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Processo: n.º 27/95.
Plenário.
Relator: Conselheiro Luís Nunes de Almeida.
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I — Relatório
1 — O Provedor de Justiça veio requerer ao Tribunal Constitucional, nos termos
do disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea d), da Constituição, a apreciação e
declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas
constantes do artigo 1.º, alíneas a), b) e d) a h), do Decreto-Lei n.º 75-C/86,
de 23 de Abril, e das normas constantes da alínea a) do artigo 2.º e do artigo
5.º do mesmo decreto-lei, na parte em que estas se referem às «taxas» previstas
nas primeiras.
Alegou, para tanto, e em síntese, que as «taxas» aí previstas, mau grado tal
designação do legislador, são verdadeiros impostos, pelo que o Governo só
poderia proceder à sua criação quando autorizado pela Assembleia da República
[artigo 168.º, n.º 1, alínea i), da Constituição]. Tal autorização foi
concedida ao Governo pelo artigo 64.º, n.º 1, da Lei n.º 2-B/85, de 28 de
Fevereiro, que aprovou o Orçamento do Estado para 1985; e, dado o carácter anual
daquela lei, caducou em 31 de Dezembro de 1985. Ora, conclui o requerente,
tendo o Decreto-Lei n.º 75-C/86 sido aprovado em Conselho de Ministros somente
em 3 de Abril de 1986, e portanto já depois de caducada a autorização (muito
embora o Orçamento do Estado de 1985 se tivesse mantido em vigor até 13 de Abril
de 1986, data em que foi publicada a Lei n.º 9/86, aprovando o Orçamento do
Estado para 1986), foi violado o citado artigo 168.º, n.º 1, alínea i), da
Constituição.
Acrescenta que, embora o Decreto-Lei n.º 75-C/86 esteja revogado (o artigo 1.º
foi revogado pelo artigo 1.º da Lei n.º 2/88, de 26 de Janeiro, e os restantes
artigos foram revogados pelo artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 446/88, de 15 de
Dezembro), o pedido de fiscalização abstracta da constitucionalidade mantém-se
pertinente, uma vez que as normas em causa, durante o lapso de tempo em que
vigoraram, não deixaram de produzir efeitos lesivos das situações jurídicas dos
particulares, efeitos esses que importa destruir.
Notificado para se pronunciar sobre o pedido, o Primeiro-Ministro nada disse.
Cumpre apreciar e decidir.
II — Fundamentos
2 — O Decreto-Lei n.º 75-C/86 veio actualizar as receitas fiscais do Instituto
dos Produtos Florestais, no sentido da sua compatibilização com o direito
comunitário, designadamente introduzindo ajustamentos nos critérios da
respectiva atribuição. Assim, os artigos 1.º, 2.º e 5.º do diploma vieram
dispor o seguinte:
Artigo 1.º
Constituem receita do Instituto dos Produtos Florestais:
a) A taxa de 0,45% sobre o valor total das vendas de pez, aguarrás, seus
derivados e subprodutos, aguarrás sulfatada e talóleo;
b) A taxa de 0,30% sobre o valor total das vendas de manufacturas de cortiça;
c) […];
d) A taxa de 0,20% sobre o valor total do papel, cartolina e cartão vendido ou
integrado no fabrico de outros produtos no seio do mesmo ciclo produtivo;
e) A taxa de 0,45% sobre o valor total das vendas de aglomerados de fibras ou
de partículas de madeira;
f) A taxa de 0,20% sobre o valor total das vendas de contraplacados ou
folheados;
g) A taxa de 0,45% sobre o total da madeira serrada vendida ou integrada no
fabrico de outros produtos no seio do mesmo ciclo produtivo;
h) A taxa anual de 0,45% sobre os salários pagos pelos industriais de madeiras,
vimes e seus derivados não abrangidos nas alíneas anteriores, incluindo a parte
correspondente ao exercício destas actividades por industriais que exerçam
outras actividades.
Artigo 2.º
O Instituto dos Produtos Florestais procederá à liquidação das quantias
correspondentes às taxas devidas:
a) Relativamente às taxas a que se referem as alíneas a), b), c), d), e), f) e
g) do artigo 1.º, com base nos mapas de movimento dos industriais e
importadores;
b) […]
[…]
Artigo 5.º
As importâncias liquidadas nos termos do disposto neste decreto-lei deverão ser
pagas, no prazo de 30 dias a contar da guia de depósito emitida, directamente ao
Instituto dos Produtos Florestais ou depositadas, dentro do mesmo prazo, na
Caixa Geral de Depósitos.
3 — Estas disposições acham-se revogadas, como refere o requerente: o artigo 1.º
foi revogado pelo artigo 51.º da Lei n.º 2/88, de 26 de Janeiro, e os restantes
artigos foram revogados pelo artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 466/88, de 15 de
Dezembro (diploma que extinguiu também o próprio Instituto dos Produtos
Florestais), no uso da autorização legislativa constante do artigo 51.º daquela
Lei n.º 2/88.
Mas terá ainda utilidade a apreciação abstracta da inconstitucionalidade dessas
normas revogadas, requerida pelo Provedor de Justiça somente em 1995, ou seja,
cerca de sete anos mais tarde?
O requerente refere a este respeito que «durante o lapso de tempo em que as
normas em causa vigoraram não deixaram de produzir efeitos lesivos das situações
jurídicas dos particulares, efeitos esses inconstitucionais e que importa pois
destruir».
4 — O Tribunal Constitucional já tem uma extensa jurisprudência sobre a
utilidade do conhecimento dos pedidos de fiscalização abstracta da
constitucionalidade de normas entretanto revogadas.
Releva aqui o princípio de que, nesta matéria, o interesse processual deve
traduzir-se na existência de um interesse «com conteúdo prático apreciável» que
justifique a utilização de um meio processual que conduz à apreciação genérica e
abstracta da inconstitucionalidade de uma norma jurídica: ver, a este propósito,
já o Parecer n.º 21/81, da Comissão Constitucional e o Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 17/83 (Diário da República, II Série, de 31 de Janeiro de
1984; e, para citar uma decisão recente, o Acórdão n.º 453/95, Diário da
República, II Série, de 7 de Outubro de 1995).
Ora, é este interesse com um conteúdo prático apreciável que o requerente não
alega, nem resulta da análise da presente situação.
Com efeito, os particulares eventualmente lesados pela aplicação das normas em
causa tiveram a oportunidade de, por via contenciosa, obter a apreciação da
constitucionalidade dessas normas, inclusive em recurso de fiscalização concreta
de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional. Mesmo que algum desses
eventuais processos ainda estivesse a aguardar decisão judicial, o interesse
tributário dos particulares estaria, pois, devidamente acautelado por esta via
de tutela jurisdicional.
E os particulares que não tiverem impugnado contenciosamente a aplicação das
normas em causa?
Não se vê que uma eventual decisão do Tribunal Constitucional em sede de
fiscalização abstracta os pudesse beneficiar. Dado o tempo entretanto
decorrido, e ponderados todos os interesses públicos e privados em jogo, a
necessidade de acautelar a segurança jurídica em matéria tributária levaria
certamente o Tribunal Constitucional a restringir, ao abrigo do disposto no
artigo 282.º, n.º 4, da Constituição, os efeitos de uma eventual
inconstitucionalidade declarada com força obrigatória geral —, por forma a
salvaguardar as situações jurídicas criadas e consolidadas durante o tempo em
que as normas em causa estiveram em vigor. Sobre esta matéria, aliás, também é
extensa e pacífica a jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Torna-se, pois, inútil apreciar o pedido do Provedor de Justiça.
III — Decisão
5 — Assim, e face ao exposto, decide-se não tomar conhecimento do pedido.
Lisboa, 31 de Outubro de 1995. — Luís Nunes de Almeida — Maria da Assunção
Esteves — Alberto Tavares da Costa — Vítor Nunes de Almeida — Guilherme da
Fonseca — Bravo Serra — Armindo Ribeiro Mendes — Fernando Alves Correia —
Messias Bento — José de Sousa e Brito — Maria Fernanda Palma (com declaração de
voto) — José Manuel Cardoso da Costa.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 — Votei a favor da tese que fez vencimento no presente Acórdão, mas não posso
deixar de manifestar reservas em relação ao âmbito de validade que se pretende
atribuir-lhe.
Como é sabido, a circunstância de uma norma sujeita à fiscalização abstracta de
constitucionalidade ter sido revogada não faz perder, a priori, o interesse
jurídico no conhecimento do pedido (assim se pronunciaram os Pareceres da
Comissão Constitucional n.os 1/80 e 4/81, publicados em Pareceres da Comissão
Constitucional, vols. 11.º, 1981, pp. 27 e segs., e 14.º, 1983, pp. 205 e segs.,
respectivamente, e os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 17/83, 12/88,
238/88, 319/89, 415/89, 73/90, 135/90, 465/91 e 308/93, publicados em Acórdãos
do Tribunal Constitucional, 1.º Vol., 1983, pp. 93 e segs., e no Diário da
República, I Série, de 30 de Janeiro de 1978, e II Série, de 21 de Dezembro de
1988, 28 de Junho de 1989, 15 de Setembro de 1989, 19 de Julho de 1990, 7 de
Setembro de 1990, 2 de Abril de 1992 e 22 de Julho de 1993, respectivamente; no
mesmo sentido se pronuncia, na doutrina, Jorge Miranda, Manual do Direito
Constitucional, tomo ii, 3.ª ed., 1991, p. 490). Na verdade, uma declaração de
inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral é, em
princípio, eficaz desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional
ou ilegal e determina a repristinação das normas por ela revogadas (artigo
282.º, n.º 1, da Constituição). Assim, a declaração de inconstitucionalidade
com força obrigatória geral tem uma pretensão de eficácia para o passado que não
é satisfeita pela revogação da norma em crise.
2 — O problema coloca-se, porém, nos casos em que o artigo 282.º da Constituição
prevê a limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força
obrigatória geral: no caso de inconstitucionalidade (ou ilegalidade)
superveniente (n.º 2); perante o caso julgado (n.º 3); na hipótese de a
segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional
relevo aconselharam a limitação de efeitos (n.º 4). O que se pergunta nestes
casos é se tem ainda utilidade proferir uma declaração de inconstitucionalidade
de uma norma legal revogada, que já não pode produzir, por definição, efeitos
para o futuro e que também não opera retroactivamente, devido à limitação de
efeitos.
3 — O Tribunal Constitucional tem entendido que é inútil conhecer o pedido
quando a norma sub judicio já foi revogada e uma eventual declaração de
inconstitucionalidade tivesse os seus efeitos limitados de modo a não excederem
os da revogação. Porém, este entendimento não é unânime, tendo-se manifestado
em sentido contrário os Conselheiros Mário de Brito (Acórdãos n.os 238/88 e
309/93, citados), Vital Moreira (Acórdão n.º 415/89, citado) e Tavares da Costa
(Acórdão n.º 135/90, citado). Identicamente, Jorge Miranda afirma que «… não
pode aceitar-se … que se faça depender a apreciação da constitucionalidade de
uma qualquer verificação prévia da utilidade da sua eventual declaração …, como
se se estivesse em fiscalização concreta». Tratar-se-ia, segundo o autor, de «…
inverter todo o sentido do artigo 282.º …» (ob. cit., pp. 504-5).
Este entendimento minoritário sustenta que há uma inversão lógica e valorativa
quando se faz depender a declaração de inconstitucionalidade da ponderação dos
respectivos efeitos. Subjacente poderá estar até a ideia de que o Tribunal
Constitucional será convidado, segundo esta lógica, a ampliar as hipóteses de
restrição de efeitos, para não conhecer o pedido.
4 — Todavia, tal como se afirmou no citado Acórdão n.º 308/93, não se concebe a
utilidade de uma declaração de inconstitucionalidade que estivesse completamente
desprovida dos efeitos jurídico-materiais e jurídico-processuais que
caracterizam as decisões do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização
abstracta. Uma declaração de inconstitucionalidade completamente desprovida de
tais efeitos nem sequer pode aspirar à força obrigatória geral que lhe é
atribuída pelo artigo 282.º, n.º 1, da Constituição.
Por esta razão, votei a favor do presente Acórdão.
5 — As minhas reservas resultam, no entanto, de não concordar com a tese segundo
a qual não haveria interesse no conhecimento do pedido sempre que se deva
proceder a uma limitação de efeitos, que faria coincidir a eficácia da
declaração com a da própria revogação.
São configuráveis, na verdade, hipóteses em que a declaração ainda é útil, mesmo
nesse caso:
a) Se a norma revogatória, por exemplo, padece, aparentemente, de
inconstitucionalidade por motivo idêntico ao que explica a própria
inconstitucionalidade da norma revogada (e sujeita à fiscalização abstracta),
entendo que é útil conhecer o pedido. O conhecimento do pedido funciona, nestes
casos, como uma indicação, ainda que despojada de força obrigatória geral quanto
à norma revogatória, dada à ordem jurídica no seu conjunto. E se a norma for
considerada não inconstitucional a declaração pode contribuir para remover
dúvidas em relação à constitucionalidade da própria norma revogatória.
b) Se a revogação da norma sujeita à fiscalização abstracta se deve a
uma duvidosa incompatibilidade de regimes (revogação tácita), entendo que
continua a ser útil uma declaração de inconstitucionalidade com força
obrigatória geral. Com efeito, não cabe ao Tribunal Constitucional fiscalizar a
aplicação do direito infra-constitucional pelos restantes tribunais. Assim, se
um tribunal aplicar a norma inconstitucional «revogada», o Tribunal
Constitucional não pode censurar a decisão, por discordar da aplicação no tempo
feita dessa norma. Mas já poderá — e deverá — determinar a reforma da decisão
com fundamento, precisamente, na inconstitucionalidade da norma (determinando a
aplicação da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, se
esta declaração não tiver sido acatada). — Maria Fernanda Palma.
(1) -Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 30 de Dezembro de
1995.