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Processo nº 626/02
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por sentença do Tribunal de Círculo de Torres Vedras, confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, foram verificados e graduados os créditos no processo em que foi decretada a falência de A. Interposto recurso de revista por um dos credores, a B, cujos créditos se encontram garantido por hipoteca e por penhor, o Supremo Tribunal de Justiça concedeu provimento parcial ao recurso e alterou a graduação anteriormente feita
(acórdão de 19 de Março de 2002, de fls. 9912). Para o que agora releva, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que não gozavam dos privilégios mobiliários e imobiliários gerais, previstos no nº 1 do artigo
12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, os créditos dos trabalhadores da falida, por serem relativos a indemnizações por despedimento. Em seu entender, na expressão 'créditos emergentes de contrato individual de trabalho' (citado nº 1 do artigo 12º) não se incluem os que resultem da cessação do mesmo contrato. Em apoio desta interpretação, o Supremo Tribunal de Justiça, para além de jurisprudência anterior, invocou 'a recente Lei nº 96/2001, de 20 de Agosto', que considerou não aplicável ao caso em consequência do disposto no seu artigo
3º, cujo artigo 4º, nº 1, 'estende os privilégios «aos créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela Lei nº 17/86...»'. E, consequentemente, determinou a alteração da graduação de créditos, havendo
'os créditos dos trabalhadores por indemnização devida a título de cessação do contrato de trabalho, [de ser] graduados como créditos comuns'.
2. Pelo requerimento de fls. 9945, C e outros vieram requerer a reforma deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça ' ao abrigo do artigo 669º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Civil, no sentido de considerar inconstitucionais as
(...) normas' que estão 'contidas na Lei nº 96/2001 de 20 de Agosto – concretamente: artigos 1º, nº 1, 2º, 3º e 4º, e de norma decorrente do mesmo diploma – artigo 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, na redacção introduzida pelo primeiro diploma'. Por acórdão de 16 de Maio de 2002, de fls. 9970, foi negada a reforma requerida, considerando que o pedido correspondente não se enquadrava em nenhum dos casos previstos na al. a) do nº 2 do artigo 669º do Código de Processo Civil.
3. Pelo requerimento de fls. 9986, C e outros recorreram para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo que fossem julgadas inconstitucionais
'as normas legais contidas na Lei nº 96/2001 de 20 de Agosto – concretamente: artigos 1º, nº 1, 2º, 3º e 4º, e de norma decorrente do mesmo diploma – artigo
12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, na redacção introduzida pelo primeiro diploma citado, na sequência da
· aplicação, tanto expressa como implícita, de algumas dessas normas,
· negação, tanto expressa quanto implícita, de aplicação de outras,
· e da respectiva interpretação'
(...) por violação (...)
– dos seguintes princípios constitucionais e gerais de Direito
- Da igualdade – artº 13º da Constituição da República Portuguesa;
- Da proporcionalidade;
- Da justa indemnização – expressa designadamente nos artigos 59º, nº 1, alínea f) e 62º, nº 2 da Constituição;
– dos seguintes direitos constitucionais
- à tutela jusrisdicional efectiva – artigo 20º, nº 5 da Constituição;
· ao trabalho' – artigo 58º da Constituição;
- retribuição do trabalho' – artigo 59º; nº 1, alínea a) e nº 3 da Constituição;
- e segurança no emprego e proibição de despedimentos sem justa causa – artigo
53º da Constituição,
- bem como do dever geral dos Tribunais não aplicarem normas inconstitucionais – artigo 204º da Constituição, todos com consagração nos supra citados artigos da Constituição da República Portuguesa'.
4. Pelo requerimento de fls. 9997, D e outros vieram recorrer para o Tribunal Constitucional do mesmo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 'ao abrigo do disposto nas alíneas a) e c) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82', nos seguintes termos:
'As normas legais, cuja inconstitucionalidade se suscita, são as contidas na Lei nº 96/2001, de 20 de Agosto, nomeadamente os artºs 1º, nº 1, 2º, 3º e 4º e da norma decorrente do mesmo diploma – artº 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, na redacção introduzida pelo primeiro diploma, na sequência de aplicação, tanto expressa como implícita de algumas dessas normas'; Da negação tanto expressa quanto implícita de aplicação de outras; e da respectiva interpretação no Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos presentes autos de recurso de revista, por violação dos princípios constitucionais e gerais de direito;
- Da igualdade – artº 13º da Constituição da República Portuguesa;
· Da proporcionalidade;
- Da justa indemnização – expressa designadamente nos artºs 59º, nº 1, alínea f) e 62º, nº 2 da Constituição;
- À tutela jusrisdicional efectiva – artº 20º, nº 5 da Constituição;
· Ao trabalho' – artº 58º da Constituição;
- Retribuição do trabalho' – artº 59º; nº 1, alínea a) e nº 3 da Constituição;),
- Segurança no emprego e proibição de despedimentos sem justa causa – artº 53º da Constituição, bem como o dever geral dos Tribunais não aplicarem normas inconstitucionais – artigo 204º da Constituição, todos consagrados nos supra citados artigoº da Constituição da República'.
5. Pelo despacho de fls. 10005, de 27 de Junho de 2002, não foram admitidos estes recursos, porque, no que respeita ao primeiro, 'nunca a questão da constitucionalidade das disposições mencionadas nos recursos foi suscitada durante o processo' e porque, no que respeita ao segundo, 'não se vê como o acórdão em causa tenha recusado a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade (alínea a), ou tenha recusado a aplicação de norma constante de acto legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado (alínea c)'.
6. Inconformados, C e outros vieram, então, reclamar para o Tribunal Constitucional de despacho de não admissão do recurso, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82. Na reclamação, recordam que invocaram a inconstitucionalidade quando pediram a reforma do acórdão recorrido, e que, como então já haviam afirmado, lhes não era exigível que a tivessem suscitado anteriormente, 'por falta de anterior oportunidade processual de o fazer, e precisamente porque foi a interpretação e a, expressa e/ou tácita, recusa de aplicação e tais normas no Acórdão do Tribunal Constitucional que gerou, por assim dizer, as mesmas questões de inconstitucionalidade'.
7. Também reclamaram do despacho de não admissão do recurso D e outros, sustentando ter alegado 'a inconstitucionalidade de várias normas com fundamento nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do artº 70º da LOTC' no requerimento de interposição, e estarem 'reunidos todos os pressupostos legalmente previstos na LOTC para que o recurso suba a este Alto Tribunal'.
8. Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento de ambas as reclamações. Relativamente à que foi apresentada por C e outros, por não ter sido oportunamente invocada a inconstitucionalidade ('durante o processo – isto é, antes da prolacção do acórdão recorrido'), não ocorrendo qualquer motivo que justifique que só no pedido de reforma do acórdão recorrido a tenham colocado. Em seu entender, 'era manifesta a possibilidade, face à natureza e evolução do litígio, de o Supremo Tribunal de Justiça vir a optar pela interpretação normativa que os recorrentes só intempestivamente questionam, do ponto de vista da sua conformidade com preceitos ou princípios constitucionais'. Quanto à reclamação formulada por D e outros, o Ministério Público observou faltarem também os pressupostos de admissibilidade do recurso, quer no que respeita aos recursos previstos nas alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 70º Lei nº
28/82, quer relativamente ao recurso previsto na al. b) do mesmo nº 1 – sendo certo, aliás, que os reclamantes, que o não indicaram no requerimento de interposição de recurso, não podem ampliar o fundamento do recurso na reclamação.
9. As reclamações são, na verdade, manifestamente improcedentes. Quanto à que foi apresentada por C e outros, desde logo, e sem necessidade de analisar se não existiriam outros motivos de inadmissibilidade do recurso, porque a inconstitucionalidade não foi suscitada 'durante o processo', como exige a alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82. Como se escreveu no acórdão nº 213/2001 deste Tribunal (não publicado), em termos plenamente aplicáveis à presente reclamação, «É pressuposto de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, como é o caso, que a inconstitucionalidade haja sido 'suscitada durante o processo' (citada al. b) do nº 1 do artigo 70º), ou seja, colocada 'de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer' (nº 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82). Como resulta dos preceitos acima indicados, não é possível considerar 'que a suscitação da questão da inconstitucionalidade feita no pedido de reforma da sentença, ainda se pode, no caso, considerar feita durante o processo, para efeitos da alínea b) do nº 1 do art. 70º da LTC.(..). (...) a possibilidade de reforma da sentença por parte do tribunal a quo depende da verificação dos respectivos pressupostos do instituto que, como decidiu, aliás, o próprio tribunal recorrido, no caso manifestamente não se verificam.
(...) A eventual aplicação de uma norma inconstitucional não configura
(ressalvada alguma hipótese anómala e excepcional, como seja a da inexistência jurídica da norma) uma situação de manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos.' (Acórdão nº 418/98, Diário da República, II Série, de 20 de Julho de 1998). Conforme o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recorrente só pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade 'durante o processo', nos termos indicados, nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste Tribunal com os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994). Não é, manifestamente, o caso dos autos.» Os reclamantes sustentam que não lhes era exigível que tivessem suscitado a inconstitucionalidade anteriormente. Todavia, a verdade é que, como justamente observa o Ministério Público, era claramente possível que as normas em causa fossem interpretadas com o sentido que o Supremo Tribunal de Justiça lhes atribuiu. Note-se, aliás, que o recurso de revista no qual veio a ser proferido o acórdão recorrido foi interposto, precisamente, atentando apenas na parte que agora releva, com o objectivo de que viesse a prevalecer a interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça adoptou, e com base na qual lhe concedeu provimento.
É verdade que a Lei nº 96/2001, de 20 de Agosto, apenas entrou em vigor na pendência do processo de falência, quando corria já o recurso de revista; e é igualmente verdade que as normas que os reclamantes impugnam, ou constam de preceitos dessa mesma lei ou foram alteradas por ela (é o caso do artigo 12º da Lei nº 17/86). Sucede, todavia, que as alegações dos reclamantes no recurso de revista foram apresentadas depois de a Lei nº 96/2001 ter entrado em vigor (cfr. o respectivo artigo 10º), pois deram entrada no Tribunal da Relação de Lisboa em 11 de Janeiro de 2002; e que essas mesmas alegações, os reclamantes sustentaram a aplicabilidade aos autos da referida Lei nº 96/2001. Não se pode, pois, considerar que os reclamantes tenham sido colocados perante uma interpretação das normas impugnadas com a qual não pudessem, razoavelmente, contar.
10. Relativamente à reclamação formulada por D e outros cumpre, em primeiro lugar, esclarecer que recorreram para o Tribunal Constitucional apenas ao abrigo do disposto nas alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, e não também de acordo com a alínea b) do mesmo preceito; e não é possível ampliar, na reclamação da decisão de não admissão, os fundamentos do recurso. Assim, e porque não ocorreu nenhuma das hipóteses previstas nessas alíneas, como se afirma, quer no despacho agora reclamado, quer no parecer do Ministério Público atrás referido, não é admissível o recurso interposto. Sempre se acrescentar que, a ser possível considerar o recurso agora em causa como igualmente interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, faltaria sempre, pelo menos, que a inconstitucionalidade tivesse sido suscitada 'durante o processo', nos termos já referidos. Também aqui se torna, pois, desnecessário averiguar do preenchimento dos demais pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade. Nestes termos, indeferem-se as reclamações. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs por cada um. Lisboa, 29 de Outubro de 2002- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida