Imprimir acórdão
Processo n.º 646/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Relatório
Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (a fls. 9 a 16), foram indeferidas
as diligências de prova requeridas pelo detido e foi determinada a execução do
mandado de detenção europeu emitido em 25 de Março 2008 pelo Procurador-geral da
República junto do Tribunal de Grande Instância de Paris, com a entrega do
cidadão guineense A. para os fins aí consignados.
Pode ler-se no texto do acórdão, para o que agora releva, o seguinte:
“ […]
O detido, quando da sua audição, declarou opor-se à execução do mandado e não
renunciar ao benefício da regra de especialidade.
Conformidade dispõe o art.° 21 do DL n° 65/2003, de 23/08, a pessoa procurada só
pode opor à sua entrega ao Estado de emissão, com o fundamento no erro na
identidade ou a existência de causa de recusa de execução do MDE.
As causas de recusa de execução do MDE encontram-se tipificadas no art.° 11 do
mesmo diploma legal. São as seguintes:
“a) A infracção que motiva a emissão do mandado de detenção europeu tiver sido
amnistiada em Portugal, desde que os tribunais portugueses sejam competentes
para o conhecimento da infracção;
b) A pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por
um Estado membro desde que, em caso de condenação, a pena tenha sido
integralmente cumprida, esteja a ser executada ou já não possa ser cumprida
segundo a lei do Estado membro onde foi proferida a decisão;
c) A pessoa procurada for inimputável em razão da idade, nos termos da lei
portuguesa, em relação aos factos que motivam a emissão do mandado de detenção
europeu;
d) A infracção for punível com pena de morte ou com outra pena de que resulte
lesão irreversível da integridade física;
e) A emissão do mandado de detenção for determinada por motivos políticos.”
Analisando os supra transcritos fundamentos invocados pelo detido para se opor à
sua entrega às autoridades francesas, não se vislumbra com efeito, nenhuma
destas razões que poderiam obviar ao cumprimento do mandado de detenção europeu.
No essencial o que o detido pretende colocar em crise, e no essencial, é a
factualidade que determinou a emissão do mandado. Mas essa questão, como saberá,
não está aqui em discussão. Isso será matéria que poderá alegar em sede da
investigação aberta pelas autoridades francesas e para a qual este Tribunal não
tem competência. Aqui e apenas está em análise o teor do mandado e saber se
existe algum óbice, que se encontre legalmente estipulado, ao seu cumprimento.
Daí não ter alcance as diligências de prova solicitadas.
Não existindo causa de recusa de execução do mandado de detenção, subsiste
apenas como fundamento erro na identificação do detido.
E é precisamente este o fundamento que o detido aduz na sua oposição, procurando
colocar em crise a sua identificação, dizendo que nunca teve a alcunha de “…” e
sua esposa também não é conhecida por “…”.
No entanto, quando da sua audição por este Tribunal, verificou-se não existir
tal erro, tendo então dado a sua identificação, a qual ficou registada no
respectivo auto e que corresponde à constante no mandado.
Por outro lado o cidadão visado, quando foi detido no aeroporto de Lisboa, era
portador do passaporte guineense n.° ….. e do bilhete de identidade guineense
n.° ….., ambos os documentos com o seu nome e que então lhe foram apreendidos.
Estes documentos correspondem, de forma inequívoca, aos mencionados no mandado
de detenção como sendo do detido – v. fls. 53.
Por este motivo não faria sentido estar a procurar produzir prova sobre a
identidade do detido, e apenas sobre esta, a qual para o Tribunal está
esclarecida.
Nestes termos não se vislumbra que não se possa deixar de cumprir o mandado, uma
vez que inexiste fundamento legal para a recusa de cumprimento do presente MDE.
[…]”
Deste acórdão recorreu A. para o Supremo Tribnunal de Justiça, formulando nas
alegações respectivas (fls. 17 a 23) as seguintes conclusões:
“ […]
a) O TRL julgou improcedente a oposição deduzida por A., nacional da
Guiné-Bissau e residente em S. Paulo, Brasil, considerando haver coincidência
entre o nome do visado no MDE e os documentos de identidade referentes ao
oponente;
b) Aplicou assim o art.° 21/2, DL.65/2003 de 23.08, no sentido do erro de
identificação ter, nestes casos, um alcance restritivo e formal, remetendo a
substância da identidade do arguido para o debate interprocessual penal, segundo
a lei interna do Estado emissor do MDE;
c) Mas, onde a lei não distingue não deve o intérprete distinguir, e a lei não
distingue aqui – aliás, de acordo com uma visão do ordenamento conformado com a
implementação e defesa dos direitos humanos;
d) Se bem virmos os motivos de recusa de cumprimento dos MDE são todos eles
indexados a atitudes intoleráveis, nomeadamente, atitudes formais de
incumprimento substantivo das normas jurídicas do respeito pela dignidade
humana;
e) Ora, prender por erro de indiciação do autor do crime é um concreto e
pesadíssimo desrespeito da dignidade humana, uma violação relevante do princípio
dos direitos humanos de presunção de inocência do arguido, ou mais precisamente,
de infracção á justa medida de uma compressão dos direitos pro libertate;
f) Assim, deve ser considerado erro de identificação do visado em MDE, todo
aquele que resulta da incongruência indiciária da base de justificação da
autoridade emissora dada ao MDE (e motivos que são obrigatórios, justamente para
poderem ser objecto de controlo jurisdicional em debate contraditório), da qual
resulta uma certa nomeação, contestada com êxito;
g) Tendo o recorrente argumentado este tipo de erro, não poderia ter sido
afastado o mérito da oposição sem pelo menos ter sido aberta a fase intercalar
probatória que o art.° 22/2 da Lei citada permite;
h) O Acórdão recorrido infringiu, por conseguinte, este preceito em conjugação
com o art° 21/2 cit., pelo que deve ser revogado, no sentido, pelo menos, de ser
ordenada a realização das diligências requeridas na oposição;
[…]”
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 29 de Maio de 2008 (a fls. 26 a
35), negou provimento ao recurso interposto por A., confirmando inteiramente a
decisão recorrida.
Pode ler-se no texto do acórdão, para o que agora releva, o seguinte:
“ […]
O recorrente, dentro dos direitos que lhe são conferidos e foram já mencionados,
opôs-se à execução do mandado com fundamento em erro na identidade, como lhe
faculta o art. 21°, n.° 2, da Lei n.° 65/2003.
Todavia, esse fundamento, nos termos em que foi apresentado, extravasa
claramente do seu sentido e finalidade.
Na realidade, o recorrente impugna é a autoria dos factos imputados, procurando
demonstrar que não podia ser a pessoa a quem são atribuídos os factos delituosos
em virtude dos quais é pedida a sua entrega. Para isso, aponta factos destinados
a excluir a sua responsabilidade, quer invocando não ter tido relações, a não
ser comerciais, com um tal B., quer afirmando que esse tal B. nunca esteve em
sua casa, no Brasil, com a sua família, estando a sua mulher em iminência de
parto e que não conhecia os acompanhantes desse tal B., quer ainda insinuando
que a sua identificação foi certamente obtida pela polícia brasileira, através
do contacto que deixou ao B. e, por último, que nunca teve qualquer conexão com
a França, a não ser ter estado preso nesse país durante dois meses, tendo sido
interceptado no aeroporto de Paris, vindo de S. Paulo para Lisboa, com vinhetas
shengan falsas.
Ora, todo esse circunstancialismo entra já no domínio da defesa no âmbito dos
factos imputados no processo criminal com base no qual é pedida a sua entrega. É
o mesmo que um arguido a quem são imputados determinados factos qualificados
como crime vir defender-se, dizendo que não é ele o autor dos factos, alegando
um álibi ou mesmo um erro na pessoa que foi agente desses factos. Claro que este
tipo de defesa sugere um erro de identificação na pessoa que foi agente dos
respectivos crimes. O sujeito a quem são imputadas as condutas qualificadas como
crime foi, afinal, um outro.
Mas não há um erro de identidade, se a pessoa indiciada corresponde à pessoa
física, com uma determinada identidade civil, que no processo aparece como
sujeito do ou dos crimes imputados. A prova tendente a demonstrar que essa
pessoa não é o sujeito dos factos imputados é já uma prova que se exerce no
âmbito do processo-crime, no exercício de um direito de defesa correspondente às
garantias próprias do processo criminal. Não é, porém, a defesa que a Lei n.°
65/2003 concede à pessoa procurada por um Estado membro (o Estado emissor do
mandado de detenção europeu) no âmbito da oposição fundada no erro de
identidade. Esta última diz mesmo só respeito aos sinais de identificação de
determinada pessoa, de acordo com os documentos ou títulos considerados idóneos
para tal identificação.
Quanto a saber se a pessoa que tem a identidade X, devidamente comprovada, é ou
não autora dos factos que num processo criminal lhe são imputados, esse problema
tem a ver já exclusivamente com a sua defesa nesse processo. E essa defesa não
se faz no âmbito do processo de execução do mandado de detenção europeu, mas no
próprio processo para instrução do qual é pedida a entrega da pessoa procurada e
perante a autoridade judiciária do Estado emitente, onde, segundo o direito aí
aplicável, lhe será assegurado o pleno exercício do contraditório. A respeito
deste, diz-se no Acórdão deste STJ de 13/1/2005, Proc. n.° 71/05, da 5.ª Secção:
Isto não quer significar, obviamente, que os dados fornecidos pela entidade
emitente não possam ou não devam ser objecto de controlo ou contradição pelo
interessado. Sê-lo-ão, na lógica do sistema, no âmbito do processo penal
respectivo, mas, naturalmente, de execução inapropriada no âmbito de um processo
ultra-célere e simplificado como este da execução do MDE.
E no Acórdão de 17/1/2007, Proc. n.° 4828/06, da 3.ª Secção (CJ-ACS STJ 2007, T.
1°, p. 168 e ss., citado pelo Ministério Público na sua resposta: “O recorrente
é havido pelas autoridades judiciárias espanholas como autor do ilícito, o que
sucede é que, ante a nossa ordem judiciária nacional, este, através de vários
meios de que intenta lançar não, pretende demonstrar que não praticou os factos,
objectivo que se não amolda ao espírito de cooperação desejável entre os Estados
da EU, a breve trecho transformando o mandado num processo de investigação dos
factos, retardando a entrega (…)”
Ora, dúvidas não há em relação à identidade da pessoa procurada, que é o
recorrente. Como argumenta o Ministério Público, não há a menor dúvida de que a
pessoa procurada é o cidadão guineense A., nascido no dia 30 de Janeiro de 1977,
natural da Guiné-Bissau e residente, com sua mulher C., na Rua …, …, AP…, Bairro
…, em São Paulo, Brasil. Para além disso, consta ainda do Mandado de Detenção
Europeu que o requerido é titular do passaporte Guineense n.º CA … e do Bilhete
de Identidade Guineense n.º …, sendo certo que são precisamente estes os
documentos que este exibiu no momento da detenção e lhe foram apreendidos. Estes
elementos de identificação correspondem e dizem respeito, inequivocamente, à
pessoa do ora requerido.
Assim sendo, não pode deixar de se confirmar a decisão recorrida, negando
provimento ao recurso.
[…]”
Em 11 de Junho de 2008 o recorrente A. apresentou requerimento (a fls. 36 a 38)
com o seguinte teor, na parte que agora releva:
“[…]
A., recorrente nos autos em epígrafe e neles melhor identificado, notificado do
acórdão, douto aliás, tirado nos autos, vem pedir aclaração revogatória, nos
termos do art° 668°, n° 2, al. a) do C.P.C., o que faz nos termos e com os
fundamentos seguintes:
1º
Vossas Excelências decidiram, do ponto de vista formal, que a identificação
estava estabelecida no MDE e que não permite a legislação um juízo material
sobre o tema, fundamentalmente por razões de celeridade e porque se tratará,
afinal, de matéria de defesa e não captura em si mesmo e somente considerada.
2°
Em primeiro lugar o recorrente considera que este último item coloca erradamente
o problema, porque no direito de defesa contra a captura que está na lei
claramente devolvido ao tribunal português, uma vez que a questão da identidade
material do arguido, isto é, da coincidência indiciária entre autor da infracção
mandado prender e o visado do mandado de captura, pode e deve ser colocada.
3º
Por isso é que, por exemplo, “o extraditando” não é isento do dever legal de
responder com verdade sobre que é, sobre a sua identidade, podendo e devendo
depois para juízo de valoração ser tida em conta a versão dos acontecimentos que
fornecer ao tribunal.
4º
Tratar-se-ia, todavia, nesta perspectiva, não de um erro clamoroso de direito,
mas de um erro que não ascende à possibilidade de aclaração revogatória, não
obstante os erros dos juristas de mérito que os Senhores Conselheiros são, no
reconhecimento da lei, tenha de ser estimado, mesmo na aparência, por critérios
muitíssimo mais estreitos do que os aplicáveis aos erros dos juristas comuns.
5º
Contudo, outro erro, e este mais grave porque de ordem constitucional, e por
isso visível e relevante no quadro do art° 668°, n° 2, do C.P.C., por força da
própria Constituição, ocorreu no despacho formalista de que se reclama.
6°
Com efeito, ao reconduzir a identidade da pessoa procurada ao escrito do
mandado, ilidindo a razão material da indiciação, o Acórdão aplica o artigo 21º,
nº 2, da lei 65/2003, de modo restritivo e inconstitucional, porque a CRP,
confere o direito fundamental à identidade e como corolário necessário direito
fundamental à identidade criminal.
7º
Esta diz respeito à consistência, gradual comcerteza, segundo a fase do processo
penal, da indiciação da autoria do crime.
8°
Por isso mesmo, voltamos ao problema do início, mas agora noutra perspectiva de
visibilidade: o tribunal português tem de conferir a autoria criminal indiciária
da pessoa procurada, como conteúdo mesmo da identidade criminal a que tem
direito e garantia constitucional, como base das liberdades instituídas pelo
constitucionalismo.
9º
Há, por conseguinte, um erro de aplicação de leitura constitucional do citado
artº 21°, nº. 2 da Lei 65/2003, que é relevante para efeitos do art° 668°, n°2,
al. a) do C.P.C., pela sua própria natureza jurídica, regida pelo artigo 18°,
n°3 da C.R.P..
10º
A interpretação formalística do Acórdão, dada à norma citada, infringe o direito
fundamental à identidade previsto no artigo 26° da C.R.P. e o das garantias de
defesa, previsto no n° 1 do art° 32°, da mesma Lei Fundamental.
11°
Nestes termos, Vossas Excelências deferirão mandando que sejam juntos ao
processo, para posterior decisão de fundo pelo Tribunal da Relação, os
resultados pedidos das diligências, anotadas no requerimento de oposição do
recorrente, ora reclamante.
[…]”
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 19 de Junho de 2008 (a fls. 39 a
41), indeferiu o pedido de aclaração revogatória formulado pelo requerente A..
Pode ler-se no texto do acórdão, para o que agora releva, o seguinte:
“ […]
4. É curiosa e desconhecida do ordenamento jurídico a figura da aclaração
revogatória. A verdade é que a questão colocada pelo requerente já foi encarada
e rechaçada na decisão aclaranda, não se lhe reconhecendo relevância jurídica
para o efeito pretendido, que era o de evitar a sua entrega às autoridades
francesas por um suposto erro de identidade.
[…]
Ora, não há mais nada a dizer para além disto. Nem nada que deva ser aclarado.
Pura e simplesmente, o requerente discorda do decidido, pretendendo um
volte-face na decisão. Mas, como ele sabe perfeitamente, o poder jurisdicional
ficou esgotado com a prolação do aresto posto em causa. Por outro lado, o artº.
380°, n.° 1, alínea b), ex vi do art. 425°, n.° 4 do CPP, que é efectivamente o
aplicável à situação, estabelece que o tribunal procede oficiosamente ou a
requerimento à correcção da decisão, quando esta contiver erro, lapso,
obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
Porém, o que o requerente pretende é todo o contrário disso: obter uma
modificação da decisão que, por via de uma pretensa aclaração revogatória, venha
a dar provimento ao que foi julgado não merecer provimento.
5. Quanto à pretendida inconstitucionalidade é uma questão nova que não foi
suscitada no recurso, sendo certo que a interpretação que foi dada aos preceitos
aplicados da Lei n.° 65/2003 não foi inesperada para o requerente, pois já vinha
da decisão da Relação. Tal questão não tem, pois, que ser apreciada num pedido
de aclaração.
[…]”
A. recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos (a fls. 42):
“ […]
- pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade do artigo 21º n° 2 da Lei
65/2003, por, na interpretação que lhe foi dada de não ter como requisito uma
averiguação, em concreto, da identidade criminal do visado de mandado de
detenção europeu, infringir o arco normativo constitucional dos artigos 26° e
32° n° 1 da C.R.P.
- a questão de inconstitucionalidade supra referida foi expressamente suscitada
no pedido de aclaração do Acórdão do STJ de que se recorre, por anteriormente se
não ter suscitado com a clareza cirúrgica da decisão recorrida.;
[…]”
Por despacho de 26 de Junho de 2008 (fls. 44), não foi admitido o recurso
interposto para o Tribunal Constitucional “dado que a pretensa
inconstitucionalidade não foi suscitada durante o processo, sendo certo que
podia (e devia) ter sido suscitada, pois a questão já vinha da decisão da
Relação, tendo o recorrente defendido posição idêntica à que sustentou na
oposição que deduziu ao pedido de entrega às autoridades francesas.”
Deste despacho reclamou A. para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto
no artigo 76º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 1 a 3), alegando o
seguinte:
“ […]
1. A douta decisão do Exmo. Juiz Conselheiro, do STJ, relator, fundamenta-se em
não ter sido suscitada durante o processo a inconstitucionalidade anunciada para
a minuta do recurso endereçado ao Tribunal Constitucional
2. Mais diz o despacho que este motivo de inconstitucionalidade do art.º 21/2 da
lei 65/2003 (na interpretação que lhe foi dada de não ter como requisito uma
averiguação, em concreto, da identidade criminal do visado por mandato de
captura europeu), em si mesma infractora do arco normativo constitucional dos
arts 26 e 32/1 CRP, já vinha da decisão da Relação, devendo ter o recorrente
defendido o ponto de vista base do recurso para o Tribunal Constitucional: não o
fez!
3. Contudo, como logo se disse no requerimento de interposição do recurso, a
inconstitucionalidade supra referida só pode ter sido expressamente suscitada no
pedido da aclaração do STJ, porque anteriormente não tinha sido abordada pelas
Instâncias com a clareza cirúrgica do Acórdão do STJ.
4. E na verdade, tanto no acórdão de 1ª Instância como no acórdão da Relação,
ambas estas decisões judiciais se referem apenas a indícios da prática do crime
ou à matéria indiciária que relegam para um juízo com sede na competência
exclusiva do Tribunal francês.
5. O problema que o arguido pôs na aclaração e que lhe foi suscitado pelo
Acórdão do STJ é diferente: diz respeito à identidade e ao direito
constitucional a uma identidade – não está em causa saber se há prova indiciária
bastante para base do mandato de captura, está sim em causa saber se no mandato
de captura há ou uma usurpação, por erro judiciário, de uma identidade
constitucionalmente tutelada.
6. Na verdade, o efeito de motu contínuo ou de petição de principio, se se
quiser, da averiguação da identidade do visado, não traz consigo um erro sobre a
base factual que é objecto do processo, mas um erro sobre a identidade do autor
dos factos e visado pelo mandato de captura.
7. E este erro ataca directamente o direito à identidade na sua modalidade de
uma identidade criminal, certa, como todas as identidades.
8. Ora, surgindo este problema de surpresa no Acórdão do STJ é claro que o
reclamante não o pode, nem podia ter formulado ainda antes.
9. E nesta circunstância, tratando-se de um prejuízo evidente de um direito de
liberdade, o recurso de constitucionalidade tem de ser admitido, pela razão de a
inconstitucionalidade estar a ser arguida no primeiro momento útil da discussão
da causa.
10. E momento tão útil que a identificação da inconstitucionalidade pelo
Tribunal, na circunstância em que foi alegada, lhe proporcionaria revogar a
decisão anterior e substitui-la por outra que viesse a considerar o entendimento
da norma em causa como contrário à Constituição e, por isso, proibido na
aplicação da lei.
11. É o que resulta do art. 669/2 a) CPC e 204º. CRP.
[…]”
O Representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
pronunciou-se nos seguintes termos (fls. 50 v.º):
“A presente reclamação é manifestamente improcedente.
Para além de o ora reclamante não ter suscitado, durante o processo, a questão
de inconstitucionalidade normativa que apenas colocou no âmbito do pedido de
aclaração deduzido, verifica-se que não foi aplicada a interpretação a que vem
reportado o recurso: na verdade, como expressamente refere o acórdão proferido
pelo STJ, a fls. 33, não está em causa qualquer erro acerca da identidade do
requerido, mas a inadmissibilidade de este impugnar, nesta fase processual, a
autoria dos factos que lhe são imputados, o que – e como é evidente – se
consubstancia em critério normativo autónomo e bem distinto.”
2. Fundamentação
Tendo o presente recurso de constitucionalidade sido interposto ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, constitui
seu pressuposto processual a suscitação pelo recorrente, durante o processo, da
questão da inconstitucionalidade da norma ou interpretação normativa submetida à
apreciação deste Tribunal.
Nos termos do artigo 72.º, n.º 2, da mesma Lei, deve a questão de
inconstitucionalidade ter sido suscitada de modo processualmente adequado
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar
obrigado a dela conhecer.
Ora, como reconhece o recorrente, a questão de inconstitucionalidade que
pretende ver apreciada não foi colocada perante o Supremo Tribunal de Justiça
antes da prolação do acórdão recorrido.
A inconstitucionalidade não foi, pois, suscitada antes de esgotado o poder
jurisdicional do juiz de pronúncia sobre a matéria de que versa a questão de
constitucionalidade.
Na verdade, como expressamente se refere no acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça que recaiu sobre a aclaração, o pedido de aclaração de uma decisão não
constitui, em princípio, momento atempado e via idónea para suscitar problemas
de inconstitucionalidade de normas aplicadas na decisão recorrida, por não ser
então já possível ao tribunal recorrido apreciar questões novas, anteriormente
não colocadas ao tribunal.
Não cumpriu, assim, o recorrente o ónus de suscitação a que aludem os artigos
70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, o que
consubstancia falta de preenchimento de um pressuposto processual do recurso que
determina, em consequência, a impossibilidade de conhecimento do respectivo
objecto.
Alega, porém, o recorrente que a questão de constitucionalidade que pretende que
o Tribunal Constitucional aprecie – a inconstitucionalidade do artigo 21.º, n.º
2, da Lei n.º 65/2003, interpretado no sentido de não ter como requisito uma
averiguação, em concreto, da identidade criminal do visado de mandado de
detenção europeu – só podia ter sido expressamente suscitada no pedido de
aclaração do acórdão recorrido porquanto “anteriormente não tinha sido abordada
pelas instâncias com a clareza cirúrgica do Acórdão do STJ”.
Sem prejuízo do que acima se afirmou, implicando que o recorrente apenas possa
invocar no pedido de aclaração qualquer questão de constitucionalidade
relacionada com o próprio instituto aclaratório – e não com a matéria da causa
relativamente à qual se encontra esgotado o poder jurisdicional –, não tem
apesar disso o recorrente qualquer razão.
Antes da prolação do acórdão recorrido, já o Tribunal da Relação de Lisboa tinha
considerado não se verificar o erro na identidade do detido, a que se refere o
n.º 2 do artigo 21.º da Lei n.º 65/2003, 23 de Agosto, porquanto não só a
identificação do detido, registada no auto de audição perante aquele tribunal,
corresponde à constante do mandado, como os documentos de identificação (bilhete
de identidade e passaporte) que estavam na sua posse quando foi detido
correspondem, de forma inequívoca, aos mencionados no mandado de detenção como
sendo do detido.
E contra este entendimento insurgiu-se o ora reclamante, alegando no recurso que
interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça, que o Tribunal da Relação de Lisboa
aplicou o artigo 21.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, no sentido do erro de
identificação ter, nestes casos, um alcance restritivo e formal, remetendo a
substância da identidade do arguido para o debate interprocessual penal, segundo
a lei interna do Estado emissor do MDE.
Defendeu, então, que prender por erro na indiciação do autor do crime é uma
violação do princípio da presunção de inocência do arguido e que deve ser
considerado erro de identificação do visado em MDE, todo aquele que resulta da
incongruência indiciária da base de justificação da autoridade emissora dada ao
MDE.
Não foi, portanto, imprevisível, para o recorrente, o acolhimento por parte do
Supremo Tribunal de Justiça do entendimento de que não há um erro de identidade,
se a pessoa indiciada corresponde à pessoa física, com uma determinada
identidade civil, que no processo aparece como sujeito do ou dos crimes
imputados e de que a prova tendente a demonstrar que essa pessoa não é o sujeito
dos factos imputados é já uma prova que se exerce no âmbito do processo-crime,
no exercício de um direito de defesa correspondente às garantias próprias do
processo criminal, não sendo, porém, a defesa que a Lei n.º 65/2003 concede à
pessoa procurada por um Estado membro (o Estado emissor do mandado de detenção
europeu) no âmbito da oposição fundada no erro de identidade, dizendo esta
última só respeito aos sinais de identificação de determinada pessoa, de acordo
com os documentos ou títulos considerados idóneos para tal identificação.
Mantém-se, assim, a conclusão a que se chegara acerca da falta de preenchimento
de um dos pressupostos processuais do recurso de constitucionalidade.
Nada justificando, em consequência, a alteração do julgado.
3. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, desatende-se a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 4 de Agosto de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão