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Processo n.º 323/12
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Comarca de Guimarães, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso obrigatório de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele tribunal, na parte em que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma do artigo 39.º, n.º 7, alínea d), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março), na parte em que «impõe ao trabalhador beneficiário de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos do processo o depósito do montante que o juiz especificar segundo o que razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das referidas custas e dívidas».
2. Notificadas as partes para alegar, apenas o recorrente apresentou alegações, onde conclui o seguinte:
«1. Pretendendo-se com o pedido de declaração de insolvência ver satisfeitos créditos laborais da responsabilidade da requerida, a norma do artigo 39.º, n.º 7, alínea d), do CIRE, na parte em que impõe ao trabalhador beneficiário de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, o depósito do montante que o juiz especificar segundo o que razoavelmente entenda necessário para pagamento das referidas custas e dívidas, é inconstitucional, por violação dos artigos 20.º, n.º 1, e 53.º da Constituição.
2. Termos em que deve negar-se provimento ao recurso.»
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
3. O artigo 39.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, na redação à data, que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 185/2009, de 12 de agosto), reza assim:
«Artigo 39.º
Insuficiência da massa insolvente
1 - Concluindo o juiz que o património do devedor não é presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente e não estando essa satisfação por outra forma garantida, faz menção desse facto na sentença de declaração da insolvência e dá nela cumprimento apenas ao preceituado nas alíneas a) a d) e h) do artigo 36.º, declarando aberto o incidente de qualificação com caráter limitado.
2 - No caso referido no número anterior:
a) Qualquer interessado pode pedir, no prazo de cinco dias, que a sentença seja complementada com as restantes menções do artigo 36.º;
b) Aplica-se à citação, notificação, publicidade e registo da sentença o disposto nos artigos anteriores, com as modificações exigidas, devendo em todas as comunicações fazer-se adicionalmente referência à possibilidade conferida pela alínea anterior.
3 - O requerente do complemento da sentença deposita à ordem do tribunal o montante que o juiz especificar segundo o que razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das referidas custas e dívidas, ou cauciona esse pagamento mediante garantia bancária, sendo o depósito movimentado ou a caução acionada apenas depois de comprovada a efetiva insuficiência da massa, e na medida dessa insuficiência.
4 - Requerido o complemento da sentença nos termos dos n.ºs 2 e 3, deve o juiz dar cumprimento integral ao artigo 36.º, observando-se em seguida o disposto nos artigos 37.º e 38.º, e prosseguindo com caráter pleno o incidente de qualificação da insolvência.
5 - Quem requerer o complemento da sentença pode exigir o reembolso das quantias despendidas às pessoas que, em violação dos seus deveres como administradores, se hajam abstido de requerer a declaração de insolvência do devedor, ou o tenham feito com demora.
6 - O direito estabelecido no número anterior prescreve ao fim de cinco anos.
7 - Não sendo requerido o complemento da sentença:
a) O devedor não fica privado dos poderes de administração e disposição do seu património, nem se produzem quaisquer dos efeitos que normalmente correspondem à declaração de insolvência, ao abrigo das normas deste Código;
b) O processo de insolvência é declarado findo logo que a sentença transite em julgado, sem prejuízo da tramitação até final do incidente limitado de qualificação da insolvência;
c) O administrador da insolvência limita a sua atividade à elaboração do parecer a que se refere o n.º 2 do artigo 188.º;
d) Após o respetivo trânsito em julgado, qualquer legitimado pode instaurar a todo o tempo novo processo de insolvência, mas o prosseguimento dos autos depende de que seja depositado à ordem do tribunal o montante que o juiz razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das custas e das dívidas previsíveis da massa insolvente, aplicando-se o disposto nos n.ºs 4 e 5.
8 - O disposto neste artigo não é aplicável quando o devedor, sendo uma pessoa singular, tenha requerido, anteriormente à sentença de declaração de insolvência, a exoneração do passivo restante.
9 - Para os efeitos previstos no n.º 1, presume-se a insuficiência da massa quando o património do devedor seja inferior a € 5000.»
Nos presentes autos está em causa a alínea d) do n.º 7 deste artigo 39.º, segundo a qual «[A]pós o respetivo trânsito em julgado, qualquer legitimado pode instaurar a todo o tempo novo processo de insolvência, mas o prosseguimento dos autos depende de que seja depositado à ordem do tribunal o montante que o juiz razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das custas e das dívidas previsíveis da massa insolvente, aplicando-se o disposto nos n.ºs 4 e 5».
Remetendo para jurisprudência deste Tribunal Constitucional, a sentença recorrida recusou aplicar esta norma (na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 282/2007, de 7 de agosto, e supervenientemente mantida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de abril), por considerar que a mesma viola o artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
De facto, a constitucionalidade desta norma já foi objeto de apreciação pelo Tribunal Constitucional.
Pelo Acórdão n.º 602/2006 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), proferido pela 3.ª Secção deste Tribunal Constitucional, foi decidido julgar inconstitucional a norma da alínea d) do n.º 7 do artigo 39.º do CIRE, quando interpretada no sentido de que dela decorre, nos casos em que foi proferida sentença nos termos do n.º 1 daquele artigo, a imposição, ao trabalhador que não desfrute de condições económicas suficientes e que pretenda instaurar novo processo de insolvência para efeitos de nele ser reconhecida a reclamação do seu crédito por salários não pagos pela entidade insolvente, com vista ao disposto na alínea a) do artigo 324.º da Lei n.º 35/2004, de 29 de julho, do depósito de um montante que o juiz razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das dívidas previsíveis da massa insolvente, não contemplando o benefício de apoio judiciário a possibilidade de isenção desse depósito.
Mais recentemente, pronunciando-se sobre norma próxima e com fundamentos idênticos, o Acórdão n.º 83/2010, da 1.ª Secção, decidiu julgar inconstitucional a norma do artigo 39.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, quando interpretada no sentido de que o requerente do complemento da sentença, quando careça de meios económicos e, designadamente, beneficiar do apoio judiciário na modalidade de isenção da taxa de justiça e demais encargos com o processo, se não depositar a quantia que o juiz especificar nem prestar a garantia bancária alternativa não pode requerer aquele complemento de sentença.
As razões do juízo de inconstitucionalidade formulado no citado Acórdão n.º 602/2006 (também seguidos na Decisão Sumária n.º 496/2007) são, em resumo, as seguintes:
«I - Nos casos em que o processo de insolvência não comporta a fase de reclamação de créditos, tendo ou não tendo ainda transitado a sentença 'simplificada' declarativa da insolvência, sempre terá o trabalhador - que queira ver reconhecida a reclamação do seu crédito por salários não pagos pela entidade insolvente, com vista ao que se consagra na alínea a) do artigo 324.º da Lei n.º 35/2004 - de requerer o 'complemento' dessa sentença ou a instauração de novo processo de insolvência; e, numa ou noutra dessas situações, sempre sobre ele impenderá o 'pressuposto' de depositar ou garantir um quantitativo julgado suficiente para assegurar o pagamento das custas e demais dívidas previsíveis da massa insolvente, em face da interpretação normativa que foi conferida à alínea d) do n.º 7 do artigo 39.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004.
II - Estando, constitucionalmente, consagrado o princípio de que a todos é assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos, é patente que o normativo em causa, nos casos em que o interessado desprovido de condições económicas que lhe permitam efetuar o depósito garantístico do pagamento das custas e das dívidas previsíveis da massa insolvente, pretenda levar a cabo o impulso processual com vista à obtenção de uma decisão judicial comprovativa de que reclamou no processo de insolvência, para, com essa comprovação, poder garantir o pagamento, pelo Fundo de Garantia Salarial, dos seus salários, incumpridos pela entidade patronal declarada insolvente, traduz uma solução excessiva, desadequada e limitadora, não só daquele direito, como ainda daqueloutro consignado na alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição.»
No caso dos autos estamos perante uma situação em que a entidade empregadora foi declarada insolvente, sem que tivesse sido requerido o complemento da sentença, tendo o processo sido encerrado ao abrigo do disposto no artigo 39.º, n.º 7, alínea b), do CIRE. O agora requerente, trabalhador da entidade declarada insolvente pretende instaurar novo processo de insolvência, nos termos do previsto na alínea d) do mesmo preceito legal, beneficiando para o efeito de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e de pagamento de honorários a patrono.
Diferentemente do caso decidido pelo Acórdão n.º 602/2006, nos presentes autos não há referência à necessidade de o trabalhador ver reconhecida a reclamação do seu crédito por salários não pagos pela entidade insolvente, tendo em vista o regime do Fundo de Garantia Salarial (cfr. alínea a) do artigo 324.º da Lei n.º 35/2004).
Mas independentemente de, em concreto, se ter em vista o Fundo de Garantia Salarial, o cerne da questão de constitucionalidade mantém-se. Pois o que esteve em causa nos acórdãos citados – e está em causa no caso vertente – é a compatibilidade, com o direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, de uma norma que exige, ao trabalhador que beneficia de apoio judiciário, na modalidade referida, o depósito prévio de uma determinada quantia (a fixar pelo juiz em montante que garanta o pagamento das custas e das dívidas previsíveis da massa insolvente) como condição para a instauração do novo processo de insolvência.
Sendo certo que o direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, pressupõe que tal acesso não seja dificultado em função da condição económica das pessoas – garantia que, no caso vertente, foi concretizada na concessão de apoio judiciário – a norma em questão obstaculiza o funcionamento da garantia constitucional e compromete a finalidade para a qual foi instituído – e, no caso, concedido – o sistema de apoio judiciário.
Como se salientou no Acórdão n.º 273/2012, da 2.ª Secção que se pronunciou sobre norma distinta, mas em que também estava em causa a exigência de um pagamento prévio por parte do requerente de apoio judiciário, «não é possível condicionar ao pagamento prévio de uma taxa pelo requerente de apoio judiciário, mesmo que de baixo valor, a verificação judicial da sua situação de insuficiência económica para suportar os custos do exercício dos seus direitos, uma vez que essa exigência pode precisamente impedir a finalidade constitucional visada com a criação do sistema de apoio judiciário, ou seja o acesso a esse exercício daqueles que se encontrem numa situação de carência económica.»
Em suma, a interpretação normativa questionada traduz uma solução incompatível com o artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, na medida em que limita de modo constitucionalmente inadmissível o direito de acesso aos tribunais, ao exigir que o trabalhador que pretenda instaurar novo processo de insolvência e a quem foi concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, efetue, como condição do prosseguimento dos autos, um depósito em montante que garanta o pagamento das custas e das dívidas previsíveis da massa insolvente.
III - Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 39.º, n.º 7, alínea d), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março), quando interpretada no sentido de impor ao requerente do novo processo de insolvência, que beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos do processo, o depósito do montante que o juiz especificar segundo o que razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das custas e das dívidas previsíveis da massa insolvente, como condição para o prosseguimento dos autos.
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 26 de setembro de 2012.- Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.