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Processo n.º 1197/07
Plenário
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. O Representante da República para a Região Autónoma da Madeira requereu, em
20 de Dezembro de 2007, ao abrigo dos nºs 2 e 3 do artigo 278.º da Constituição
da República Portuguesa (CRP) e dos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei
de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada
pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), a apreciação preventiva da
constitucionalidade das normas constantes do decreto que estabelece o “Regime de
Execução das Incompatibilidades e Impedimentos dos Deputados à Assembleia
Legislativa da Madeira”, aprovado pela Assembleia Legislativa em sessão plenária
de 22 de Novembro de 2007 e recebido no seu gabinete, para os efeitos previstos
no artigo 233º da Constituição, no dia 12 do mês de Dezembro de 2007.
2. Naquele decreto, em que a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da
Madeira invoca o “uso dos poderes que lhe são conferidos pela disposição
conjugada do nº 7 do artigo 231º da Constituição da República Portuguesa e da
alínea vv) do artigo 40º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma
da Madeira”, estatui-se o seguinte:
“Artigo 1°
Âmbito
O presente decreto legislativo regional estabelece as incompatibilidades e
impedimentos dos deputados à Assembleia Legislativa da Madeira.
Artigo 2°
Incompatibilidades
1 - São incompatíveis com o exercício do mandato de Deputado à Assembleia
Legislativa da Madeira os seguintes cargos ou funções:
a) Presidente da República, membro do Governo da República e Representante da
República;
b) Membro do Tribunal Constitucional, do Supremo Tribunal de Justiça, do Supremo
Tribunal Administrativo, do Tribunal de Contas e do Conselho Superior da
Magistratura e o Provedor de Justiça;
c) Deputado ao Parlamento Europeu;
d) Deputado à Assembleia da República;
e) Membro dos demais órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas;
f) Embaixador;
g) O governador e vice-governador civil;
h) Presidente e vereador a tempo inteiro ou em regime de meio-tempo de câmara
municipal;
i) Funcionário do Estado, da Região ou de outra pessoa colectiva de direito
público;
j) Membro da Comissão Nacional de Eleições;
1) Membro dos gabinetes ministeriais ou legalmente equiparados;
m) Funcionário de organização internacional ou de Estado estrangeiro;
n) Presidente e vice-presidente do Conselho Económico e Social;
o) Membro de órgão de direcção ou administração de entidade reguladora
independente;
p) Membro do conselho de administração das empresas públicas;
q) Membro do conselho de administração das empresas de capitais públicos ou
maioritariamente participadas pelo Estado ou pela Região;
r) Membro do conselho de administração de institutos públicos autónomos.
2 - É ainda incompatível com a função de deputado:
a) O exercício das funções previstas no nº 2 do artigo 28° do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira;
b) O exercício do cargo de director regional no Governo Regional.
3 - O disposto na alínea i) do nº 1 não abrange o exercício gratuito de funções
docentes no ensino superior, de actividade de investigação e outras similares
como tal reconhecidas caso a caso pela Assembleia Legislativa.
Artigo 3º
Impedimentos
1 - Os deputados carecem de autorização da Assembleia Legislativa para serem
jurados, árbitros, peritos ou testemunhas.
2 - A autorização a que se refere o número anterior deve ser solicitada pelo
juiz competente ou pelo instrutor do processo em documento dirigido ao
Presidente da Assembleia Legislativa e a decisão será precedida de audição do
deputado.
3 - É vedado aos deputados da Assembleia Legislativa da Madeira:
a) Exercer o mandato judicial como autores nas acções cíveis contra o Estado e
contra a Região;
b) Servir de peritos ou árbitros a título remunerado em qualquer processo em que
sejam parte o Estado, a Região e demais pessoas colectivas de direito público;
c) Integrar a administração de sociedades concessionárias de serviços públicos;
d) No exercício de actividade de comércio ou indústria, participar em concursos
públicos de fornecimento de bens e serviços, bem como em contratos com o Estado,
a Região ou a outras pessoas colectivas de direito público;
e) Figurar ou de qualquer forma participar em actos de publicidade comercial.
4 - Os impedimentos constantes da alínea b) do nº 3 poderão ser supridos, em
razão de interesse público, por deliberação da Assembleia Legislativa.
Artigo 4º
Fiscalização pelo Tribunal Constitucional
1 - Os deputados devem depositar no Tribunal Constitucional, nos 60 dias
posteriores à primeira reunião da Assembleia Legislativa da Madeira após
eleições, nos termos do Estatuto Político-Administrativo, declaração de
inexistência de incompatibilidades ou impedimentos, donde conste a enumeração de
todos os cargos, funções e actividades profissionais exercidos pelo declarante,
bem como de quaisquer participações iniciais detidas pelo mesmo.
2 - Compete ao Tribunal Constitucional proceder à análise e fiscalização das
declarações dos deputados.
Artigo 5°
Entrada em vigor
O presente decreto legislativo regional entra em vigor no primeiro dia da
próxima legislatura”.
3. O pedido - que, tal como vem delimitado pelo requerente, tem por objecto
todas as normas do referido decreto - assenta nos seguintes fundamentos:
“1 - Na decorrência do artigo 227°, nº 1, alínea a) da Constituição, as regiões
autónomas têm o poder, a definir nos respectivos estatutos de “legislar no
âmbito regional em matérias enunciadas no respectivo estatuto
político-administrativo e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania”,
acrescendo que, nos termos do artigo 228°, nº 1, do texto constitucional, “a
autonomia legislativa das regiões autónomas incide sobre as matérias enunciadas
no respectivo estatuto político-administrativo que não estejam reservadas aos
órgãos de soberania”, sendo que, por força do artigo 46° da Lei Constitucional
nº 1/2004, de 24 de Julho, até à eventual alteração das disposições dos
estatutos político-administrativos das regiões autónomas, prevista na alínea f)
do nº 6 do artigo 168°, o âmbito material da competência da Região Autónoma da
Madeira é o constante do artigo 40° do respectivo Estatuto
Político-administrativo.
2 - Nesta conformidade, importará averiguar se a matéria que constitui objecto
do diploma sob sindicância relativa ao “Regime de execução das
incompatibilidades e impedimentos dos deputados à Assembleia Legislativa da
Madeira” se encontra ou não reservada à competência própria dos órgãos de
soberania, maxime, à competência legislativa da Assembleia da República, pois
que, a assim ser o parlamento regional ao aprovar a normação em causa invadiu a
esfera própria e reservada do parlamento nacional.
3 - Ora, já anteriormente houve ensejo de se assinalar que o estatuto dos
titulares dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas - desde logo os
deputados às assembleias legislativas - é definido nos respectivos estatutos
político-administrativos (artigo 231°, nº 7), devendo estes ser aprovados pela
Assembleia da República, embora mediante iniciativa das assembleias legislativas
das regiões (artigo 226°).
4 - E, como se decidiu no já citado Acórdão nº 637/95, “a Constituição exige que
o estatuto desses titulares de órgãos de governo próprio [os deputados às
assembleias legislativas das regiões], se ache definido no Estatuto
Político-Administrativo. Há, pois, uma reserva de lei estatutária na matéria. A
definição desse estatuto tem de abranger os deveres, as responsabilidades e
incompatibilidades desses titulares, bem como os respectivos direitos, regalias
e imunidades”.
5 - Deste modo, acompanhando o entendimento assumido no também citado Acórdão nº
382/2007, deverá concluir-se que a matéria das incompatibilidades [e dos
impedimentos] faz parte integrante do estatuto dos deputados às assembleias
legislativas das regiões.
6 - À luz do exposto, tendo-se adquirido que a definição do estatuto dos
deputados às assembleias legislativas das regiões autónomas é da competência da
Assembleia da República a coberto da alínea b) do artigo 161°, por ser matéria a
definir nos correspondentes Estatutos Político-Administrativos e outrossim que a
matéria das incompatibilidades e impedimentos haveria de integrar
necessariamente esse estatuto porque as normas em apreço traduzem alterações ao
regime das incompatibilidades e impedimentos constante do Estatuto
Político-Administrativo em vigor, impõe-se concluir que tais normas sofrem do
vício de inconstitucionalidade.
7 - Como do mesmo modo a norma do artigo 4º do diploma em apreço, quando atribui
ao Tribunal Constitucional competência para servir de depositário de declarações
ali apresentadas pelos deputados à Assembleia Legislativa, cometendo-lhe ainda
competência para proceder à análise e fiscalização das declarações dos
deputados, invade manifestamente a reserva absoluta de competência legislativa
da Assembleia da República à qual pertence, em exclusivo, legislar sobre
“organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional” [artigo 164°,
alínea c)].
8 - Com efeito, a matéria versada em todos os artigos do diploma em apreço (o
que rege sobre o início da vigência é, dos demais, meramente instrumental)
independentemente de representar ou não alteração material ao actual regime das
incompatibilidades e impedimentos dos deputados à Assembleia Legislativa, — e em
parte nela se contêm diversas alterações - nunca poderia validamente ser objecto
de um decreto legislativo regional.
8 - A conformidade constitucional de semelhante intento dependia do respeito
pelo procedimento legislativo próprio da alteração dos estatutos
político-administrativos regionais, designadamente da assumpção do “momento
impulsivo” através da apresentação do correspondente projecto nos termos dos nºs
1 e 4 do artigo 226° da Constituição, possibilitando-se depois o “momento
deliberativo” reservado à Assembleia da República.
9 - Não tendo sido adoptada a via constitucionalmente traçada e imposta para a
introdução de alterações nos estatutos político-administrativos das regiões
autónomas toma-se imperioso o reconhecimento da inconstitucionalidade de todas
as normas do diploma em apreço.
Do que vem de se expor, poderá concluir-se que todas as normas do decreto em
apreço por ultrapassarem o âmbito da competência legislativa da Assembleia
Legislativa, violando as normas dos artigos 161°, alínea b), 231°, n.º 7, 164°,
alínea c), 227°, nº 1, alínea a) e 228°, nº 1, todas da Constituição, se
encontram feridas do vício de inconstitucionalidade orgânica”.
4. Notificado nos termos e para os efeitos do artigo 54.º da LTC, o Presidente
da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira ofereceu o merecimento
dos autos.
5. Apresentado o memorando previsto no artigo 58.º, n.º 2, da LTC e tendo-se
fixado, uma vez concluída a respectiva discussão, a orientação do Tribunal,
cumpre agora formular a decisão, em conformidade com o disposto no artigo 59.º,
n.º 3, da LTC.
II – Fundamentação
6. O decreto aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira
em 22 de Novembro de 2007, cuja fiscalização preventiva da constitucionalidade
vem solicitada ao Tribunal Constitucional, visa – como resulta expressamente,
desde logo, do seu próprio preâmbulo – introduzir “alterações não só de conteúdo
– por desactualização – mas também de sistematização” ao regime das
incompatibilidades e impedimentos dos deputados à Assembleia Legislativa da
Madeira, regime esse que actualmente consta dos artigos 34º (Incompatibilidades)
e 35º (Impedimentos) do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da
Madeira, aprovado pela Lei nº 13/91, de 5 de Junho e alterado pela Lei nº
130/99, de 21 de Agosto e pela Lei nº 12/2000, de 21 de Junho.
Este objectivo, já anunciado nas considerações preambulares, é depois confirmado
pelo seu próprio articulado, onde, logo no artigo 1º (Âmbito), se explicita que
“o presente decreto legislativo regional estabelece as incompatibilidades e
impedimentos dos deputados à Assembleia Legislativa da Madeira”. Seguidamente,
no artigo 2º (Incompatibilidades), enumeram-se os cargos ou funções
incompatíveis com o exercício do mandato de deputado (nº 1) ou com a função de
deputado (nº 2), e, no artigo 3º (Impedimentos), as actividades, formas de
participação e serviços que se encontram vedados aos deputados ou aqueles para
que carecem de autorização da Assembleia Legislativa. Por sua vez, no artigo 4º
(Fiscalização pelo Tribunal Constitucional) estabelece-se a obrigatoriedade de
os deputados depositarem no Tribunal Constitucional “declaração de inexistência
de incompatibilidades ou impedimentos, donde conste a enumeração de todos os
cargos, funções e actividades profissionais exercidos pelo declarante, bem como
de quaisquer participações iniciais detidas pelo mesmo” (nº 1), bem como que
“compete ao Tribunal Constitucional proceder à análise e fiscalização das
declarações dos deputados”. Finalmente, no artigo 5º, estabelece-se que o novo
diploma “entra em vigor no primeiro dia da próxima legislatura”.
Assim, muito embora o decreto legislativo regional se auto-intitule “Regime de
Execução das Incompatibilidades e Impedimentos dos Deputados à Assembleia
Legislativa da Madeira”, o facto é que, nos termos deste diploma, a própria
definição do regime das incompatibilidades ou impedimentos dos deputados à
Assembleia Legislativa da Madeira passaria a ser feita por esse mesmo decreto e
não, como hoje acontece, pelo Estatuto Político-Administrativo da Região
Autónoma da Madeira.
7. Comparando os artigos 34º (Incompatibilidades) e 35º (Impedimentos) do actual
Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira com os artigos 2º
e 3º do decreto ora em apreciação é possível identificar diferenças entre ambos.
Além das que se explicam pela posterior (em relação ao Estatuto) alteração da
designação de certos cargos – onde se falava em Ministro da República passa a
falar-se em Representante da República – ou pela extinção de outros – Delegado
do Governo Regional no Porto Santo –, podem identificar-se as seguintes
diferenças de regime:
- Quanto à matéria das incompatibilidades (i) na alínea b) do n.º 1 do artigo 2º
são aditados, em relação ao texto constante do Estatuto, os membros do Supremo
Tribunal Administrativo; (ii) por outro lado, onde na alínea f) do nº 1 do
artigo 34º do Estatuto se referia “Embaixador não oriundo da carreira
diplomática”, refere-se agora, na alínea f) do n.1 do artigo 2º; apenas
“Embaixador”; (iii) onde na alínea h) do Estatuto se referia “Presidente e
vereador a tempo inteiro das câmaras municipais” refere-se agora, na alínea h)
do n.º 1 do artigo 2ª, “Presidente e vereador a tempo inteiro ou em regime de
meio-tempo das câmaras municipais”; (iv) e onde na alínea o) do Estatuto se
referia “Membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social”, refere-se agora,
na alínea o) do n.º 1 do artigo 2º, “Membro de órgão de direcção ou
administração de entidade reguladora independente”.
- Quanto à matéria dos impedimentos a alteração substantiva significativa
traduz-se na introdução de uma nova alínea nos termos da qual é vedado aos
deputados da Assembleia Legislativa da Madeira “No exercício de actividade de
comércio ou indústria, participar em concursos públicos de fornecimento de bens
e serviços, bem como em contratos com o Estado, a Região ou outras pessoas
colectivas de direito público” [artigo 3º, nº 3, alínea d)].
8. No entendimento do Representante da República para a Região Autónoma da
Madeira o diploma em causa é organicamente inconstitucional, por violação dos
artigos 161º, alínea b), 231º, nº 7, 164º, alínea c), 227º, nº 1, alínea a) e
228º, nº 1, da Constituição, na medida em que fazendo a matéria das
incompatibilidades e impedimentos necessariamente parte integrante do estatuto
dos deputados à Assembleia Legislativa da Madeira e sendo a competência para a
alteração deste exclusivamente reservada à Assembleia da República, a mesma não
poderia ser objecto de um decreto legislativo regional.
Para decidir a questão de constitucionalidade que vem colocada importa, em
primeiro lugar, determinar se a matéria das incompatibilidades e impedimentos
dos deputados às assembleias legislativas regionais é matéria que
necessariamente faz parte do estatuto dos titulares dos órgãos de governo
próprio das regiões autónomas e se é matéria a regular nos respectivos estatutos
político-administrativos e, em caso de resposta afirmativa, decidir a quem está
constitucionalmente atribuída [se à Assembleia da República se à Assembleia
Legislativa das regiões autónomas] a competência para a sua definição ou
modificação. Qualquer destas questões já foi, porém, e ainda muito recentemente,
desenvolvidamente tratada e respondida pelo Tribunal Constitucional no Acórdão
n.º 382/2007 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
8.1. Assim, por um lado, sobre a questão de saber se a matéria das
incompatibilidades e impedimentos dos deputados às Assembleias Legislativas
Regionais é matéria estatutária, escreveu-se naquele Acórdão:
“6. […] não se vislumbram razões válidas para não incluir na expressão “estatuto
dos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas” a matéria das
incompatibilidades e impedimentos desses titulares.
O sentido normal e corrente de estatuto de titular de qualquer órgão engloba a
definição quer dos direitos, regalias e imunidades de que beneficiam, quer dos
deveres, responsabilidades, incompatibilidades e impedimentos que oneram os
respectivos sujeitos. Cabe, assim, neste conceito de “estatuto” a generalidade
dos aspectos referidos no n.º 2 do artigo 117.º da CRP, incluindo as
incompatibilidades […].
A circunstância de os estatutos político-administrativos das Regiões Autónomas
terem uma relevante dimensão organizatória não pode fazer esquecer que é a
própria Constituição que, ao definir o seu conteúdo obrigatório, determina que,
a par da definição dos poderes das Regiões referidos nas diversas alíneas do n.º
1 do artigo 227.º e da enunciação das matérias sobre que incide a autonomia
legislativa regional (n.º 1 do artigo 228.º), aqueles estatutos definam o
estatuto dos titulares dos seus órgãos de governo próprio (n.º 7 do artigo
231.º), não se justificando qualquer restrição deste último conceito em termos
de dele excluir a matéria das incompatibilidades.
Trata-se, aliás, de questão que já foi objecto de pronúncia por este Tribunal,
sempre no sentido de que a definição das incompatibilidades se insere no âmbito
do estatuto dos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas.
No Acórdão n.º 92/92 (Diário da República, I Série-A, n.º 82, de 7 de Abril de
1992, p. 1644, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º vol., p. 7) - em que
o Tribunal Constitucional, também em sede de fiscalização preventiva, se
pronunciou, com fundamento em violação das disposições conjugadas dos artigos
164.º, alínea b), 228.º, n.ºs 1 a 4, 229.º, n.º 1, alínea a), e 233.º, n.º 5, da
Constituição (correspondentes aos actuais artigos 161.º, alínea b), 226.º, n.ºs
1 e 4, 227.º, n.º 1, alínea a), e 231.º, n.º 7), pela inconstitucionalidade de
todas as normas do decreto, aprovado pela Assembleia Legislativa Regional da
Madeira, na sessão de 11 de Fevereiro de 1992, subordinado ao título “Alterações
ao Estatuto do Deputado” -, após referências às revisões constitucionais de 1982
e de 1989 que foram retomadas no Acórdão n.º 637/95 e atrás transcritas,
entendeu-se parecer não restarem dúvidas de que:
“a) Só a Assembleia da República pode legislar sobre o estatuto (e suas
alterações) dos titulares dos órgãos de governo regional – maxime sobre o
estatuto dos deputados regionais [cf. os artigos 228.º, n.º 1, e 233.º, n, º 5,
da Constituição];
b) Esse estatuto - ou seja, o estatuto dos órgãos de governo regional - tem de
constar do estatuto político-administrativo da respectiva região autónoma (cf.
artigo 233.º, n.º 5);
c) O mesmo estatuto há-de versar «sobre os deveres, responsabilidades e
incompatibilidades» dos titulares daqueles órgãos, e bem assim «sobre os
respectivos direitos, regalias e imunidades» (cf. artigo 120.º, n.º 2).”
(sublinhado acrescentado).
Nenhum dos votos de vencido apostos a este acórdão dissente da afirmação de que
a matéria das incompatibilidades integra o estatuto dos titulares dos órgãos de
governo próprio das Regiões Autónomas que deve constar dos respectivos estatutos
político-administrativos.
[...].
O entendimento de que a matéria das incompatibilidades integra o estatuto dos
titulares dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas foi reiterado no
já citado Acórdão n.º 637/95, onde expressamente se reafirmou:
“Com efeito, a Constituição exige que o estatuto desses titulares de órgãos de
governo próprio regional [os deputados às Assembleias Legislativas Regionais] se
ache definido no estatuto político-administrativo. Há, pois, uma reserva de lei
estatutária na matéria. A definição desse estatuto tem de abranger os deveres,
as responsabilidades e incompatibilidades desses titulares, bem como os
respectivos direitos, regalias e imunidades.” (sublinhado acrescentado)”.
Nestas circunstâncias, há que concluir que o regime de incompatibilidades e
impedimentos dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas faz parte do
estatuto destes órgãos, o qual, necessariamente, deve constar dos estatutos
político-administrativos das regiões autónomas.
8.2. Por outro lado, também sobre a questão de saber a quem está
constitucionalmente atribuída a competência para definir ou alterar o estatuto
dos deputados às Assembleias Legislativas Regionais se pronunciou o Tribunal
desenvolvidamente naquele Acórdão. Escreveu-se então, citando o Acórdão n.º
637/95 e após se ter feito uma resenha da evolução constitucional da matéria:
“[17] – Relativamente aos titulares de cargos políticos do governo próprio das
Regiões Autónomas, é pacífico que a competência para a fixação do seu regime
estatutário não se acha prevista no artigo 167.º da Constituição, não obstante a
formulação extremamente abrangente da parte final de nova alínea l) («bem como
dos restantes órgãos constitucionais ou eleitos por sufrágio directo e
universal»). A evolução do texto constitucional e a análise dos trabalhos
preparatórios das duas revisões constitucionais de 1982 e de 1989 fundamentam
esta afirmação.
Tal competência cabe à Assembleia da República, é certo, mas a iniciativa
legislativa está atribuída em exclusivo às assembleias legislativas regionais –
é o que resulta dos artigos 164.º, alínea b), 228.º e 233.º, n.º 5, da Lei
Fundamental, como acima se referiu.
Na verdade, o artigo 233.º da Constituição regula a matéria atinente aos órgãos
de governo próprio das duas regiões autónomas, esclarecendo que tais órgãos são
a assembleia legislativa regional e o governo regional (n.º 1). O n.º 5 deste
artigo, por seu turno, estabelece que «o estatuto dos titulares dos órgãos de
governo próprio das regiões autónomas é definido nos respectivos estatutos
político-administrativos».”
Acrescentando-se, depois:
“Como na precedente transcrição do Acórdão n.º 637/95 se refere, a adopção, na
revisão de 1989, na alínea l) do artigo 167.º, de uma fórmula mais ampla do que
a da alínea g) do mesmo preceito na versão de 1982, não significou a inclusão,
naquela previsão, dos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões
autónomas, designadamente dos deputados das assembleias legislativas regionais.
A clara intenção manifestada no debate parlamentar foi a de rejeitar essa
inclusão, como resulta inequivocamente das intervenções dos Deputados António
Vitorino, Pedro Roseta, Rui Machete (Presidente da Comissão) e José Magalhães
(Diário da Assembleia da República, II Série-RC, n.º 108, de 22 de Maio de 1989,
pp. 3055-3056), tendo o primeiro expressamente referido que: “é óbvio e evidente
que neste estatuto dos titulares dos órgãos eleitos por sufrágio directo e
universal não se inclui o estatuto dos titulares dos órgãos de governo próprio
das regiões autónomas. No caso das assembleias regionais esses órgãos são
eleitos por sufrágio directo e universal, mas isso é matéria que a Constituição
atribui especificamente às regiões autónomas”, tendo o Presidente da Comissão
salientado tratar-se de “uma precisão importante, embora ela resulte de
interpretação sistemática”, “porque de outro modo seria conflituante”, o que foi
corroborado pelo Deputado José Magalhães, que salientou que “o n.º 5 do artigo
233.º reza o seguinte: «O estatuto dos titulares dos órgãos de governo próprio
das regiões autónomas é definido nos respectivos estatutos
político-administrativos»”.
A mesma conclusão seria, aliás, imposta pela mera comparação da alínea l) do
artigo 167.º, na versão de 1989, com a precedente alínea j) do mesmo preceito
(que inseria na reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da
República a matéria das “eleições dos titulares dos órgãos de governo próprio
das regiões autónomas e do poder local, bem como dos restantes órgãos
constitucionais ou eleitos por sufrágio directo e universal”). A referência aos
titulares dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas na alínea j) e a
omissão de referência a esses titulares na subsequente alínea l), e a menção em
ambas as alíneas dos “restantes órgãos constitucionais ou eleitos por sufrágio
directo e universal” implica necessariamente, por um lado, que nesta última
categoria não cabem aqueles titulares (pois se coubessem seria redundante a sua
específica menção na alínea j)), e, por outro lado, que se quis diferenciar o
enquadramento constitucional da competência legislativa (sempre absolutamente
reservada) da Assembleia da República relativamente aos órgãos de governo
próprio das regiões autónomas: a matéria eleitoral no âmbito da competência
legislativa “comum” e a matéria do estatuto dos titulares desses órgãos fora
dessa competência “comum”, porque inserida na competência “estatutária” (alínea
b) do artigo 164.º). Por isso, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, p.
666), anotando a omissão, na alínea l) (em contraste com a alínea j)), da menção
aos titulares dos órgãos das regiões autónomas, assinalam que “o estatuto deles
há-de constar do respectivo estatuto regional (artigo 233.º, n.º 5), cuja
aprovação também pertence em exclusivo à Assembleia da República (cf. artigos
164.º, alínea b), e 228.º)”.
Não se tendo verificado, como inicialmente se referiu, alterações relevantes,
nas revisões constitucionais posteriores à de 1989, na formulação das normas
correspondentes aos actuais artigos 164.º, alínea m), e 231.º, n.º 7, da CRP, é
de reiterar o entendimento, acolhido pela doutrina (cf., por último, Jorge
Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo II, Coimbra, 2006,
p. 521: “O estatuto dos órgãos das regiões autónomas integra-se na reserva
absoluta da Assembleia, mas não com fundamento na alínea m) [do artigo 164.º], e
sim com fundamento na alínea b) do artigo 161.º, pois ele constitui matéria de
estatuto político-administrativo”) e jurisprudência citadas, de que a definição
do estatuto dos titulares de órgãos de governo próprio das regiões autónomas,
designadamente dos deputados das respectivas assembleias legislativas, é da
competência da Assembleia da República, não ao abrigo da alínea m) do artigo
164.º, mas a coberto da alínea b) do artigo 161.º, por ser matéria que deve ser
definida nos correspondentes estatutos político-administrativos, e não em “lei
comum” da Assembleia da República.
Daqui decorre a impossibilidade da afirmação da existência de uma “concorrência
de competências” nesta matéria entre “lei comum” e “lei estatutária” da
Assembleia da República.”
Assim sendo, importa concluir que está reservado ao órgão de soberania
Assembleia da República legislar sobre o regime de incompatibilidades e
impedimentos dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas.
9. Ora, demonstrado, por um lado, que a matéria das incompatibilidades e
impedimentos dos deputados regionais faz parte integrante do respectivo
estatuto, constante dos estatutos político-administrativos das regiões
autónomas, e que a legislação sobre esse estatuto dos titulares de órgãos de
governo próprio das regiões autónomas, designadamente dos deputados das
respectivas assembleias legislativas, é da competência da Assembleia da
República, nos termos constantes da alínea b) do artigo 161.º da Constituição,
na sequência de apresentação do correspondente projecto pelas assembleias
legislativas regionais (n.ºs 1 e 4 do artigo 226.º da CRP), apenas resta
concluir no sentido de que o decreto ora em apreciação, que pretende fixar o
“Regime de Execução das Incompatibilidades e Impedimentos dos Deputados à
Assembleia Legislativa da Madeira” e que foi aprovado pela Assembleia
Legislativa da Madeira em sessão plenária de 22 de Novembro de 2007, enferma de
inconstitucionalidade orgânica por violação do disposto nos artigos 161°, alínea
b), 227°, nº 1, alínea a), 228°, nº 1 e 231°, n.º 7 da Constituição da República
Portuguesa.
10. Inconstitucionalidade que afecta necessariamente todas as normas do diploma
em apreço, já que, sendo o regime das incompatibilidades e impedimentos dos
órgãos de governo próprio das regiões autónomas matéria a regular pelo órgão de
soberania Assembleia da República, nos estatutos político-administrativos das
regiões autónomas, à Assembleia Legislativa da Madeira está vedado legislar
sobre a mesma.
11. Acresce, em relação ao disposto no artigo 4º do referido decreto (supra já
integralmente transcrito), que ele é ainda inconstitucional, por violação do
disposto no artigo 164º, alínea c), da Constituição, já que pretende atribuir ao
Tribunal Constitucional competência para receber e “proceder à análise e
fiscalização das declarações dos deputados” da Assembleia Legislativa, sendo
certo que, nos termos daquele citado artigo da Constituição da República
Portuguesa, também essa é matéria da exclusiva competência da Assembleia da
República.
III – Decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide pronunciar-se pela
inconstitucionalidade, por violação das disposições conjugadas dos artigos 161°,
alínea b), 164°, alínea c), 226, n.ºs 1 e 4, 227°, nº 1, alínea a), 228°, nº 1,
e 231°, n.º 7, da Constituição da República Portuguesa, das normas constantes do
decreto que estabelece o “Regime de Execução das Incompatibilidades e
Impedimentos dos Deputados à Assembleia Legislativa da Madeira”, aprovado pela
Assembleia Legislativa da Madeira em 22 de Novembro de 2007.
Lisboa, 14 de Janeiro de 2008
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Ana Maria Guerra Martins (acompanho a decisão, com os fundamentos constantes de
declaração que anexei ao acórdão n.º 382/07).
Mário José de Araújo Torres
Joaquim de Sousa Ribeiro
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
José Borges Soeiro
Rui Manuel Moura Ramos