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Processo n.º 86/2012
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Ministério Público requereu, no Tribunal da Comarca do Alentejo Litoral – Odemira – Juízo de Competência Genérica, a aplicação ao arguido A., mediante processo sumaríssimo, da pena de 110 dias de multa, à taxa diária de 6 euros, perfazendo a quantia total de €660,00 (seiscentos e sessenta euros) pela prática de um crime previsto e punido pelo artigo 40.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.
O requerimento foi recebido, por despacho de 29 de março de 2010, do seguinte teor:
“Fls, 74 e ss. – Uma vez que não se considera ser de rejeitar o requerimento apresentado pelo Ministério Público:
- são defensores dos arguidos, os nomeados em fls. 87 e 88 dos presentes autos;
- proceda, em conformidade, com o disposto no art.º 396.º, do C.P.P., nomeadamente, cumpra o disposto no n.º 1, al. a), n.º 2 e n.º 3, com a menção do n.º 4, todos do mencionado normativo.”
Notificado, para os efeitos do artigo 396.º do Código de Processo Penal (CPP), o arguido deduziu oposição.
Por despacho de 9 de setembro de 2010, o juiz ordenou a autuação do processo sob a forma comum, dizendo, no que se refere à sua participação como juiz do julgamento, o seguinte:
«Fls. 110 - Atenta a oposição do arguido relativamente à sanção proposta pelo Ministério Público, que teve a concordância do ora signatário, autue como processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, equivalente à acusação, em todos os casos, o requerimento do Ministério Público formulado nos termos do artigo 394º do C.P.P.
Cumpra-se o disposto no art. 398, n.º 2, do C.P.P..
Atento o preceituado no art. 40º do Código de Processo Penal, declaro o meu impedimento para intervir no julgamento, nestes autos; seguindo o entendimento de Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem 2ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, maio de 2008, págs. 1006 e parte final do ponto 18 de págs. 122 e 123) segundo o qual “[o] juiz que concordou com a sanção proposta pelo Ministério Público, mas não aceite pelo arguido, comprometendo-se com o mérito da causa de forma e, por isso, não pode intervir no julgamento subsequente do mesmo arguido (dai o impedimento previsto expressamente pelo art. 34.º n.º 2, do CPP italiano). Assim, são inconstitucionais, por violarem o artigo 32.º, nº 1 e 5 da CRP, os artigos 40º, 43º, nº 2, e 398º do CPP, quando interpretados no sentido de que o juiz que concordou com a sanção proposta pelo MP, mas não aceite pelo arguido, pode intervir no julgamento subsequente do mesmo arguido. “.
No mesmo sentido vide, ainda, “Código de Processo Penal Comentários e notas práticas” Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, abril de 2009, ponto 4 de fls. 97.»
2. Em 15 de março de 2011, foi ordenada a abertura de conclusão ao juiz substituto (juíza auxiliar) tendo em vista o agendamento da audiência de julgamento. Por despacho desse juiz, foi recebido o requerimento do Ministério Público, equivalente a acusação, e designado o dia para a audiência de discussão e julgamento.
A defensora oficiosa solicitou o adiamento da diligência por motivo de maternidade. Deferido o adiamento, a juíza auxiliar ordenou a conclusão ao juiz titular para serem designadas novas datas. Tal veio a ocorrer por despacho de fls. 185.
A fls. 189, após “vista” ao Ministério Público para pronúncia sobre a questão, é proferido o seguinte despacho:
“Atento o despacho a declarar o meu impedimento, proferido no âmbito do processo n.º 9/08.6GAODM (antes de ter sido extraída certidão que iniciou os presentes autos), que agora reitero e dou por reproduzido para todos os efeitos legais, necessário se torna dar sem efeito o despacho de fls. 185, por mero lapso proferido.
Assim sendo, renovo o despacho de fls. 178, devendo a secção proceder em conformidade.”
É deste despacho que vem interposto, pelo Ministério Público, recurso de constitucionalidade em requerimento com o seguinte teor (fls. 192):
“O Magistrado do Ministério Público, nesta comarca, nos autos de processo supra identificados, por ter legitimidade, art.º 72.º, nºs 1 a) e 3 da Lei 28/ 82, de 15 de novembro com as alterações introduzidas pela Lei n.º 143/85, de 26 de novembro, Lei n.º 85 / 89, de 7 de setembro, pela Lei nº 88/95, de 1 de setembro e pela Lei nº 13-A/98, de 26 de fevereiro, ser tempestivo, art.º 75.º, e ao abrigo do art.º 70.º n.º 1 a) do citado diploma legal com as referidas alterações vem interpor recurso do douto despacho de fls. 189 que renova e reitera o de fls. 178, que por sua vez remete para fls. 167 e 168 dos autos à margem supra melhor identificados, referentes a uma certidão do processo n.º 9/08.6GAODM, que nos termos dos art. 32.º, n.ºs 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa, declarou a inconstitucionalidade dos art.ºs 40.º. 43.º, n.º 2 e 398.º, todos do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de que o juiz que concordou com a sanção proposta pelo Ministério Público, mas não aceite pelo arguido, pode intervir no julgamento subsequente do mesmo arguido.
Tal recurso é interposto para o Tribunal Constitucional, tem efeito suspensivo e sobe nos próprios autos (art.º. 78.º, n.º 4 do mencionado diploma legal. sendo as alegações produzidas nesse Tribunal (art.º 79.º).”
3. Já no Tribunal Constitucional, foi proferido despacho ordenando a produção de alegações. O Ministério Público alegou no sentido da não inconstitucionalidade, com os fundamentos que se seguem:
«(…)
IV. Apreciação do thema decidendum
21º
Vejamos, então, o que se poderá dizer sobre a questão de inconstitucionalidade suscitada nos presentes autos, começando por delimitar a argumentação que lhe está subjacente.
Refere, desde logo, o digno magistrado recorrido, como fundamento da sua posição, a argumentação expendida pelo Prof. Paulo Pinto de Albuquerque no seu “Comentário do Código de Processo Penal”.
Aí se refere, com efeito (cfr. obra citada, 1ª edição, págs. 122-123):
“18. Por fim, está impedido na lei nova de intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão o juiz que recusou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta. O impedimento tem uma justificação material, que reside no comprometimento revelado pelo juiz ao formular o seu juízo de inadequação da pena proposta pelo Ministério Público. O princípio acusatório exige, com efeito, semelhante impedimento. Mas esse mesmo princípio exige também que o juízo de adequação da pena afaste o juiz de participar no julgamento. Ora, o juiz que concordou com a sanção proposta pelo Ministério Público no processo sumaríssimo, mas que foi rejeitada pelo arguido (artigo 398º, nº 1), não está impedido de participar no julgamento do arguido. O mesmo vale para o juiz que não recusar a forma sumaríssima, mas fixa sanção diferente da proposta pelo MP, que é por este rejeitada (artigo 395º, nº 2). Num caso como no outro, o juiz está ainda mais comprometido do que aquele que fez um juízo negativo sobre a adequação da sanção proposta, pois até já se pronunciou em sentido positivo sobre uma concreta sanção como sendo proporcional à culpa do arguido. A conclusão impõe-se: por violarem o artigo 32º, nº 5, da CRP, são inconstitucionais os artigos 40º, al. e), 43º, nº 2, e 395º, nº 2, quando interpretados no sentido de que o juiz que não recusa a forma de processo sumaríssimo, mas «fixa» sanção diferente da proposta pelo MP, que é rejeitada pelo MP ou pelo arguido, pode posteriormente participar no julgamento do arguido, e são ainda inconstitucionais os artigos 40º, al. e), 43º, nº 2 e 398º do CPP, quando interpretados no sentido de que o juiz que concordou com a sanção proposta pelo MP, mas não aceite pelo arguido, pode intervir no julgamento subsequente do mesmo arguido (ver a anotação ao artigo 395 e 398).”
22º
O magistrado recorrido refere, igualmente, a obra “Código de Processo Penal – Comentários e notas práticas”, da autoria dos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, onde se pode ler (obra citada, págs. 97):
“Novidade ainda foi a consagração do impedimento do juiz que recusou o arquivamento em caso de dispensa de pena, e suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta. Sobre este último segmento – intervenção do juiz no processo sumaríssimo, defende Paulo Pinto de Albuquerque, que o legislador deveria ter ido mais longe, abrangendo o impedimento do juiz que concordou com a sanção proposta pelo MP, mas que foi recusada pelo arguido e do juiz que concorda com a forma sumaríssima do processo, mas já não com a sanção proposta pelo MP, fixando uma diferente, que este não aceita, dizendo (…)”.
E a obra cita, em seguida, o passo atrás transcrito do Prof. Paulo Pinto de Albuquerque (cfr. supra nº 21 das presentes alegações).
De forma que, no fundo, é ainda, e só, a argumentação do Prof. Paulo Pinto de Albuquerque que fundamenta o despacho recorrido, uma vez que a segunda obra se limita a repeti-la.
23º
Ora, que se poderá dizer a respeito de uma tal argumentação?
Desde logo, não se verifica verdadeiramente, na situação dos presentes autos, nenhuma das circunstâncias previstas no art. 40º do CPP, que determinam o impedimento, para um juiz, de participar “em julgamento, recurso ou pedido de revisão” de um processo.
Com efeito, o juiz recorrido não aplicou nenhuma medida de coação prevista nos arts. 200º a 202º do CPP, não presidiu a nenhum debate instrutório, não participou em julgamento anterior, não proferiu ou participou em decisão de recurso ou pedido de revisão anteriores, nem, finalmente, recusou o arquivamento em caso de dispensa de pena, suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.
Por outras palavras, o art. 40º do CPP não se afigura aplicável ao caso dos autos, não se vendo, por isso, razão, como se procurará demonstrar mais adiante, para que o juiz recorrido se haja declarado impedido de participar no julgamento do arguido (cfr. art. 41º, nº 1 do CPP).
24º
O mesmo se poderá, também, dizer da aplicação do art. 43º do mesmo Código.
Com efeito, prevêem-se, nesta disposição, casos de recusa de intervenção de um juiz no processo, sendo certo que, nos termos do nº 3 da mesma disposição, “a recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis”.
O juiz do processo, esse, nos termos do nº 4 da mesma disposição, “não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir …”.
Mas não foi isso que aconteceu nos presentes autos: nem a recusa do juiz foi suscitada por quem tinha legitimidade para o efeito, nem o magistrado judicial em causa requereu ao tribunal competente que o escusasse de intervir.
25º
Nem se crê, por outro lado, que ocorra uma situação em que a intervenção do juiz – ao contrário do que este alega – possa “ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade” (cfr. art. 43º, nº1 do CPP).
Para além de que a sua (praticamente inexistente) intervenção, “em fases anteriores do mesmo processo” (cfr. nº 2 da mesma disposição), podendo, embora, constituir teoricamente motivo de recusa, não parece justificar, nos presentes autos, tal conclusão.
Nessa medida, também se julga que o art. 43º, nº 2 do CPP não será aplicável ao caso dos autos.
26º
Finalmente, no que respeita ao art. 398º do CPP, isoladamente considerado, também se julga que o respetivo teor não justifica, enquanto tal, uma questão de inconstitucionalidade.
27º
Assim, a questão de inconstitucionalidade, agora submetida à apreciação deste Tribunal Constitucional – norma resultante dos arts. 40º, 43º, nº 2 e 398º do CPP, quando interpretada “no sentido de que o juiz que concordou com a sanção proposta pelo Ministério Público, mas não aceite pelo arguido, pode intervir em julgamento subsequente do mesmo arguido” -, é claramente forçada e artificial, não resultando da “soma” das partes que a integram.
28º
Que fez, afinal, o juiz do processo, nos presentes autos?
Recebeu (cfr. art. 394º do CPP) o requerimento do Ministério Público, teve conhecimento da identificação do arguido, bem como da descrição dos factos que lhe eram imputados, viu a menção das disposições legais consideradas violadas, foi informado da prova existente e das razões que, no caso, aconselhavam pena diferente de pena de prisão e, finalmente, teve conhecimento da sanção concretamente proposta.
Significa isto, então, que o juiz do processo analisou fundadamente a prova, conheceu o arguido, formulou um juízo sobre a sua possível culpabilidade, de forma a reter, na sua consciência, um pré-juizo sobre a sua possível condenação em audiência de julgamento?
Seguramente que não!
A sua análise permaneceu perfunctória, debruçou-se sobre os argumentos apresentados pelo Ministério Público, e, sobretudo, apreciou, em abstrato, a adequação da sanção proposta em relação ao crime imputado ao arguido, de forma a poder aceitá-la ou rejeitá-la (cfr. art. 395º, nº 1, alínea c) do CPP).
Nada mais!
29º
Como se poderá, então, concluir que fique em causa a sua imparcialidade em futuro julgamento, no caso de o arguido rejeitar a sanção proposta pelo Ministério Público, quando o mesmo se não verifica no caso de o arguido aceitar a mesma sanção?
Neste último caso, com efeito, o juiz procede à aplicação da sanção (cfr. art. 397º, nº 1 do CPP), valendo tal despacho como sentença condenatória e transitando imediatamente em julgado (cfr. nº 2 da mesma disposição).
Ora, a situação de (aparente) falta de imparcialidade não se verificará em ambas as situações, até mesmo mais na hipótese em que o arguido aceita a sanção, uma vez que não haverá, sequer, julgamento em que possa fazer valer as suas razões?
30º
Por outro lado, crê-se que a jurisprudência do Tribunal Constitucional, atrás citada, não parece sustentar a invocada inconstitucionalidade da norma que, agora, é submetida à sua apreciação.
Que resulta, com efeito, de tal jurisprudência?
A questão dos impedimentos do julgador, em processo penal, está estreitamente associada à necessidade de conferir ao arguido o direito a que a sua causa seja examinada por um tribunal imparcial, respeitando-se as garantias de defesa contempladas no art. 32º do CPP, designadamente a estrutura acusatória do processo penal.
Ora, o princípio do acusatório impõe a separação da função de investigação e acusação da função de julgamento, como garantia de imparcialidade do julgador.
Assim, as garantias de imparcialidade e objetividade, no decurso do julgamento, necessárias para a administração da justiça e exigíveis pelas garantias de defesa dos arguidos constitucionalmente consagradas, continuam a ser o elemento determinante de aferição da constitucionalidade das normas submetidas à apreciação do Tribunal Constitucional.
31º
A imparcialidade dos tribunais é uma exigência não apenas contida no artigo 32º da Constituição, mas uma decorrência do Estado de direito democrático (artigo 2º), na medida em que se inscreve na garantia universal de defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, através de um órgão de soberania com competência para administrar a justiça (artigo 202º n.º 1 Constituição).
Ora, neste dever genérico de imparcialidade do tribunal inclui-se, compreensivelmente, uma exigência de não suspeição subjetiva do juiz; a atividade do juiz não pode apresentar-se contaminada por circunstâncias geradoras de desconfiança quanto à sua imparcialidade.
32º
Impõe-se, aqui, todavia, uma dupla ponderação: por um lado, a exigência de um juízo imparcial numa perspectiva subjetiva, mas, por outro, também a ponderação da aparência de imparcialidade do julgador – a imparcialidade “aos olhos do público.
Por esse motivo, deve ser recusado o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos.
Como referido pelo Tribunal Constitucional:
“Todavia, do citado artigo 32º retira-se, para além disto, uma exigência de imparcialidade objetiva do tribunal, decorrente da estrutura acusatória do processo penal, circunstância que impede que o juiz do julgamento esteja envolvido na atividade instrutória, quer carreando para os autos elementos de prova suscetíveis de serem utilizados pela acusação, quer envolvendo-se em atos que possam significar dirigir a investigação. Esta exigência de imparcialidade objetiva do juiz, justifica-se do ponto de vista das garantias da defesa, é certo, mas igualmente pela necessidade de proporcionar ao juiz as condições de isenção requeridas pelo exercício das suas funções. Assim se explica que seja confiado ao próprio juiz o dever de se declarar impedido, a par de se permitir aos restantes sujeitos processuais a iniciativa de suscitar no processo o reconhecimento do impedimento do juiz (artigo 41º do Código de Processo Penal).”
33º
Ora, a intervenção do juiz é, muitas vezes – como no caso dos autos – exigida pela preocupação de controlar a legalidade de uma diligência ou ato processual e, bem assim, garantir os direitos fundamentais dos cidadãos (no caso em apreciação, dos arguidos).
Por isso, a sua intervenção, nestes casos, tem uma dimensão exclusiva, ou fundamentalmente, garantística – e não de valoração, por exemplo, de provas.
Trata-se, pois, as mais das vezes, de formular um juízo de natureza perfunctória, feito a partir de determinados elementos – no caso dos autos, o requerimento formulado pelo Ministério Público -, num momento em que o objeto do processo, designadamente ao nível dos factos e eventual imputação subjetiva – pode não estar, ainda, inteiramente definido.
Nessa medida, o juiz, em tais circunstâncias, terá muita dificuldade em poder formular pré-juizos relativamente à matéria dos factos, pelo que não se vê como poderá ficar abalada a sua imparcialidade objetiva.
34º
Por exemplo em relação à decisão de juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido – situação bem mais gravosa, para os direitos do arguido, que o caso dos autos -, o Tribunal Constitucional admitiu “que se não verifique infração ao princípio do acusatório “desde logo porque a decisão do juiz sobre a prisão preventiva (...) assenta (...) num juízo indiciário e, por natureza, precário, periodicamente revisível”.
Bem como considerou, o mesmo Tribunal:
“Não representando a intervenção pontual do juiz, na fase do inquérito, de decretamento ou manutenção da prisão preventiva – intervenção essa imposta por preocupações de garantia dos direitos do arguido –, a assunção da direção da instrução ou da autoria da acusação, continua a existir distinção entre a entidade que faz a instrução e deduz a acusação e aquela que procede ao julgamento. Além disso, sendo diferentes os universos e as exigências das provas que possibilitam a imposição da prisão preventiva e que fundamentam a condenação, o juiz que, na fase do inquérito, decide acerca da prisão preventiva do arguido não deixa de ser um juiz independente e imparcial para julgar o feito penal.”
Esta orientação situa-se na linha do que, adiante, o mesmo acórdão afirma – “(...) a solução de estender o impedimento do artigo 40.º do Código de Processo Penal a todos os atos isolados suscetíveis de serem praticados pelo juiz de instrução na fase preliminar do processo penal apresentar-se-ia, na generalidade dos casos, totalmente inadequada e desnecessária, em virtude de muitos deles não colocarem minimamente em causa as garantias de independência e de imparcialidade do tribunal, ínsitos no princípio da acusação, consagrado no artigo 32.º, n.º 5, da Lei Fundamental”.
35º
Este Tribunal Constitucional não deixou, por isso, de entender decisivo, para a apreciação da questão, “o particular enfoque do tipo e frequência da intervenção que o julgador teve, na fase do inquérito, com especial relevância do momento em que, dentro dessa fase, ela ocorreu”.
Com efeito, “é da conjugação destes fatores que há de resultar o juízo sobre a isenção, imparcialidade e objetividade do juiz enquanto julgador”.
Sublinha-se, assim, em relação a um modelo possível de decisão que haja decretado a prisão preventiva, “a relevância da circunstância, entendida como decisiva na sua própria lógica argumentativa, de a intervenção do juiz na fase de inquérito não ser uma intervenção esporádica ou isolada, mas ser, pelo contrário, uma intervenção reiterada ou repetida” e “de o juiz não se ter limitado a, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido, decretar a respetiva prisão preventiva”, mas “ter, em data posterior, já bem próximo da data da acusação, confirmado essa mesma prisão preventiva”.
O que, francamente, não é o caso dos autos.
36º
O Tribunal Constitucional tem, pois, mantido o entendimento de que a prática de atos isolados, durante o inquérito, não constitui, em princípio, causa de quebra objetiva da imparcialidade do juiz, determinante do seu impedimento no julgamento.
Aliás, mesmo em determinadas circunstâncias, designadamente quando não está em causa a ocorrência de determinado tipo de vícios intrínsecos à própria sentença (v.g. os contemplados no art. 410º, nº 2 do CPP), se tem entendido, em caso de repetição de julgamentos, “não ser de considerar como desrespeitadora do princípio da imparcialidade do julgador a possibilidade de intervenção dos mesmos juízes (ou de parte deles) que participaram no primeiro julgamento.'
Como referido, a este propósito, pelo Tribunal Constitucional:
“Em todos estes arestos, como no presente caso, está em causa o impedimento de o juiz intervir em novo julgamento quando participou no anterior julgamento que, tendo conhecido do mérito da causa, veio a ser considerado inválido por razões distintas da apreciação desse mérito.”
Ou, noutra formulação:
Os vícios tipificados no artigo 410º, nº2, do Código de Processo Penal, reportam-se a vícios intrínsecos quanto ao conteúdo da decisão tomada sobre a matéria de facto – insuficiência ou contradição dos factos e razões que suportam a própria decisão –, ou de erros ostensivos ou patentes na valoração da prova, que pela sua natureza e gravidade constituem verdadeira nulidade de sentença, justificando o reenvio para julgamento noutro tribunal.
Já assim não é quando a anulação do julgamento decorre, não por vícios intrínsecos e lógicos do conteúdo da própria decisão, mas quando a mesma é ditada reflexamente por via da anulação dos atos posteriores em consequência do cometimento de uma nulidade decorrente da tramitação da causa.”
37º
Poder-se-á, pois, dizer, em conclusão, como o Tribunal Constitucional:
«É incontestável que a imparcialidade dos juízes é um princípio constitucional, quer se conceba como uma dimensão da independência dos tribunais (artigo 203.ºda CRP), quer como elemento da garantia do “processo equitativo” (n.º 4 do artigo 20.º da CRP). Importa que o juiz que julga o faça com isenção e imparcialidade e, bem assim, que o seu julgamento, ou o julgamento para que contribui, surja aos olhos do público como um julgamento objetivo e imparcial. E também é certo que a intervenção decisória sucessiva do mesmo juiz integra o universo das hipóteses abstratamente suscetíveis de lesar esse princípio e, por isso, de configurar um impedimento objetivo.”
Ora, não é seguramente este, como se procurou demonstrar ao longo das presentes alegações, o caso dos autos em apreciação.
V. Conclusões
38º
Em conclusão, atendendo a todo o exposto nas presentes alegações, crê-se, agora, de concluir:
a) não ser inconstitucional, por violação do art. 32º, nºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa, a norma resultante dos arts. 40º, 43º, nº 2 e 398º do Código de Processo Penal, quando interpretada “no sentido de que o juiz que concordou com a sanção proposta pelo MP, mas não aceite pelo arguido, pode intervir no julgamento subsequente do mesmo arguido”;
b) deverá, nessa medida, este Tribunal Constitucional conceder provimento ao recurso, revogando-se, em conformidade o despacho recorrido.»
O arguido não contra-alegou.
II- Fundamentos
4. Importa começar por apreciar a verificação dos pressupostos de que depende o conhecimento do mérito do recurso.
Trata-se de processo de fiscalização concreta, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), em princípio, obrigatório para Ministério Público, e interposto em tempo, considerando o seu objeto em sentido processual (o despacho de que se recorre).
Todavia, as vicissitudes concretas do processo justificam dúvidas quanto à utilidade do seu conhecimento. Efetivamente, também no recurso de decisões positivas de inconstitucionalidade a decisão do Tribunal é instrumental da resolução de uma concreta questão que no processo de que emergem se coloque. Se a decisão a proferir quanto à questão de constitucionalidade, seja qual for o seu sentido, deixar incólume a resposta à questão em que o incidente de constitucionalidade se enxerta, também neste tipo de processos deve o Tribunal abster-se de conhecer do recurso por falta de utilidade.
No caso, as dúvidas quanto à utilidade do conhecimento do recurso suscitam-se porque o despacho de fls. 178 e seguintes, em que é patente o juízo de inconstitucionalidade, não foi objeto de recurso. Sucederam-se despachos, de diferentes magistrados judiciais, inclusivamente do juiz que se declarou impedido, só vindo a ser interposto recurso quando proferido novo despacho a reiterar o despacho inicial. Neste contexto, poderia sustentar-se que, não tendo o primeiro despacho sido impugnado, a partir daí o que passa a obstar à intervenção do juiz impedido é o caso julgado formal sobre a declaração de impedimento.
Parece, no entanto, perante a renovação do juízo de inconstitucionalidade operada pelo despacho de fls. 189 em vez da simples invocação do caso julgado formal com a sua força preclusiva, que não pode afirmar-se, com absoluta segurança, ser a decisão que o Tribunal agora venha a tomar destituída de utilidade para a questão do impedimento do juiz titular do processo. Ora, não podendo interferir na condução do processo pelo tribunal da causa, estando presentes os demais pressupostos, o Tribunal apenas deve abster-se de conhecer do recurso de constitucionalidade por falta de utilidade se tiver dados para concluir que a ausência de repercussão da sua decisão na solução do caso (da concreta questão a que respeita) é certa, no plano das valorações do tribunal a quo reveladas pelo processo
Conhecer-se-á, assim, do objeto do recurso.
5. O tribunal a quo recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, dos artigos 40.º, 43.º, n.º 2 e 398.º, todos do CPP, quando interpretados no sentido de permitir que o juiz que concordou com a sanção proposta pelo Ministério Público em processo sumaríssimo, a qual não foi aceite pelo arguido, não está impedido de intervir no julgamento subsequente desse mesmo arguido.
São de diversa ordem as situações ou circunstâncias suscetíveis de afetar a imparcialidade do juiz em processo penal, podendo gerar impedimento (artigos 39.º e 40.º do CPP), ou suspeição (artigo 43.º do CPP) do juiz relativamente ao qual se verifiquem. O juiz deve declarar o seu impedimento (artigo 41.º do CPP), mas não pode declarar-se voluntariamente suspeito (artigo 43.º do CPP), estando a recusa ou a escusa sujeitas a incidente próprio, da competência do tribunal imediatamente superior (artigo 45.º do CPP; exceto, por razões óbvias, no Supremo Tribunal de Justiça, em que a competência cabe à Seção Criminal).
Um dos tipos de impedimentos – que são taxativamente fixados, mediante enunciados descritivos – é o que resulta de intervenções, em momento anterior do processo, de juiz que constitua ou integre a formação de julgamento (artigo 40.º do CPP). É deste género a questão que no presente recurso interessa considerar.
Os traços essenciais da evolução da jurisprudência do Tribunal a propósito da garantia de imparcialidade do tribunal em processo penal perante normas (ou dimensões normativas) respeitantes a intervenções deste tipo podem ver-se no Acórdão n.º 297/2003, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, cuja reprodução se afigura desnecessária. Dessa jurisprudência se retira, como critério geral, que não deve considerar-se afetada a imparcialidade do juiz, o princípio do acusatório, ou a exigência de que o processo criminal assegure todas as garantias de defesa – parâmetros constitucionais em função dos quais a imparcialidade do juiz em processo penal tem sido perspetivada – por virtude de toda e qualquer intervenção processual anterior ao julgamento, mas somente por aquela que consista na prática de atos que, pela sua frequência, intensidade ou relevância, sejam idóneos a considerar o juiz comprometido com “pré-juízos” sobre as questões que tenha de decidir, designadamente, sobre a matéria de facto ou sobre a culpabilidade do arguido (cfr., por ultimo e fazendo apelo ao mesmo critério, Acórdão n.º 129/2007).
Não parece ser substancialmente diversa a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), desenvolvida por referência ao artigo 6.º, n.º 1 da Convenção, segundo o qual “qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada (…) por um tribunal independente e imparcial (…).”. Esta jurisprudência, que acentua a vertente objetiva da imparcialidade através da chamada “teoria das aparências” (justice must not only be done; it must also seen to be done), nos termos da qual os tribunais devem não só ser independentes e imparciais mas também aparentar aos olhos da comunidade essa mesma independência e imparcialidade, também não proscreve como contrário ao direito a um “tribunal imparcial” toda e qualquer intervenção do juiz em fase anterior do processo. Por exemplo, no acórdão Hauschildt v. Denmark, o TEDH foi confrontado com o caso de um cidadão dinamarquês que, tendo sido sujeito a processo-crime, invocou a violação do artigo 6.º, n.º 1 da Convenção pelo facto de, no que ora releva, o juiz de julgamento ter tido diversas intervenções na fase de investigação, designadamente aplicando e confirmando a manutenção de prisão preventiva. O Tribunal começou por dizer que a exigência de imparcialidade não impede, em abstrato, que um juiz com intervenções judiciais em momentos anteriores possa depois vir a integrar o coletivo do julgamento. No entanto, em concreto, considerou que a pretensão do recorrente era válida pelo facto de várias das decisões de manutenção da prisão preventiva terem sido adotadas com base em preceito legal que permite a aplicação de tal medida de coação quando existe uma “suspeita particularmente confirmada” da prática do ilícito. O TEDH ponderou que neste tipo de situações a convicção do juiz quanto à culpa do arguido deve apresentar um “alto grau de clareza”, pelo que a intervenção desse mesmo juiz na formação de julgamento não passa o teste objetivo imposto pelo princípio da imparcialidade nos termos do qual o julgador deve não só, efetivamente, demonstrar ser isento como também, perante a comunidade, manter uma tal aparência de isenção e imparcialidade.
6. Importa, pois, analisar o tipo de intervenção que motivou o juiz a quo a declarar-se impedido, em ordem a verificar se ela se reveste de um compromisso com o sentido da decisão da causa, ou de alguma das questões em que essa decisão seja decomponível, tal que um auditório de pessoas prudentes possa duvidar de que o juiz considerado (se intervier no julgamento) seja objetivamente apto para examinar, sem a influência de pré-juizos decorrentes dessa anterior intervenção, as questões de direito e de facto que nesse momento deva decidir.
O processo sumaríssimo foi introduzido em Portugal com o Código de Processo Penal de 1987, sendo o legislador guiado pela busca de soluções baseadas no consenso para agilizar o tratamento da pequena criminalidade. Atualmente, está previsto nos artigos 392.º a 398.º do CPP.
O processo sumaríssimo tem lugar a requerimento do Ministério Público quando entenda que, em concreto, deve ser aplicada pena ou medida de segurança não privativas da liberdade (artigo 392.º, n.º 1 do CPP). Caso o procedimento dependa de acusação particular, o requerimento necessita da concordância do assistente. Este requerimento deve, nos termos do artigo 394.º, n.º 1, conter as “indicações tendentes à identificação do arguido, a descrição dos factos imputados e a menção das disposições legais violadas, a prova existente e o enunciado sumário das razões pelas quais entende que ao caso não deve concretamente ser aplicada pena de prisão.” O requerimento deve concluir com a indicação das sanções concretamente propostas e, quando aplicável, da quantia exata a atribuir a título de reparação (cfr. artigo 394.º, n.º 2).
