Imprimir acórdão
Processo n.º 5/10
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
A. recorreu para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, de 19 de Novembro de 2009, que, confirmando o decidido nas instâncias,
julgou improcedentes uns embargos de executado, pretendendo ver apreciada “a
inconstitucionalidade dos artigos 236°, n.° 1, e 238.°, nº 1, do Código Civil,
nos termos que foram aplicados e interpretados pelo acórdão recorrido, por força
do qual uma disposição declaração negocial (no mínimo dúbia) constante da
sentença homologatória serviu de título executivo para entrega de um prédio
urbano que apresentava uma inscrição matricial absolutamente distinta do prédio
rústico objecto de tal acção, interpretando tal declaração de modo a limitar o
direito à propriedade privada que é constitucionalmente consagrado e originando
uma expropriação pública para a qual não existe qualquer causa ou fundamento.”
Por decisão sumária de fls. 705 não se conheceu do objecto do recurso de
constitucionalidade, pelos seguintes fundamentos:
“Decorre das várias alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional que o objecto do recurso de constitucionalidade ou de legalidade
apenas pode ser constituído por normas (a estas se podendo equiparar as
interpretações normativas) e não por decisões judiciais, em si mesmas
consideradas: assim sendo, não pode o Tribunal Constitucional apreciar se
determinada decisão judicial é inconstitucional ou ilegal.
Sucede, porém, que a recorrente, submetendo embora formalmente uma interpretação
normativa à apreciação do Tribunal Constitucional – que reporta aos artigos
236º, n.º 1, e 238º, n.º 1, do Código Civil, preceitos relativos à interpretação
da declaração negocial -, mais não pretende, em substância, do que a apreciação,
por este Tribunal, da conformidade constitucional da própria decisão recorrida,
no ponto em que, procedendo à interpretação da transacção em que assentou a
sentença dada à execução, entendeu que o título executivo continha a obrigação
exequenda.
Dito de outro modo: o que a recorrente verdadeiramente questiona não é a
conformidade constitucional de certos preceitos legais relativos à interpretação
da declaração negocial, mas o modo como o tribunal recorrido interpretou certa
declaração negocial, processo interpretativo este que constitui assim o objecto
do presente recurso de constitucionalidade.
Ora, se o Tribunal Constitucional sindicasse este processo interpretativo –
verificando se a obrigação exequenda estava contida no título dado à execução -,
nenhuma norma ou interpretação normativa estaria afinal a sindicar, tudo se
resumindo ao controlo da conformidade constitucional da decisão recorrida, o que
não lhe é consentido.
Assim, por ser inidóneo o respectivo objecto, não pode conhecer-se do presente
recurso de constitucionalidade”.
Inconformada, desta decisão sumária reclama agora A. para a conferência, ao
abrigo do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, sustentando o
seguinte (fls. 713):
“[…] Sucede que, salvo o devido respeito - que é muito - entende a aqui
Reclamante que, ao invés do atrás exposto, o seu recurso cumpre todos os
pressupostos que a lei faz depender do respectivo conhecimento.
Senão vejamos,
5. A Reclamante interpôs o presente recurso ao abrigo da alínea b), do n.° 1, do
artigo 70º. da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei n.°
85/89, de 7 de Setembro e pela Lei n.° 13-A/98, de 26 de Setembro.
6. Uma vez que pretende ver apreciada a inconstitucionalidade dos artigos 236°,
n.° 1 e 238°, n.° 1, do Código Civil, nos termos em que foram aplicados e
interpretados pelo douto acórdão recorrido, por força do qual uma disposição
declaração negocial (no mínimo dúbia) constante da sentença homologatória serviu
de título executivo para entrega de um prédio urbano que apresentava uma
inscrição matricial absolutamente distinta do prédio rústico objecto de tal
acção, interpretando tal declaração de modo a limitar o direito à propriedade
privada que é constitucionalmente consagrado e originando uma expropriação
pública para a qual não existe qualquer causa ou fundamento.
7. E, entende que, com tal interpretação, o Tribunal a quo ofendeu o artigo 62.°
da Constituição, uma vez que, nos termos de tal preceito, “a todos é garantido o
direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por modo, nos
termos da Constituição”.
8. Aliás, a questão da inconstitucionalidade foi suscitada em todas as peças
processuais apresentadas pela aqui Reclamante, em sede dos recursos
apresentados, a saber nas alegações do Recurso interposto para o Venerando
Tribunal da Relação de Évora (...) e nas alegações do Recurso interposto para o
Venerando Supremo Tribunal de Justiça (...).
9. Impõe-se, por isso, enquadrar, ainda que em termos sumários, a
inconstitucionalidade que a aqui Reclamante pretende ver apreciada, de modo a
que esta fique devidamente perceptível.
10. E, não existam quaisquer dúvidas que a aqui Reclamante não pretende o
controlo constitucional da própria decisão recorrida, considerada em si mesma.
11. Mas, apenas, aferir acerca da inviabilidade de tal interpretação normativa.
Senão vejamos,
12. A aqui Reclamante entende que, nos presentes autos, a obrigação a executar
não se contém no titulo executivo (a sentença homologatória de transacção
celebrada na acção n.° 23/81) nem contém qualquer enquadramento com este.
13. Ou seja, que não existe qualquer correspondência entre a presente execução
(descrição fáctica vertida no requerimento executivo) e o título (sentença
homologatória).
14. Com efeito, de acordo com a matéria factual julgada assente nos presentes
autos:
[…]
15. Assim, considerando que a sentença homologatória de transacção celebrada na
acção n.° 23/81 constitui a base da presente execução, o fim e os limites desta
terão que ser necessariamente encontrados e determinados por via da
interpretação da cláusula do acordo que prescreve que:
Em face do que precede o autor obriga-se a deixar livres e devolutas as
instalações que ocupa no prédio em casa no prazo máximo de nove meses a contar
da data em que a Câmara lhe pagar a quantia prevista na cláusula 2ª.”
16. A aqui Reclamante entende ainda que tal prédio não poderá deixar de ser
entendido como o que se encontra referido na cláusula 1ª do acordo - prédio
rústico, no Sítio de Rias do Sul, Freguesia de Moncarapacho, inscrito na
respectiva matriz cadastral sob o art. 151, secção BN (antigo art° 38b8.° da
matriz predial rústica da mesma freguesia) e não descrito na CRP desta comarca.
17. Pelo que, as instalações referidas em tal acordo devem ser consignadas como
sendo referentes ao prédio rústico referenciado no próprio acordo.
18. Sucede que, aquilo que as Recorridas têm vindo a defender no âmbito dos
presentes autos e foi corroborado pelo douto acórdão proferido pelo Tribunal a
quo é que as instalações que o ali Autor se obrigou, no âmbito de tal
transacção, a deixar livres e devolutas é — pasme-se - um prédio urbano que já
ao tempo apresentava uma inscrição matricial absolutamente distinta do prédio
rústico objecto de tal acção.
19. E que, desde 1985 se encontrava inscrito na matriz, em nome do ali Autor.
20. Ou seja, um prédio urbano, no Sitio de Bias do Sul, Freguesia de
Moncarapacho, inscrito na respectiva matriz cadastral sob o art. 3740 e não
descrito na CRP de Olhão.
21. Pelo que, a acção executiva tem por objecto um prédio urbano que — quer em
1985, quer na actualidade - apresenta uma inscrição matricial autónoma e
absolutamente distinta do prédio rústico referido no acordo de transacção.
22. Em face do acima exposto, resulta, salvo o devido respeito e melhor
entendimento, que o douto acórdão recorrido aplicou e interpretou a declaração
negocial acima identificada, constante da sentença homologatória de transacção
celebrada na acção n.° 23/81, de modo a eliminar ou, pelo menos, limitar o
direito à propriedade privada que é constitucionalmente consagrado.
23. E, originando uma expropriação pública para a qual não existe qualquer causa
ou fundamento.
24. Ou seja, independentemente das razões que assistam à aqui Reclamante e às
Recorridas (e que não são sindicáveis em sede constitucional), urge esclarecer e
aquilatar se é possível interpretar tal declaração negocial nos termos em que
foram realizados pelo douto acórdão recorrido.
25. Ou se, pelo contrário, o artigo 62.° da Constituição, ao prescrever que a
todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou
por morte, nos termos da Constituição” impede que um acordo de transacção
referente a um prédio rústico constitua titulo executivo relativamente a um
prédio urbano que apresenta uma inscrição matricial absolutamente distinta.
26. Assim, a Reclamante não pretende que o Tribunal Constitucional verifique se
a obrigação exequenda está contida no título dado à execução.
27. Ou, pelo menos, esse não constitui o objecto imediato do presente recurso.
28. Com efeito, o Tribunal entendeu que a entrega do prédio urbano sub judice
tinha correspondência no texto da transacção (no segmento referente às
instalações) - referente a um prédio rústico que ao tempo já apresentava uma
inscrição matricial absolutamente distinta.
29. E, é entendimento da aqui Reclamante que o artigo 62.° da Constituição
impede que um acordo de transacção referente a um prédio rústico constitua
título executivo relativamente a um prédio urbano que apresenta uma inscrição
matricial absolutamente distinta.
30. Pelo que, é precisamente a conformidade constitucional de tal interpretação
normativa que a aqui Reclamante pretende ver sindicada”.
Os recorridos não responderam.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Entendeu-se na decisão sumária ora reclamada que não podia conhecer-se do
objecto do recurso de constitucionalidade, por ser o mesmo inidóneo.
Na verdade, embora colocando formalmente uma interpretação normativa à
apreciação do Tribunal Constitucional – reportada aos artigos 236º, n.º 1, e
238º, n.º 1, do Código Civil, segundo a qual “uma disposição declaração negocial
(no mínimo dúbia) constante da sentença homologatória serviu de título executivo
para entrega de um prédio urbano que apresentava uma inscrição matricial
absolutamente distinta do prédio rústico objecto de tal acção” -, a verdade é
que a recorrente pretendia que o Tribunal Constitucional sindicasse o modo como
o tribunal recorrido interpretou certa declaração negocial e, por essa via, a
conformidade constitucional da própria decisão recorrida (o que extravasa os
poderes do Tribunal Constitucional definidos nas várias alíneas do n.º 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional).
A reclamante não concorda com esta conclusão, mas os argumentos que aduz apenas
a corroboram. Com efeito, a reclamante afirma:
a) Que pretende “aferir acerca da inviabilidade de tal interpretação
normativa”, pois que, “nos presentes autos, a obrigação a executar não se contém
no título executivo […] nem contém qualquer enquadramento com este”, matéria que
claramente extravasa a competência do Tribunal Constitucional, uma vez que não
se reconduz a qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, mas apenas à
questão da interpretação do título executivo;
b) Que certo prédio “não poderá deixar de ser entendido como o que se
encontra referido na cláusula 1ª do acordo”, aspecto que evidentemente não pode
ser sindicado pelo Tribunal Constitucional, pois que não traduz qualquer
imputação de inconstitucionalidade a qualquer norma;
c) Que as instalações referidas em certo acordo “devem ser consignadas como
sendo referentes ao prédio rústico referenciado no próprio acordo”, argumentação
que envolve verificações totalmente alheias às funções do Tribunal
Constitucional;
d) Que “a acção executiva tem por objecto um prédio urbano que […] apresenta
uma inscrição matricial autónoma e absolutamente distinta do prédio rústico
referido no acordo de transacção”, inscrição essa que ao Tribunal Constitucional
certamente não compete examinar, pois que não envolve sequer a apreciação de
qualquer norma;
e) Que “urge esclarecer e aquilatar se é possível interpretar tal declaração
negocial nos termos em que foram realizados pelo douto acórdão recorrido”, o que
bem demonstra que o objecto do presente recurso não é constituído por qualquer
norma, mas pelo próprio processo interpretativo seguido pelo tribunal recorrido.
Face a toda esta argumentação, torna-se claro que a reclamante não coloca
nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa que pudesse constituir
objecto válido de recurso para o Tribunal Constitucional, pelo que nenhum há
motivo para alterar o julgado.
III. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 25 de Março de 2010
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão