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Proc. nº 190/95
Plenário
Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I
1. O Procurador-Geral Adjunto em exercício no Tribunal
Constitucional veio, em representação do Procurador‑Geral da República, ao
abrigo dos artigos 281º, nº 3, da Constituição e 82º da Lei nº 28/82, de 15 de
Novembro, requerer a declaração, com força obrigatória geral, da
inconstitucionalidade da norma constante do nº 4 do artigo 10º do Decreto-Lei nº
317/85, de 2 de Agosto, na parte em que atribui competência ao tribunal judicial
da comarca para conhecer o recurso da decisão camarária relativa à remoção de
canídeos ou outros animais de companhia, prevista no artigo 10º, nºs 2 e 3, do
mesmo diploma.
Para fundamentar tal pedido, alega que a mencionada
norma foi explicitamente julgada inconstitucional, por violação do disposto no
artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição, nos Acórdãos nºs 158/95, 190/95 e
193/95 do Tribunal Constitucional.
Notificado, ao abrigo do artigo 54º da Lei do Tribunal
Constitucional, para se pronunciar, querendo, sobre o pedido formulado, o
Primeiro-Ministro não apresentou resposta.
Nada obstando ao conhecimento da questão, cumpre
decidir.
II
2. A norma constante do artigo 10º, nº 4, do Decreto‑Lei
nº 317/85, determina:
'Da decisão camarária pode o interessado recorrer, no prazo de 8
dias, para o tribunal judicial da comarca, indicando logo os factos que
fundamentam o recurso e os meios de prova que pretende produzir.'
As três decisões que justificaram o pedido de declaração
de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da referida norma
pronunciaram-se pela inconstitucionalidade orgânica dessa norma por violação do
disposto no artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição.
Entendeu-se, na primeira das decisões indicadas pelo
Ministério Público (Acórdão nº 158/95), para que as outras duas remetem
integralmente, em síntese, que:
a) O poder conferido pelo artigo 10º, nºs 2 e 3, do
Decreto-Lei nº 317/85, ao órgão autárquico tem natureza administrativa. Com
efeito, tais normas dispõem o seguinte:
'Artigo 10º
(...)
2 - As câmaras municipais, sempre que razões de salubridade ou
tranquilidade da vizinhança o imponham, poderão determinar a remoção de
quaisquer cães ou outros animais de companhia.
3 - A câmara municipal competente, confirmada a existência de situações
referidas no número anterior, notificará o dono ou detentor dos animais para a
remoção dos mesmos no prazo de 8 dias.
(...)'
Este poder insere-se na função administrativa no sentido
explicitado no Acórdão nº 179/92 do Tribunal Constitucional, publicado no DR, II
Série, nº 216, de 18 de Setembro de 1992.
b) A decisão camarária prevista no artigo 10º, nºs 2 e
3, do Decreto-Lei nº 317/85 é caracterizável como acto administrativo na medida
em que 'há aí um comando de um órgão autárquico, prosseguindo e realizando
interesses públicos relativamente à remoção de um animal de raça canina, com
efeitos jurídicos sobre uma situação individual e num caso concreto'.
c) Sendo a decisão camarária um acto administrativo, o
recurso dela interposto para o tribunal judicial terá de ser concebido como um
puro recurso directo de anulação de acto administrativo [a apresentar na câmara
municipal, que 'remeterá o processo para juízo no prazo de cinco dias no caso de
manutenção da decisão recorrida' (artigo 10º, nº 5)].
d) Esta natureza do recurso pressupõe a atribuição aos
tribunais judiciais de comarca de competência para conhecer um típico recurso
contencioso administrativo.
e) Como o Decreto-Lei nº 317/85 foi emitido ao abrigo da
alínea a) do nº 1 do artigo 201º da Constituição não se fundamentou em
autorização legislativa que é exigida para editar normas que visem modificar as
regras de competência material dos tribunais. Na verdade, a alínea q) do nº 1 do
artigo 168º da Constituição inclui na reserva relativa de competência
legislativa da Assembleia da República a definição da competência dos tribunais
judiciais ratione materiae.
f) O Decreto-Lei nº 317/85 veio legislar sobre a
competência dos tribunais ao atribuir aos tribunais judiciais de comarca
competência em determinada matéria, independentemente de se ter em consideração
o âmbito de competência dos tribunais administrativos.
g) Daí deriva, claramente, que o Decreto-Lei nº 317/85
viola a reserva de lei prevista no artigo 168º, nº 1, alínea q) da Constituição.
3. O Tribunal Constitucional pronunciou-se pela
inconstitucionalidade do citado decreto-lei em decisões posteriores às três que
o Ministério Público indicou, nomeadamente no Acórdão nº 260/95, ainda inédito.
Aí se explicitou, como fundamento da decisão de inconstitucionalidade, que 'a
jurisdição administrativa e fiscal é exercida pelos tribunais administrativos e
fiscais, competindo aos tribunais administrativos de círculo conhecer dos
recursos dos actos administrativos dos órgãos da administração pública local
[artigos 1º e 51º, nº 1, alínea c) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e
Fiscais]' e que 'concomitantemente, o artigo 89º do Decreto-Lei nº 100/84 dispõe
que as deliberações de órgãos autárquicos feridas de incompetência, vício de
forma, desvio de poder ou violação de lei, regulamento ou contrato
administrativo são anuláveis, mediante impugnação em recurso contencioso,
recurso este que há-de obedecer ao regime definido nos artigos 24º e seguintes
do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho'.
4. A questão de constitucionalidade julgada nos acórdãos
que justificam o pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, resulta de a decisão camarária de remoção de canídeos e o
respectivo recurso poderem surgir como mera forma de dirimir conflitos de
vizinhança de natureza civil.
Problema pressuposto pela decisão de
inconstitucionalidade é, assim, o da qualificação do acto camarário (a decisão
de remoção dos animais) como exercício de função administrativa integrante do
poder autárquico. A atribuição de competência aos tribunais de comarca para o
recurso da decisão camarária apenas será duvidosa, no plano constitucional, na
medida em que o problema anterior for resolvido no sentido da qualificação como
acto administrativo da decisão camarária.
5. O Decreto-Lei nº 317/85, ao prever que 'as razões de
salubridade ou tranquilidade da vizinhança' referidas no artigo 10º são
fundamento da decisão camarária de remoção dos animais em causa, integra uma tal
decisão no âmbito da defesa da 'qualidade de vida do respectivo agregado
populacional', que faz parte das atribuições cometidas às câmaras pelo artigo
2º, nº 1, alíneas a) e i), do Decreto-Lei nº 100/84.
A tranquilidade da vizinhança ou a qualidade de vida em
que pode interferir a instalação de animais em habitações sem as devidas
condições para que não resultem incómodos e perigos para a saúde não é um mero
problema de conflito de direitos entre sujeitos privados, mas corresponde antes
a uma ordenação geral da vida dos agregados populacionais, a um interesse
público que compete às autarquias preservar e promover.
Só para uma concepção liberal historicamente datada,
segundo a qual os poderes públicos não englobam entre os seus objectivos a
promoção de bens colectivos de interesse geral, nomeadamente a qualidade de vida
dos habitantes das povoações, é que situações como as referidas no artigo 10º,
nº 4 poderão ser identificadas como meros conflitos de interesses ou direitos
entre sujeitos privados.
6. Porém, na ordem jurídica do Estado de direito
democrático e social, que sedimentou em direitos sociais que desenvolvem os
direitos fundamentais individuais, a relevância autónoma dos conflitos de
interesses conexionados com a vizinhança, o sossego e a tranquilidade de vida,
coloca-se no plano de uma ordenação geral da vida colectiva destinada a
assegurar um nível aceitável de qualidade de vida no espaço físico e no ambiente
psicológico de cada indivíduo. É esse mínimo de ordenação que justifica medidas
condicionantes do espaço de cada cidadão, em ordem a prevenir riscos para os
outros.
Uma tal necessidade de defender e preservar a qualidade
de vida e o ambiente dos cidadãos nas relações de vizinhança justifica a
subtracção de certas situações a uma pura ponderação de interesses sob a égide
do direito privado, cujas coordenadas são a igualdade e a liberdade em
contraposição à autoridade e à competência características do direito público
(cf. Menezes Cordeiro, Teoria Geral do Direito Civil, 1988, p. 11 e ss.), e a
sua inserção no direito público. O facto de as relações de vizinhança serem
conexionadas com interesses públicos não implica, aliás, que apenas esteja em
causa o interesse público. A doutrina do Direito Administrativo reconhece hoje
que a prossecução do interesse público não é o único critério de acção
administrativa. Também os direitos subjectivos e os interesses legítimos dos
particulares constituem limite e critério de acção administrativa (cf. Freitas
do Amaral, Direito Administrativo, II, 1988, p. 80 e ss.).
Estamos, assim, perante o exercício de poderes
administrativos de competência das autarquias locais, sendo a decisão de remoção
de canídeos acto administrativo, à luz de uma definição analítica, segundo a
qual o acto administrativo é um acto jurídico unilateral, orgânica e
materialmente administrativo e que versa a produção de efeitos jurídicos sobre
uma situação individual num caso concreto (cf. Freitas do Amaral, ob.cit., III,
1989, p. 66 e ss.).
7. O artigo 10º, nº 4, do Decreto-Lei nº 317/85, ao
atribuir competência ao tribunal judicial de comarca para julgar o recurso da
decisão camarária de remoção de canídeos, vem definir a competência dos
tribunais quanto àquela matéria, alterando a repartição de competência entre os
tribunais que deriva do sistema geral vigente no ordenamento jurídico. Com
efeito, a natureza de acto administrativo da decisão camarária implicaria, nos
termos do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, que o recurso contencioso de
anulação fosse de competência dos tribunais administrativos.
Mas, mesmo que se entenda que a competência dos
tribunais administrativos em matérias deste tipo não é imposta pelo artigo 214º
da Constituição, questão que não terá de ser analisada pelo Tribunal
Constitucional neste caso, não haverá dúvida alguma de que a regulamentação do
referido artigo 10º, nº 4, incide sobre a competência material dos tribunais,
pois tal norma não aplica, meramente, o sistema geral de repartição de
competências vigente.
8. Em consequência de tudo isto, teremos que concluir
que o artigo 10º, nº 4, do Decreto-Lei nº 317/85 regula matérias integradas no
âmbito da reserva de lei imposta pelo artigo 168º, nº 1, alínea q), da
Constituição. É entendimento deste Tribunal e perspectiva aceita na doutrina que
a reserva de lei integra a competência material dos tribunais (cf. Acórdãos nºs
230/86, 32/87, 25/88, 66/88, 101/88 e 126/88, DR, I série, de 12 de Setembro de
1986, e II série, de 7 de Abril de 1987, e 7 de Maio, 20 de Agosto, 31 de Agosto
e 5 de Setembro de 1988, respectivamente, e Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 670 e ss.).
Desta forma, conclui-se que a norma cujo valor
constitucional é questionado - o artigo 10º, nº 4, do Decreto‑Lei nº 317/85 - é
organicamente inconstitucional, por estar integrada num Decreto-Lei editado pelo
Governo ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 201º da Constituição, sem a
autorização legislativa do Parlamento que o cumprimento do artigo 168º, nº 1,
alínea q), da Constituição impõe.
III
9. Pelo exposto, declara-se, com força obrigatória
geral, a inconstitucionalidade da norma do artigo 10º, nº 4, do Decreto-Lei nº
317/85, de 2 de Agosto, na parte em que atribui competência ao tribunal judicial
da comarca para conhecer o recurso da decisão camarária relativa à remoção de
canídeos ou outros animais de companhia, prevista no artigo 10º, nºs 2 e 3, do
mesmo diploma, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição.
Lisboa, 24 de Outubro de 1995
Maria Fernanda Palma
José de Sousa e Brito
Luís Nunes de Almeida
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Guilherme da Fonseca
Armindo Ribeiro Mendes
Fernando Alves Correia
Messias Bento
José Manuel Cardoso da Costa