. 215/89
3 – A decisão do acórdão recorrido deve ser revogada; e
4 – Substituída por outra que dando provimento ao recurso revogue o despacho ministerial e se decrete que a pretensão do recorrente é legal, porque obedece ao disposto nos artºs. em vigor nºs. 46º nº2 al.b) da Lei nº 13/85, de 6.7 e 2º nº1 do Decreto Lei nº 215/89, de 1.7.
5 – Se proceda à correcção da liquidação do IRS de que é sujeito passivo o recorrente, referente ao ano de 1996, descontando-se no rendimento global a importância de 1.619.279$00, nos termos do requerimento apresentado com a respectiva declaração do IRS, em 2.4.1997.'
Posteriormente, a convite do relator do processo, veio o recorrente aos autos precisar 'Normas jurídicas violadas pelo Acórdão recorrido:
(...) o Violação do princípio da confiança ínsito na ideia do Estado de direito, devendo julgar-se inconstitucional a norma do artº. 2, nº. 1 do Dec. Lei nº. 215/89, de 1/07, interpretada no sentido de não salvaguardar o beneficio fiscal do artº 46º, nº2, alínea b) da lei nº. 13/85 de 6.07.'
O Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida, por acórdão de 21 de Novembro de 2001.
De novo inconformado, o contribuinte interpôs recurso, ao abrigo do artigo 70º, nº. 1, alínea b) da Lei nº. 28/82, de 15 de Novembro, para o Tribunal Constitucional, tendo dito no requerimento de interposição:
'(...) pedir a V. Exªs. que se aprecie a Constitucionalidade do artº. 2º nºs. 1 e 2 de Decreto – Lei nº. 215/89 de 1.7 e do Código do IRS com a interpretação que lhes foi dada pelo Acórdão do S.T.A. de 21/11/01, a fls. 151, com os seguintes fundamentos:
1º Segundo essa interpretação o nº. 1 daquele artº. 2º contempla apenas os benefícios fiscais indicados no nº. 2 daquele artigo (os de fonte internacional e contratual e os temporários e condicionados);
2º E o nº. 2 significa que o âmbito do nº.1 fica reduzido apenas aos quatro benefícios indicados nesse nº 2.
3º Ora, é manifesto o erro pois nem a letra da Lei nem o seu espirito consentem tal desacerto.
4º
É bem claro que o nº. 2 se limita a incluir no âmbito do nº. 1 os tais quatro benefícios.
5º Logo, no relatório do Decreto Lei nº. 215/89 se consagra a preocupação de manter os benefícios já concedidos.
6º Por outro lado afirma-se no acórdão recorrido que com a entrada em vigor do Código do IRS se operou a caducidade do benefício fiscal em foco (o do artº 46º nº. 2, alínea b da Lei nº. 13/85 de 6.7) pelo que o mesmo não se mantém em sede de IRS.
7º Também é manifesto o erro dessa interpretação do Código do IRS já que não existe qualquer norma nesse Código que expressa ou tacitamente tenha feito caducar o benefício do artº. 46º nº 2 alínea b) de Lei nº. 13/85, de 6.7, ao contrário, na correcta interpretação do nº. 1 do artº. 2º do Decreto Lei Nº. 215/89, de 1.7 foi o mesmo mantido.
8º O recorrente suscitou a questão de constitucionalidade nas alegações para o S.T.A., a fls. 114 e no complemente delas a fls. 141.
CONCLUSÃO Conclui-se que o S.T.A. no acórdão recorrido viola o princípio da protecção da confiança insito na ideia do Estado de direito – Acórdão do T.C. nº. 410/95 de
16/06/95, Procº 248/94 D. da Rép. II Série p. 13750 e consequentemente pede-se que se conceda provimento ao recurso e se revogue o Acórdão recorrido a fim de o mesmo ser reformado em conformidade com o que for decidido com a questão da invocada inconstitucionalidade invocada'.