O requerimento deve ser rejeitado pelo juiz nos casos previstos no artigo 395.º do CPP, que dispõe:
“Artigo 395.º
Rejeição do Requerimento
1 – O juiz rejeita o requerimento e reenvia o processo para outra forma que lhe caiba:
a) Quando for legalmente inadmissível o procedimento;
b) Quando o requerimento for manifestamente infundado, nos termos do n.º 3 do artigo 311.º;
c) Quando entender que a sanção proposta é manifestamente insuscetível de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 – No caso previsto na alínea c) do número anterior, o juiz pode, em alternativa ao reenvio do processo para outra forma, fixar sanção diferente, na sua espécie ou medida, da proposta pelo Ministério Público, com a concordância deste e do arguido.
3 – (…).”
Caso o requerimento não seja rejeitado e o arguido não se oponha ao mesmo, o juiz procede à aplicação da sanção, por despacho (artigo 397.º, n.º 1 do CPP). Em caso de oposição por parte do arguido, o juiz ordena o reenvio do processo para a forma que lhe caiba. Em caso de reenvio, qualquer que seja o respetivo fundamento, o requerimento do Ministério Público formulado nos termos do artigo 394.º equivale à acusação.
Assim, o juiz competente para o julgamento, num processo em que o Ministério Público tenha formulado requerimento para julgamento em processo sumaríssimo mas que deva prosseguir sob a forma comum, pode encontrar-se numa das seguintes situações, em consequência do exercício da competência que lhe é conferida pelo artigo 395º do Código de Processo Penal: (i) pode ter-se limitado a concordar com o requerimento do Ministério Público (a que o arguido vem a opor-se); (ii) pode ter aceite a tramitação do caso em processo sumaríssimo, mas ter divergido da sanção proposta (não tendo colhido a nova proposta aceitação dos sujeitos processuais); (iii) pode ter rejeitado o julgamento por essa forma de processo por considerar que não se verificam os respetivos pressupostos.
São situações que, emergindo do exercício do mesmo poder processual, muito diferem entre si quanto ao que significam de envolvimento do juiz na concreta conformação da lide, podendo justificar juízos distintos no que respeita à potencialidade de afetação das garantias de imparcialidade.
7. A Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, introduziu modificações ao artigo 40.º do CPP, alargando o elenco de situações geradoras de impedimento. Designadamente, passou a conter a previsão expressa da impossibilidade de intervenção em julgamento de juiz que tenha recusado a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta [cfr. alínea e) do artigo 40.º do CPP]. Como o mesmo não sucede no caso em que o reenvio para a forma de processo competente ocorra com base na discordância do arguido, surgiram opiniões na doutrina no sentido da inconstitucionalidade dessa “dimensão” normativa (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, que se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade da norma, ao não prever um tal impedimento, por violação do artigo 32.º, n.º 5 da Constituição em Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, Universidade Católica Editora, pp. 123). O mesmo entendimento é sustentado no Código de Processo Penal – Comentários e notas práticas, publicada pelos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto (Coimbra Editora, 2009, pág. 97).
Note-se, todavia, que há aqui que distinguir duas hipóteses: o despacho judicial que se limita a receber o requerimento para processo sumaríssimo e o despacho em que o juiz aceita que o processo prossiga como sumaríssimo, mas com sanção diversa daquela que é proposta pelo Ministério Público (n.º 2 do artigo 395.º do CPP). O caso presente integra-se na primeira hipótese – recebimento puro e simples do requerimento – pelo que é esta a dimensão normativa presente nas considerações posteriores.
8. Será, então, o despacho a que se refere o n.º 1 do artigo 395.º do CPP, quando o juiz se limite a receber o requerimento de aplicação da sanção em processo sumaríssimo (a primeira das hipóteses enunciadas no antecedente n.º 6), uma intervenção processual que objetivamente justifique que, por virtude dessa intervenção e só por causa dela, a comunidade passe a perceber a sua participação no julgamento como comprometida por esse pré-juízo de tal modo que não tenha confiança em que o arguido venha a beneficiar de um julgamento justo e imparcial?
Repare-se, encurtando caminho, que a suspeita só pode emergir do que nesse despacho consiste na verificação prevista na alínea c) do n.º 1, do artigo 395.º. Podendo o juiz rejeitar o requerimento quando entenda que a sanção proposta é manifestamente insuscetível de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, a não rejeição da forma sumaríssima significa que, pelo menos de modo implícito, o juiz fez a verificação correspondente e não chegou a tal conclusão. As demais verificações pressupostas nesse despacho, relativas à aplicabilidade abstrata do processo sumaríssimo e ao caracter manifestamente infundado da acusação – a saber: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos;
c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) se os factos não constituírem crime –, consistem no exercício do poder de saneamento e apreciação de questões preliminares de índole essencialmente formal que nada tem de específico do processo sumaríssimo, correspondendo às tarefas de saneamento processual que ao presidente do tribunal incumbem quando a acusação não seja precedida de instrução (artigo 311.º do CPP). Relativamente a estas verificações necessárias pelo juiz do julgamento não se vislumbra que se suscitem dúvidas de constitucionalidade a este título. De outro modo, em qualquer processo, o juiz que tivesse proferido o despacho de saneamento liminar estaria sempre impedido para o julgamento, o que seria excessivo porque essa verificação não compromete o juiz, aos olhos da comunidade, com qualquer sentido do julgamento.
Assim, a questão fica problematicamente reduzida a saber se a circunstância de o juiz não ter considerado no despacho inicial a sanção manifestamente inadequada é de molde a gerar, aos olhos do homem médio suposto pela ordem jurídica, medianamente conhecedor da estrutura do processo penal e da organização judiciária, a desconfiança de que a decisão que, a final, esse juiz venha a tomar está preordenada ou condicionada por essa liminar decisão.
Efetivamente, ao proferir esse despacho liminar o juiz limita-se a tomar conhecimento da identificação do arguido, da descrição dos factos que lhe são imputados, da respectiva qualificação jurídica, da prova existente e das razões que, segundo o titular da ação penal, justificam pena não privativa da liberdade e qual é a sanção concretamente proposta. Não faz qualquer apreciação da prova recolhida no inquérito ou um juízo autónomo sobre a culpabilidade do arguido. O juízo que lhe compete fazer sobre a adequação da sanção – geralmente implícito, como no caso sucedeu, mediante um despacho tabelar que se limita a considerar que “não é de rejeitar” o requerimento – permanece no plano da mera evidência face à descrição efetuada pelo Ministério Público. Esse juízo não significa que considere positivamente adequada aquela sanção, aderindo a todos e cada um dos argumentos aduzidos pelo titular da acção penal. Tudo o que o juiz decide – salvo se propuser outra sanção, mas isso corresponde a uma dimensão normativa que está fora do objeto do presente recurso – é que, perante essa descrição dos factos imputados ao arguido, a sanção proposta não se apresenta como manifestamente insuscetível de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Limita-se a não considerar aquela sanção como devendo ser excluída por assentar em erro manifesto ou critério ostensivamente inadmissível quanto aos fins das penas. É um juízo que repousa nos factos descritos no requerimento, sem averiguar a sua realidade, e numa análise jurídica de primeira aparência. Significa, apenas, que a aplicação daquela sanção não constitui um erro palmar (manifesto) face aos fins das penas. O juiz não se compromete pessoalmente com essa sanção, não fez um juízo definitivo de adequação dela à ilicitude, à culpa e à personalidade do arguido. Subsiste uma diferença flagrante, quanto ao envolvimento do sujeito judicante e à liberdade interior para rever o juízo, entre julgar uma sanção adequada e não julgá-la manifestamente inadequada. Este juiz não diz qual é a pena justa, em termos de permanecer sobre ele a suspeita de incapacidade para encontrar a sanção que, face aos factos que venham a provar-se em julgamento, aos critérios legais e à dialética desenvolvida em audiência, satisfaça os fins das penas. Diz, somente, que as exigências comunitárias em matéria de aplicação das penas não sofrem postergação manifesta se, no trade off entre o sumo rigor da lei e a eficácia que a aceitação de processos deste tipo implica, a sanção proposta pelo Ministério Público vier a ser aquela que o arguido efetivamente suporta.
Em suma, as verificações, implicita ou explicitamente efetuadas no despacho judicial previsto no n.º 1 do artigo 395.º do CPP que se limite a não rejeitar o requerimento do Ministério Público para aplicação da pena em processo sumaríssimo (a que o arguido vem a opor-se), não convertem o juiz em órgão de acusação, nem o conduzem a pré-juízos sobre a prova dos factos, a culpabilidade do arguido, ou a adequação da pena que objetivamente justifiquem desconfiança na sua imparcialidade para intervir como juiz de julgamento.
Aliás, se em peculiares circunstâncias, pelas questões que decidiu ou pelo modo como as decidiu nesse despacho, ocorrerem razões que possam razoavelmente apresentar, aos olhos do público, o juiz como já comprometido com o sentido da decisão de questões que, a final tem de apreciar, o sistema oferece as vias de recusa ou pedido de escusa do juiz. O que de modo algum se justifica é que, com caracter geral e taxativo, o juiz que profere o genérico despacho a que se refere o n.º 1 do artigo 395.º do CPP tenha de ficar ipso facto impedido de proceder ou participar no julgamento.
Pelo que se conclui pela não inconstitucionalidade da norma resultante dos artigos 40.º, 43.º, n.º 2 e 398.º, todas do CPP, quando interpretadas no sentido de que o juiz que tenha concordado com a sanção proposta pelo Ministério Público em processo sumaríssimo não está impedido de intervir no julgamento subsequente do arguido que tenha deduzido oposição.
III. Decisão
Face ao exposto, concedendo provimento ao recurso, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional os artigos 40.º, 43.º, n.º 2 e 398.º, todas do CPP, quando interpretados no sentido de que o juiz que concordou com a sanção proposta pelo Ministério Público em processo sumaríssimo, a qual não foi aceite pelo arguido, não está impedido de intervir no julgamento subsequente desse mesmo arguido;
b) Ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o agora decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 26 de setembro de 2012.- Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Ana Guerra Martins – Rui Manuel Moura Ramos.