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Proc. n.º 882/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
A. impugnou judicialmente a decisão administrativa que o condenara na coima única de € 2.000, pela prática de quatro contra-ordenações previstas e puníveis pelos artigos 4º, n.º 1, 47º e 50º, n.º 2, do Regulamento de Publicidade do Município do Montijo (fls. 53 e seguintes), tendo o juiz do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Montijo, por sentença de 9 de Junho de 2009 (a fls. 107 e seguintes), julgado inconstitucional o artigo 4º, n.º 1, daquele Regulamento, quando entendido que o mesmo é aplicável à afixação de publicidade em propriedade privada, e, em consequência, absolvido o arguido da prática das referidas contra-ordenações. É a seguinte a fundamentação da sentença:
Ao arguido foi aplicada a coima única € 2.000,00, pela prática de quatro contra-ordenações p. e p. pelos art°s 4º, nº 1, 47º e 50º nº 2 do Regulamento de Publicidade do Município do Montijo.
Dispõe o 42º, nº 1, do referido Regulamento que a afixação ou inscrição de mensagens publicitárias em bens ou espaços afectos ao domínio público, ou dele visíveis, fica sujeita a licenciamento prévio da câmara municipal.
Por outro lado, resulta das disposições conjugadas dos artºs 47º e 50º que constitui contra-ordenação, punível com coima, a afixação ou inscrição de mensagens publicitárias quanto não tenham sido precedidas de licenciamento.
E esse licenciamento, conforme se provou, estaria sujeito ao pagamento de taxas por parte da arguida à câmara municipal.
Chegados a este ponto, importa que o Tribunal se pronuncie sobre a constitucionalidade das licenças e taxas de publicidade cobradas pelo Município do Montijo, quando incidentes sobre publicidade colocada em propriedade privada (como acontece nos autos).
Conforme se explana no acórdão nº 558/98 (de 11.11.98) do Tribunal Constitucional, “É sabido que a doutrina portuguesa - que, neste particular tem tido acolhimento na jurisprudência que, a propósito, é seguida por este Tribunal - tem realçado que a diferença específica entre «imposto» e «taxa» se situa na existência ou não de um vinculo sinalagmático que é apontado à segunda. Assim, o encargo característico das «taxas» representa como que, para se utilizarem as palavras usadas no Acórdão n° 654/93 (ainda inédito) ‘o preço’ do serviço ou da prestação de um serviço ou actividade públicas ou de uma utilidade de que o tributado beneficiará (e sem aqui se olvidar que esse preço’ não tem, necessariamente, de corresponder à contrapartida financeira ou económica do serviço prestado)
Seguindo de perto tal acórdão (como outros que se lhe seguiram, alguns dos quais enumerados no Ac. STA de 19-02-2003, disponível em www.dgsi.pt), ainda que partindo do princípio que a actividade publicitária é uma actividade relativamente proibida, “mesmo nas hipóteses em que a actividade dos particulares sofre uma limitação, aqueloutra actividade estadual, consistente na retirada do obstáculo à mencionada limitação mediante o pagamento de um tributo, é vista pela doutrina como a imposição de uma «taxa» somente desde que tal retirada se traduza na dação de possibilidade de utilização de um bem público ou semi-público, acrescentando-se que, se este último condicionalismo não ocorrer, deparar-se-á uma situação subsumível à existência de um encargo ou de uma compensação tributo que se aproximará da figura do «imposto» (…), sem que com isto se queira significar que a imposição de contributo só é reconduzível à dicotomia de «taxas» ou «impostos»”.
Ora, simplificando, o que a jurisprudência constitucional vem sustentando é a ausência, em casos como o presente (afixação de publicidade em locais ou coisas privadas), de qualquer forma de utilização de um bem semi-público, sendo que não se vislumbra que «o ente tributador venha a ser constituído numa situação obrigacional de assumpção de maiores encargos pelo levantamento do obstáculo jurídico».
Logo, tais tributos devem ser tratados como «impostos» e, assim, sujeitos ao respectivo regime legal de criação.
Assim sendo, qualquer norma como a prevista no art. 4º, nº 1, do Regulamento de Publicidade do Município do Montijo, que prevê a obrigatoriedade de licenciamento mediante o pagamento de taxas para a colocação de publicidade em locais privados (e ainda que visíveis da via pública), deve considerar-se organicamente inconstitucional, por na sua criação ter sido violada a reserva legislativa da Assembleia da República (ou do Governo, em caso de autorização legislativa para o efeito).
E não se diga que tal juízo é irrelevante, porquanto o que está em causa é uma norma punitiva e não uma norma tributária.
Com efeito, assentando a norma punitiva num outro normativo viciado de inconstitucionalidade, é patente que a norma punitiva perde o respectivo substrato. Na verdade, o tipo da infracção prevista no art. 47º do citado Regulamento de Publicidade do Município do Montijo, completa-se com as normas que prevêem a necessidade de licenciamento, mediante o pagamento de taxas. Assim sendo, caso estas últimas não possam aplicar-se – como é o caso, pois que ao tribunal está vedada a aplicação de normas que considere inconstitucionais -, a previsão legal perde parte essencial do respectivo substrato, pois que a obrigação que supõe violada não existe.