Notificado para alegar, disse pretender que fosse apreciada a constitucionalidade 'das seguintes normas com o sentido que lhes atribuiu aquele acórdão: a. – nº1 do artº 2º do Dec-Lei nº 215/89, de 1-7. b. nº1 do artº 3º da Lei nº8/89, de 22-4. c. Artº. 46º nº2, alínea b), 1ª parte da Lei nº 13/85, de 6-7.'
tendo concluído a sua alegação do seguinte modo:
'A – Para efeitos do artº 690º do C.P.C.(nº2) declara-se que as normas jurídicas violadas foram as seguintes com a indicação do sentido correcto a. – o artº 2º nº1 e 2 do D/L nº 215/89, de 1-7
· o nº1 abrange o benefício fiscal do artº 46º nº2, alínea b), 1ª parte da Lei nº. 13/85 de 6-7. a. – o artº 3º nº1 da Lei nº8/89, de 22-4 –
· este preceito do nº1 impõe que o benefício em causa esteja em vigor. a. – ao artº 46º nº2 alínea b), 1ª parte, da Lei nº 13/85
· esta disposição continua em vigor em sede de IRS.'
Cumpre apreciar e decidir.
2 – O recorrente interpôs recurso para este Tribunal ao abrigo do artigo 70º, nº. 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº. 28/82, de 15 de Novembro com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei nº. 13-A/98, de
26 de Fevereiro).
Ora, a admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo das referidas norma e alínea está dependente da verificação, entre outros, do pressuposto processual que consiste na suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo, suscitação essa que deve ser feita perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, de modo processualmente adequado (artigo 72º, nº. 2 da LTC).
Para que tal pressuposto processual se mostre preenchido, é necessário que o tribunal saiba que tem aquela questão para apreciar, devendo pronunciar-se sobre ela.
No caso dos autos, e apesar de nas alegações de recurso para o STA ter arguido a inconstitucionalidade de várias normas, a convite do ali relator, o recorrente no requerimento de 23.05.2001 veio aos autos limitar a questão de constitucionalidade à apreciação da 'norma do artº. 2º, nº. 1 do Dec. Lei nº.
215/89, de 1/07, interpretada no sentido de não salvaguardar o benefício fiscal do artº. 46º, nº2, alínea b) da lei nº. 13/85 de 6.07'.
Deste modo, o Tribunal limitar-se-á a apreciar a constitucionalidade da norma do artigo 2º nº 1 do Decreto-Lei nº. 215/89, de 1 de Julho, diploma que aprovou o Estatuto dos Benefícios Fiscais, interpretada no sentido de considerar extinto o benefício fiscal consistente na dedução, para efeitos do imposto complementar, até 20% do rendimento global, das despesas de conservação, recuperação, restauro e valorização dos bens classificados, consagrado no artigo 46º, nº. 2, alínea b) da Lei nº. 13/85, de 6 de Julho, diploma respeitante ao património cultural português.
Esta foi a única questão de constitucionalidade suscitada durante o processo, sendo certo que as restantes normas invocadas nas alegações de recurso para este Tribunal – artigos 3º nº 1 da Lei nº 8/89 e 46º nº 2 alínea b) da Lei nº 13/85 – não foram sequer indicadas no requerimento de interposição de recurso, constituindo, assim, uma ampliação inadmissível do objecto do recurso que ficou delimitado naquele requerimento.
3 - É o seguinte o teor das normas pertinentes:
Decreto-Lei nº. 215/89, de 6 de Julho:
'Artigo 2º Regime transitório geral
1 – São mantidos nos termos em que foram concedidos, com as necessárias adaptações, os benefícios fiscais cujo direito tenha sido adquirido até 31 de Dezembro de 1988 ou aqueles que, tendo sido objecto de decisão em data posterior, forem reportados a 31 de Dezembro de 1988, nos termos do nº. 5, sendo de observar o seguinte: a. Os benefícios fiscais que se traduziam em aumento de custos, designadamente a aceleração de reintegrações e amortizações ou em deduções ao lucro tributável, efectivam-se em sede de IRS ou de IRC nos termos da legislação que lhes era aplicável; b. Os benefícios fiscais que se traduziam em isenções dos impostos parcelares e do imposto complementar correspondente convertem-se em isenção dos respectivos rendimentos em sede de IRS ou de IRC; c. As isenções de imposto de mais-valias convertem-se em exclusão dos respectivos ganhos para apuramento do rendimento ou lucro tributável em IRS ou em IRC; d. As isenções de contribuição predial concedidas às entidades referidas no artigo 50º do Estatuto dos Benefícios Fiscais anteriormente à data da entrada em vigor do presente diploma são convertidas em isenções da contribuição autárquica, com as necessárias adaptações; e. Os benefícios fiscais não compreendidos nas alíneas anteriores são substituídos por benefícios fiscais equivalentes mediante a aplicação de tabelas de conversão anexas ao Estatuto dos Benefícios Fiscais e que dele fazem parte integrante.'
Lei nº. 13/85, de 6 de Julho:
'Artigo 46º
1 – O Governo promoverá o estabelecimento de regimes fiscais apropriados à mais adequada salvaguarda e ao estímulo à defesa do património cultural nacional que se encontra na posse de particulares.
2 – O regime fiscal especial dos bens classificados do património cultural compreenderá desde logo: a. (...) b)Dedução, para efeitos do imposto complementar, até 20% do rendimento global, das despesas de conservação, recuperação, restauro e valorização dos bens classificados e dos juros das dívidas contraídas para aquisição ou conservação de bens imóveis classificados;'
Decreto nº. 29 604, de 16 de Maio de 1939, do Ministério da Educação Nacional, Direcção Geral do Ensino Superior e das Belas Artes:
'Artigo 2º São classificados monumentos de interesse público os imóveis seguintes:
(...) Distrito de Leiria Concelho de Peniche – Palácio da Serra de El-Rei.'
4 – Em ordem a apreciar o presente recurso, importa fazer uma caracterização, necessariamente breve, do sistema fiscal português vigente no momento em que o benefício fiscal em apreço foi consagrado (1985) e o sistema fiscal oriundo da reforma de 1988, que consagrou a tributação do rendimento das pessoas singulares e a tributação do rendimento das pessoas colectivas, acabando com a dispersão sistemática dos benefícios fiscais até essa data existentes, eliminando-os na grande maioria dos casos.
O sistema fiscal vigente aquando da entrada em vigor da Lei nº. 13/85, de 6 de Julho (Lei do património cultural português), foi essencialmente delineado pela chamada reforma fiscal de 1958 a 1965, a qual embora concebida como um 'início de uma reforma que culminaria na substituição do sistema dos impostos cedulares e imposto complementar pelo sistema do imposto único de rendimento' (Teixeira Ribeiro in 'A Reforma fiscal, Problemas da reforma fiscal', Coimbra Editora,
1989, pág. 121) se baseava ainda na tributação do rendimento em impostos cedulares.
Com efeito, entre 1958 e 1965, assistiu-se à promulgação de diversos códigos fiscais, criando impostos que tributavam o rendimento de forma parcelar, tributação essa que era corrigida por um imposto de sobreposição, o imposto complementar, criado provisoriamente em 1928. Nesta reforma, por oposição ao princípio da tributação de valores normais que havia sido adoptado em 1929, optou-se pela tributação de valores reais.
Com o decurso do tempo, tal sistema fiscal foi-se tornando de um arcaísmo cada vez mais notório, sobretudo se comparado com as tendências contemporâneas dos sistemas fiscais dos países mais desenvolvidos, tendo-se forjado um largo consenso nacional sobre a necessidade de o substituir, consenso que assumiu relevo na própria Constituição de 1976.
Como salienta Luís Máximo dos Santos in Fisco, nº. 99-100, 'A reforma da tributação do rendimento de 2000: o reforço do carácter unitário do IRS e a tributação das mais-valias mobiliárias', págs. 24 e 25, 'desde 1976 que a Constituição da República consagra o imperativo de que o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares deve ser único e progressivo e deve visar a diminuição das desigualdades. O cumprimento desse imperativo constitucional foi, aliás, um dos objectivos fundamentais da reforma fiscal de 1988-89. Com efeito, a essência da reforma traduziu-se na adopção do modelo do imposto
único sobre o rendimento, isto é, na adopção de um sistema de tributação global, caracterizado pela sujeição, em princípio, da totalidade dos rendimentos individuais a uma única tabela de taxas escalonadas em progressividade'.
Na realidade, para satisfazer as necessidades financeiras do Estado e a repartição justa dos rendimentos e da riqueza, realizando tais objectivos e, muito em especial, o Estado social, estabeleceu-se a progressividade do sistema fiscal, com o propósito de contribuir para diminuir a desigualdade na distribuição social dos rendimentos e da riqueza, corolário do princípio da igualdade material.
Ora, com as finalidades de unificar os inúmeros benefícios fiscais dispersos por volumosa legislação, de definir um conjunto de regras comuns aos benefícios e garantir uma maior transparência e conhecimento aos contribuintes da respectiva situação tributária, a reforma fiscal de 1988 procedeu, na linha de anteriores estudos, designadamente, o projecto de Alberto Xavier e Sousa Franco (Estatuto dos Benefícios Fiscais – Esboço de um projecto, Lisboa, 1969), à concentração dos benefícios fiscais num diploma: o Estatuto dos Benefícios Fiscais, que viria a ser aprovado pelo Decreto-Lei nº. 215/89, de 1 de Julho.
A Lei nº. 8/89, de 22 de Abril, que autorizava o Governo a legislar em matéria de benefícios fiscais em sede de IRS, de IRC, de CA e de imposto sobre sucessões e doações, fixou como um dos princípios fundamentais na concessão de benefícios fiscais em sede destes impostos o relevante interesse público, designadamente de natureza económica, social, cultural ou humanitária, estabelecendo desde logo e, por um lado, um regime transitório que salvaguardasse, com as necessárias adaptações, os benefícios fiscais cujo direito tinha sido adquirido até à data da entrada em vigor dos diplomas criadores de benefícios fiscais em sede de IRS, IRC e Contribuição Autárquica e, por outro, a noção legal de direitos adquiridos
(cf. artigos 2º, nº2 e 3º, nºs. 2 e 3).
O relevante interesse público vai assim ser determinante na decisão sobre a manutenção dos benefícios fiscais cujo direito tivesse sido adquirido anteriormente a 1 de Janeiro de 1989, ficando automaticamente extintos, com a entrada em vigor do EBF, os benefícios fiscais concedidos/reconhecidos pela Administração Fiscal.
Aliás, esta ideia-chave de eliminação de benefícios fiscais ou, dito de outro modo, da excepcionalidade dos benefícios fiscais, aliada ao respectivo carácter temporário (cf. preâmbulo do Decreto-Lei nº. 215/89, de 1 de Julho), tem vindo a marcar o sistema fiscal português da actualidade, o que pode constatar-se também na reforma fiscal de 2000, aprovada pela Lei nº. 30-G/2000, de 29 de Dezembro, que elegeu como um dos princípios fundamentais em sede de benefícios fiscais a sua concentração em duas grandes áreas: a poupança e o investimento em habitação
(cf. 1º Relatório intercalar sobre Algumas Medidas de Aprofundamento e Desenvolvimento da Reforma Fiscal da ECORFI – Estrutura de Coordenação da Reforma Fiscal, Ministério das Finanças, Junho, 2000).
5 – Este Tribunal foi já chamado a pronunciar-se sobre a suspensão de benefícios fiscais (concedidos para fomentar o investimento na subscrição de acções e outros valores mobiliários), tendo concluído pela não inconstitucionalidade das normas que impunham tal suspensão.
Assim, o Acórdão nº. 1006/96, de 8 de Outubro, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 35º vol. pág. 166 e o Acórdão nº. 1204/96, de 27 de Novembro, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 35º vol., pág. 139, destacando-se deste
último o seguinte trecho:
'Por sua vez, o Decreto-Lei nº. 321/87, a coberto da autorização concedida pelo nº. 3 do artigo 44º da Lei nº. 49/86, determinou a suspensão dos incentivos fiscais que o diploma de 1986 concedera, o que fez em nome da estabilidade dos mercados (primários e secundários de títulos) assim intentando responder à conjuntura, reequilibrando oferta e procura. A curta nota preambular daquele decreto-lei reflecte a preocupação do legislador: Considerando a conjuntura da procura nos mercados primários e secundários de títulos e tendo em atenção a diversidade de incentivos fiscais dirigidos à sua compra ou subscrição, impõe-se, do ponto de vista da estabilidade daqueles mercados, suspender por ora os benefícios fiscais em vigor. Significa o exposto – e é essa a conclusão que se pretende agora formular – ter a suspensão obedecido a motivações não fiscais (extra-fiscais) resultantes da ponderação de interesses eventualmente colidentes, não situados todos eles, integralmente, no campo da fiscalidade. O que vale dizer que o legislador, seja ao criar os benefícios, seja a suspendê-los, não actuou arbitrariamente, antes ponderou e justificou-se por razões de ordem económico-financeira e social, de interesse público'.
Ora, a reforma fiscal de 1988, e no que concerne aos benefícios fiscais, teve claramente um propósito de os reduzir consideravelmente.
Com efeito, e nas palavras do Presidente da Comissão da Reforma Fiscal de então, Paulo de Pitta e Cunha, in A reforma fiscal, Bases da reforma – Exposição de motivos do projecto de reforma fiscal (Parte Geral), Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1989, págs. 96 e 97,
'Um dos aspectos mais criticáveis do actual sistema português é a multiplicidade e dispersão dos benefícios fiscais que prevê, os quais, além de constituírem um dos mais evidentes factores da instabilidade dos regimes legais e da sua falta de coerência, afectam de modo muito relevante o princípio da igualdade e originam vultosas perdas de receita, sem cabal justificação ou eficácia económico-social, e acentuadas distorções das regras de funcionamento normal da vida económica. Na verdade, posto que visando operar selectivamente para influenciar a afectação de recursos, têm consequências negativas no plano da equidade, causando desperequações na distribuição da carga do imposto sobre o rendimento entre os diferentes sujeitos passivos, além de levarem à erosão da base de incidência pelo alargamento do campo das «despesas fiscais» em que se traduzem. Mais toleráveis nos sistemas cedulares, onde só reduzem a carga do imposto parcelar em que se aplicam, os incentivos entram, assim, em conflito com o objectivo central da distribuição equitativa da carga do imposto: daí que devam ser outorgados apenas em casos excepcionais e rigorosamente justificados, como excepções que são às regras de equidade.
(...) A ampla reestruturação em curso do nosso sistema tributário é uma oportunidade
única para efectuar uma revisão profunda e exigente do regime legal dos benefícios fiscais, os quais deverão passar a revestir, obrigatoriamente, carácter excepcional, só devendo ser concedidos em casos de reconhecido e fundamentado interesse público e revestir sempre natureza genérica e temporária, não devendo, em regra, exceder cinco anos e não dispensando nunca a declaração dos rendimentos a que se aplicam, a fim de possibilitar a exacta determinação anual da despesa fiscal e a rigorosa avaliação da sua eficácia económico-social.'
A norma do artigo 2º, nº. 2 do Decreto-Lei nº. 215/89, de 1 de Julho, que aprovou o EBF, ao consagrar um regime transitório para os benefícios fiscais cujo direito tivesse sido adquirido até 31 de Dezembro de 1988, fornecendo uma noção legal de direito adquirido para operacionalização dos benefícios fiscais a manter, apresenta-se como o produto de uma ponderação de interesses inseríveis na tutela da prossecução do bem comum que não se tem por constitucionalmente reprovável, decorrendo daquela margem de livre apreciação que a Administração Fiscal detém em sede de avaliação ou correcção da matéria colectável, de reconhecimento de benefícios e incentivos fiscais, desde que conjugadas ponderadamente segurança e protecção de confiança, por um lado e prossecução do bem comum e eficiência funcional do sistema fiscal por outro (cf. no mesmo sentido Acórdão nº. 1204/96 e Nuno Sá Gomes in Ciência e Técnica Fiscal, Subsídios para a revisão da Constituição fiscal portuguesa, nº. 381, p. 21).
Por outro lado, a protecção do património cultural português, em cuja lei se estabelecia o benefício fiscal em crise nos presentes autos, tem conhecido importantes desenvolvimentos na última década em Portugal, existindo vários incentivos de natureza económica ao investimento no sector, o que se poderá configurar como fundamento ou razão extra-fiscal adjuvante da extinção (não manutenção) do benefício em sede de IRS.
Diga-se ainda que a Lei nº. 13/85, de 6 de Julho foi revogada pela Lei nº.
107/2001, de 8 de Setembro, que estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural e prevê novas formas de colaboração entre os particulares e o Estado, as Regiões Autónomas, as Autarquias e outros entes públicos na preservação, defesa e valorização do património cultural nacional, determinando no seu artigo 97º que 'a definição e estruturação do regime de benefícios e incentivos fiscais relativos à protecção e valorização do património cultural são objecto de lei autónoma', lei autónoma que até ao momento não entrou em vigor.
O recorrente invoca a violação do princípio da confiança por não poder deduzir as despesas efectuadas no imóvel classificado em sede de IRS relativo aos rendimentos auferidos no ano de 1996, contrariamente ao que sucedia em sede de imposto complementar, extinto desde 1 de Janeiro de 1989.
Ora, pelo menos desde a entrada em vigor da Lei nº. 8/89, de 22 de Abril, lei de autorização legislativa ao Governo, os contribuintes deixaram de poder contar de forma segura com a manutenção da dedução fiscal resultante do artigo 46º, nº. 2, alínea b) da Lei nº. 13/85, em virtude da consagração de um regime transitório cujas linhas gerais logo ali ficaram definidas; passou a ser previsível que, a qualquer momento, o Governo utilizaria essa autorização legislativa.
Não pode, pois, colher a invocada violação do princípio da protecção da confiança quando em 1997, ao apresentar a declaração de rendimentos auferidos no ano de 1996, se pretende deduzir um benefício fiscal fixado para um imposto já extinto – o imposto complementar – há, pelo menos, mais de 7 anos, por inexistir, em termos absolutos, um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou à manutenção do regime legal em relações jurídicas duradouras.
Não tem, de resto, qualquer cabimento a invocação do Acórdão nº. 410/95, de 28 de Junho, em que este Tribunal julgou inconstitucional a norma do artigo 2º, nº.1 do Decreto-Lei nº. 215/89, de 1 de Julho, por 'violação do princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito, interpretado no sentido de não salvaguardar o benefício fiscal que o artigo 14º do Decreto-Lei nº. 737-A/74, de
23 de Dezembro, concedia aos sócios de cooperativas de habitação económica, adquirido antes de 31 de Dezembro de 1988'.
Com efeito, tratava-se aí de um benefício fiscal de carácter legalmente temporário (valendo, no máximo, durante 3 anos a contar daquele em que se verificou a entrada do capital social), sucedendo que a extinção do benefício, ocorrido durante esse período, frustrara as expectativas dos investidores que, tendo procedido àquela entrada de capital no momento em que o benefício vigorava, não podiam razoavelmente contar que aquele lhes fosse retirado.
No caso em apreço, o benefício fiscal resultava apenas da lei, não tinha fonte internacional, nem contratual, não se encontrando condicionado e muito menos atribuído temporariamente. E não se mostra violado o princípio da protecção da confiança, na medida em que era previsível a extinção do benefício consagrado em sede de imposto complementar a partir, quer da extinção do próprio imposto complementar a que estava indissociável e funcionalmente ligado, quer da entrada em vigor da lei de autorização legislativa ao Governo em matéria de benefícios fiscais, quer da entrada em vigor do próprio Estatuto dos Benefícios Fiscais em
1989, sendo certo que à data em que as despesas foram efectuadas, já há muito se tinham verificado tais alterações legislativas.
6 – É igualmente incontroverso que a norma em causa, na interpretação que lhe foi dada, não viola o princípio da igualdade, uma vez que todos os contribuintes que se encontravam na situação do recorrente mereceram o mesmo tratamento.
Só isso se não verificou para aqueles que efectuaram despesas idênticas às que o recorrente pretendeu deduzir no rendimento colectável anteriormente à extinção do benefício fiscal.
Mas não há qualquer norma ou princípio constitucional que, face às mutações do ordenamento jurídico, obste a que se dê tratamento diverso – mais ou menos favorável aos interesses particulares em causa - a situações idênticas ocorridas antes ou depois da ocorrência dessas mutações.
7 – Finalmente, quanto à alegada colaboração do recorrente na protecção e valorização do património cultural – a propósito do qual vem invocado, certamente por lapso, um preceito constitucional que não existe (artigo 2º alínea c) (?)) - basta contrapor que nada na Constituição vincula o Estado a
'premiar' essa colaboração com benefícios fiscais
8 – Decisão:
Pelo exposto, e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 10 de Outubro de 2002- Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida José Manuel Artur Maurício Cardoso da Costa