Em suma, entende-se que o arguido, não estando obrigado a pagar a taxa imposta para licenciamento da colocação de publicidade em propriedade privada, por a mesma ser inconstitucional, jamais poderá ser punido por faltar a tal «obrigação».
Logo, terá de ser revogada a decisão administrativa.
Desta sentença - “na parte em que recusou aplicar a norma do artigo 4º, n.º 1, do Regulamento de Publicidade do Município do Montijo, quando entendido que a norma é aplicável à afixação de publicidade em propriedade privada, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, por entender que a norma desaplicada, ao estabelecer um imposto, que deverá estar sujeito ao respectivo regime legal de criação, viola a reserva legislativa da Assembleia da República (ou do Governo, em caso de autorização legislativa para o efeito), nos termos do disposto nos artigos 106º, n.º 2, e 168º, n.º 1, alínea i), ambos da Constituição da República Portuguesa” - interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 115), o qual foi admitido por despacho de fls. 117.
Nas alegações (fls. 123 e seguintes), concluiu assim o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional:
18º Por todo o exposto, e na linha do anteriormente decidido por este Tribunal Constitucional, cuja jurisprudência se julga de manter, dever-se-á, no âmbito do presente recurso:
1) julgar o art. 4º , nº 1, do Regulamento de Publicidade, da Câmara municipal do Montijo - que prevê a obrigatoriedade de licenciamento mediante o pagamento de taxas para a colocação de publicidade em locais privados -, como enfermando do vício de inconstitucionalidade orgânica e, nessa medida, conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido;
2) com efeito, o referido pagamento, na medida em que respeita à remoção de um obstáculo jurídico ao exercício de determinada actividade por parte do tributado – processo de licenciamento –, só poderia configurar-se como «taxa» se, com essa remoção, se viesse a possibilitar a utilização de um bem semi-público, o que não é o caso no âmbito do presente recurso, em que está em causa a afixação de mensagens publicitárias em terreno privado;
3) não decorre, por outro lado, dos factos em apreciação, que o ente tributador – Câmara municipal do Montijo - venha a ser constituído numa situação obrigacional de assumpção de maiores encargos pelo levantamento do obstáculo jurídico ao tributado, neste caso, o arguido:
4) assim, o pagamento de qualquer contribuição, a título do referido licenciamento, terá de haver-se como um verdadeiro “imposto”, e não como uma “taxa”;
5) imposto esse, por outro lado, que deveria ter sido criado, não por Regulamento da Câmara municipal do Montijo, mas, nos termos dos arts. 103º, nº 2, e 165º, nº 1, al. i) da Constituição, por diploma emanado da Assembleia da República (ou do Governo, se devidamente autorizado por aquela)”.
O recorrido não contra-alegou.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A norma que a sentença recorrida entendeu dever desaplicar é a do artigo 4º, n.º 1, do Regulamento de Publicidade do Município do Montijo, aprovado por sessão ordinária da Assembleia Municipal de 27 de Junho de 1996, na interpretação segundo a qual esse preceito é aplicável à afixação de publicidade em propriedade privada. É o seguinte o teor do preceito:
“A afixação ou inscrição de mensagens publicitárias em bens ou espaços afectos ao domínio público, ou deles visíveis, fica sujeita a licenciamento prévio da Câmara municipal, podendo a competência ser delegável ou subdelegada nos termos gerais”.
Segundo o tribunal recorrido, tal preceito, ao exigir uma licença sobre publicidade colocada em propriedade privada, materialmente cria um imposto, na medida em que a obtenção dessa licença envolve o pagamento de uma quantia que não é a contrapartida da prestação de um serviço ou actividade pública, ou da utilização de um bem público ou semi-público: como tal, esse preceito devia constar de lei ou de decreto-lei emitido no uso de autorização legislativa, sendo organicamente inconstitucional.
Uma questão semelhante àquela que agora cumpre dilucidar foi recentemente resolvida pelo Plenário do Tribunal Constitucional no acórdão nº 177/2010, de 5 de Maio de 2010 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), no qual se decidiu não julgar organicamente inconstitucionais as normas do artigo 2º, n.º 1, do Regulamento de Taxas e Licenças do Município de Guimarães e do artigo 31º da Tabela anexa, na medida em que prevêem a cobrança da taxa aí referida pela afixação de painéis publicitários em prédio pertencente a particular.
Pelos fundamentos do citado acórdão, plenamente transponíveis para o caso dos autos, é de manter, na situação vertente, o mesmo juízo de não inconstitucionalidade.
III. Decisão
Nestes termos, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 4º, n.º 1, do Regulamento de Publicidade do Município do Montijo, na interpretação segundo a qual esse preceito é aplicável à afixação de publicidade em propriedade privada;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da decisão recorrida, quanto ao juízo de inconstitucionalidade nela contido.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Maio de 2010
Carlos Fernandes Cadilha
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão