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Processo n.º 580/12
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente o MINISTÉRIO PÚBLICO, este vem interpor recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 280.º da Constituição da República Portuguesa e da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), do despacho de 28/07/2012 proferido pelo 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santo Tirso no Processo 197/12.7GBSTS que recusou a aplicação do artigo 194.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), com vista à apreciação da constitucionalidade da mesma norma.
2. Após as alegações do representante do Ministério Público junto deste Tribunal, o processo foi concluso à Relatora para efeitos do disposto no art.º 79.º-B da LTC.
II - FUNDAMENTAÇÃO
3. Dos documentos juntos aos autos, tem-se por assente, com relevância para a decisão, o seguinte:
3.1 Em 28 de Julho de 2012, no Inquérito n.º 197/12.7GBSTS que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santo Tirso, findo o Auto de Interrogatório de Arguido, foi proferida pela Mm.ª Juíza de Turno, Despacho com o seguinte teor (cfr. fls. 6 a 11):
«DESPACHO
A detenção do arguido foi efectuada por agente de autoridade competente para o efeito, pela pratica do crimes puníveis com pena de prisão, tendo o mesmo sido apresentado a juízo antes de esgotado o prazo máximo de 48 horas após a sua detenção, pelo que a julgo válida - cfr. arts. 254º nº 1 al. a), 257º n.º 1, e 258º do Cód. Processo Penal.
Indiciam fortemente os autos:
O arguido e A. são casados entre si, desde 30 a Outubro de 1966 – cfr. assento de nascimento de fls. 11 e 12, vivendo conjuntamente desde essa data até à actualidade na Rua …, n.º …, na freguesia de …., deste concelho e comarca.
Desde data ainda não apurada, mas dentro do casamento, o arguido vem dirigindo à referida A. seguintes expressões: 'vacarrona'' e 'filha da puta, o que deixa ferida na sua honra e consideração.
Constantemente, vem o arguido dizendo à ofendida que esta pretende ficar para si com todos os haveres de ambos.
Ainda no dia 16 de Julho de 2012, cerca das 17:45 horas, no interior da residência supra referida ou nas suas imediações, o arguido desferiu nas regiões do pescoço e na face da ofendida diversos murros e bofetadas, em consequência do que sofreu a mesma duas equimoses verticais na região lateral do pescoço, cada uma delas com 3 cm de comprimento – cfr. relatório médico-legal de fls. 15 a 17, que aqui se dá por integrado e reproduzido para todos os efeitos.
Agindo da forma atrás descrita, tinha o arguido a vontade livre e a perfeita consciência de estar infligindo e sujeitando a ofendida a tratamentos cruéis e desumanos no interior da residência desta, causando-lhe danos psicológicos e ofendendo os seus bem-estar e equilíbrio emocionais, assim como a liberdade e a segurança da mesmo, designadamente, dirigindo-lhe aqueles insultos e agredindo a ofendida, pelo que, adoptou o arguido intencionalmente as referidas condutas, apesar de bem saber que as mesmas eram, como são, proibidas e puníveis.
O arguido, pretextando que sua sogra vendeu um imóvel pertencente àquele e que não lhe entregou o dinheiro da respectiva venda, anuncia que matará a ofendida, caso esta não lhe apresente tal dinheiro.
Os factos acima descritos integram, abstractamente, a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, a) e 2 do Código Penal.
Provas:
Documental:
- Auto de notícia de fls 3 a 5;
- Assento de nascimento de fls. 11 e 12;
- Relatório médico-legal de fls. 15 a 17;
- Aditamento de fls. 21 a 23 e
- Auto de interrogatório de arguido de fls. 50 a 52;
- CRC de fls. 62,
Testemunhal:
A., ofendida e id. a fls. 3 e
B., id. a fls. 22.
Convicção do tribunal
O tribunal fundou a sua convicção no conjunto dos indícios resultantes dos autos, os quais foram valorados segundo regras da experiência comum, realçando-se o auto de notícia de fls. 3 a 5, assento de nascimento de fls. 11 e 12, relatório médico-legal de fls. 15 a 17, aditamento de fls. 21 a 23 auto de interrogatório de arguido de fls. 50 a 52 e CRC de fls. 62, bem como as declarações ora prestadas pelas testemunhas C. e D., filhas do arguido, as quais depuseram quanto à doença de que padece o arguido e à influência que a mesma tem na dinâmica familiar, bem como a agressividade que a mesma potencia para com os outros, principalmente os que lhe são mais próximos e até os de que está mais dependente, por força da própria doença, os que integram o seu agregado familiar, como a sua própria mulher.
Do Direito
Os factos indiciados nos autos são susceptíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1 al. a) e n.º 2, do Cód. Penal, punível com pena de prisão de 2 a 5 anos.
O arguido é indivíduo que exerce claro domínio sobre a sua mulher, a quem mantém em evidente estado de sujeição e temor. Diria até que os autos espelham que o arguido, com manifesta exuberância, cria um clima de tensão à sua volta e de terror psicológico de que dificilmente uma mulher fragilizada, como se mostra ser a sua, consegue sair de forma alguma ilesa, seja sozinha ou mesmo acompanhada (eventualmente pelas suas filhas), pois que marcas, essas carregá-las-á sempre consigo.
O arguido é, sem dúvida, pessoa, no mínimo emocionalmente perturbada e certamente com anomalia psíquica que contribuirá (ainda em medida desconhecida, neste momento), para a prática do indiciado ilícito.
Além de não se sujeitar com a regra prescrita medicamente - com receio de ser colocado a dormir – a terapêutica oral com a frequência que seria exigível, mistura com a medicação o álcool que ingere habitualmente às refeições, o que redundará, por certo, em desastre.
O próprio arguido anda tão desorientado e com a mente tão fixada em situações que ocorreram há cerca de 40 anos atrás, que ele próprio diz que mata a mulher se a sogra não lhe devolver o dinheiro que lhe emprestou. É de se concluir que 'quem não está com ele, está contra ele'…
Denota ainda alguma querelância ou litigância, própria de quem não está bem consigo e, por consequência está em guerra permanente com quem está mais perto, no caso, a mulher. Sente-se revoltado e injustiçado, sem que nos apresente motivo que justifique tão fortes e intensos sentimentos, faltando-lhe juízo crítico para a situação em que se encontra. Não respeita qualquer tipo de autoridade e manifesta ter súbitas alterações de humor e/ou de percepção. Padece de doença degenerativa que se vem agravando nas últimas semanas. Manifesta agressividade contra terceiros e recusa tratamento médico.
No nosso modesto entender, o art. 194º, nº 2, do CPP padece de inconstitucionalidade material, porquanto interfere de modo intolerável no núcleo essencial da reserva da competência em matéria jurisdicional do juiz de instrução criminal, no âmbito dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, o que está reconhecido na Constituição da República Portuguesa, desde a sua criação – cfr. Arts. 20º, n.º 5, 27º, n.º 3, al. c), 28º e 32º, 4 da CRP.
A nosso ver, não pode vigorar, em matéria tão sensível como a dos direitos liberdades e garantias dos cidadãos portugueses, o princípio do dispositivo, vinculando o juiz de instrução criminal ao pedido pelo Ministério Público, titular do inquérito, que aliás, nem sempre é a mesma pessoa que aparece no interrogatório ou que escreve as promoções que o antecedem o que decide quem e quando se vai deter alguém no inquérito, pelo que só o juiz, munido de especial isenção, responsabilidade e garante dos direitos fundamentais dos cidadãos pode e deve melhor apreciar da necessidade, adequação e proporcionalidade de cada uma das medidas de coacção para cada um dos arguidos, só assim lhe proporcionando tutela efectiva dos respectivos direitos fundamentais, em cada caso concreto.
Não é por acaso que a Constituição da República Portuguesa atribui em várias das suas normas, por demais conhecidas de todos nós, que a lemos com alguma assiduidade, o controlo judicial das medidas mais gravosas e limitativas da liberdade dos cidadãos ao Juiz, conferindo ao destinatário das respectivas decisões sempre a possibilidade de delas recorrer e de as-mesmas serem ou não confirmadas por juiz de tribunal superior, antecedido, de parecer do Ministério Público.
Por conseguinte e por entender, em consciência, que o dito artigo viola os mais elementos princípios da Constituição Portuguesa, recuso a aplicação, por inconstitucionalidade material, do art. 194º, n.º 2, do CPP, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007 de 29 de agosto.
Também não nos afigura ser adequada e proporcional à gravidade dos factos indiciados nos autos qualquer outra medida prevista no código de processo penal, nem sequer eficaz, pelo que também adiante se exporá.
Por outro lado, entendemos que é aplicável, no caso, a medida de prisão preventiva, uma vez que se trata de crime violento, nos termos e para os efeitos previstos no art. 202, n.º 1 al. b) e art. 1, al. j) do Cód. Processo Penal, ou seja, de conduta que dolosamente se dirige contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal e é punível com pena de prisão de máximo igual a 5 anos.
Como refere J. F. Moreira das Neves, na sua comunicação apresentada no dia 20-02-2009, no CEJ, no âmbito do Curso Breve Especialização sobre Violência Contra as Pessoas 'é sabido que a convivência aumenta o risco de actos violentos e a afectividade, bem como as dependências (económica, social e psicológica), aumenta a capacidade da resistência à violência'.
Estamos a crer por isso, que, por um lado, a ser colocado o arguido em liberdade e dado o estado de afecto, a nosso ver doentio e de domínio que exerce sobre a mulher, de quem não se consegue distanciar 'motu propriu', e, por outro lado a dependência em que a própria ofendida se encontra e foi alimentada pelo dominador/arguido ao longo destes anos, e que a terá impedido de reagir perante o seu marido, exigem intervenção da medida coactiva que em 'ultima ratio' aplicamos, pelos sobreditos motivos, ou seja a prisão preventiva.
Assim e perante o perigo iminente, em razão da natureza das circunstâncias da prática do indiciado crime de violência doméstica e bem assim da personalidade disforme do arguido nele espelhada, de que o mesmo reitere a actividade delituosa caso seja colocado em liberdade, ordeno a sua sujeição à única medida que se considera suficiente, adequada e proporcional à gravidade dos factos indiciados, ou seja, à medida de prisão preventiva, cabível no caso em apreço, nos termos acima referidos, artigos 191º, 192.º, 202.º n.º 1 al. b) conjugado com o art. 1º, al. j), e 204.º, n.º al. c), do Cód. Processo Penal.
Considerando, no entanto, que o arguido, sofre de notória anomalia psíquica determina-se que, enquanto esta persistir, em vez da prisão tenha lugar internamento preventivo na ala psiquiátrica do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, ao abrigo do preceituado no art. 202º, n.º 2, do CPP.
Notifique, dando cumprimento, para além do mais, ao disposto no art. 194.º, n.º 7, do Código de Processo Penal.
Comunique à ofendida.
Comunique-se à Comissão Para a Cidadania e a Igualdade de Género, remetendo cópia do presente auto de interrogatório – cfr. o art. 58.º, al. j), da Lei n.º 112/2009 de 16 de setembro.
Faça as necessárias comunicações legais, nomeadamente nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 25.º-D, n.º 3 a 5, da Portaria 114/2008, de 6 de fevereiro, na redação dada pela Portaria 195-A/2010, de 8 de abril.
Queira a secção indicar pessoa ou entidade idónea para proceder, no prazo de 20 (vinte) dias, à transcrição dos depoimentos gravados, desde já se nomeando tal pessoa ou entidade, prestando compromisso de bom desempenho das funções por escrito.
Extraía e entregue-me certidão da presente diligência, para arquivo pessoal.
Notifique.
Remetam-se os autos aos serviços do Ministério Público.
Logo foram os presentes notificados do douto despacho.
Finalmente, a Mmª Juiz deu por encerrado o acto, quando eram 13 horas e 49 minutos, tendo o arguido comparecido presencialmente perante a Mmª Juiz, o qual lhe deu a conhecer o teor do despacho proferido, informando-o a medida de coacção que lhe aplicadas. (…)».
3.2 O Magistrado do Ministério Público de turno interpôs recurso para este Tribunal mediante requerimento de 7/8/2012, com o seguinte teor (cfr. fls. 17):
«(…) O Ministério Público, nos termos dos artigos 280.º, n.º 1, al. a) e n,º 3 da Constituição da República Portuguesa, 70.º, n.º 1, al. a), 72.º, n.º 1, al. a), 75.º, 75.º-A, estes da Lei 28/82, de 15 de Novembro, notificado da decisão proferida em 27.07.2012, que recusou a aplicação do art. 194.º, n.º 2 do Código Processo Penal, na redacção foi introduzida pela Lei n.º 48/2009, de 29/08, dela vem interpor recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade para o Tribunal Constitucional, com vista à apreciação da constitucionalidade da citada norma. (…)».
3.3 O recurso para este Tribunal foi admitido em 8/8/2012 (cfr. fls. 19).
3.4 Notificado para alegações, o representante do Ministério Público junto deste Tribunal, nas suas alegações apresentadas em 23/08/2012 (cfr. fls. 27 a 55) sustenta, em síntese, que o regime da intervenção do juiz de instrução na decretação de medidas de coação na fase de inquérito, nos termos plasmados no artigo 194.º, n.º 2, do CPP não colide com as normas e princípios constitucionais referentes à reserva de função jurisdicional, concluindo o seguinte:
«(…) Julga-se de concluir, por todo o exposto:
a) Pela procedência do presente recurso de constitucionalidade;
b) Pela necessidade, em conformidade, de se revogar o despacho recorrido da digna magistrada judicial a quo;
c) Concluindo-se, assim, pela constitucionalidade do art. 194º, nº 2 do Código de Processo Penal. (…)»
3.5 Tendo em conta o supra exposto a questão controversa sobre a qual o Tribunal se deve pronunciar, no âmbito da fiscalização concreta, é a de saber se a norma do n.º 2 do artigo 194.º do Código de Processo Penal, com a redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no segmento segundo o qual «Durante o inquérito, o juiz não pode aplicar medida de coacção (…) mais grave do que a requerida pelo Ministério Público (…)» viola os artigos 20.º, n.º 5, 27.º, n.º 3, alínea c), 28.º e 32.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP), «por afectação do núcleo essencial da reserva de competência do juiz de instrução criminal, no âmbito dos direitos, liberdades e garantias».
4. Previamente à apreciação da questão de constitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 194.º do Código de Processo Penal (CPP) afigura-se útil traçar, por um lado, um enquadramento sucinto quanto ao direito infra-constitucional em causa e à posição da doutrina; e, por outro lado, considerar as normas relevantes da Constituição em matéria de função jurisdicional e reserva do juiz e do papel do Ministério Público no âmbito do processo penal.
5. Quanto ao direito infra-constitucional em causa, há que considerar a versão vigente do n.º 2 do artigo 194.º do CPP e a sua origem bem como a versão do artigo 194.º anterior ao aditamento do n.º 2 pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.
5.1 A norma em apreço resulta da alteração introduzida no artigo 194.º do CPP pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto que aprovou a 15.ª alteração ao mesmo Código (cfr art.º 1.º) mediante aditamento de um novo número (n.º 2), tendo o seguinte teor:
«Durante o inquérito, o juiz não pode aplicar medida de coacção ou de garantia patrimonial mais grave do que a requerida pelo Ministério Público, sob pena de nulidade».
5.1.1 Na exposição de motivos da proposta de lei n.º 109/X (apresentada em 20/12/2006 e publicada no DAR II Série A n.º 31/X/2 de 23/12/2006), a qual esteve na origem do referido aditamento ao artigo 194.º do CPP introduzido pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, pode ler-se, quanto às alterações a introduzir em matéria de medidas de coacção:
“Acolhendo o entendimento dominante, impede-se o juiz de instrução de aplicar, durante o inquérito, medida de coacção ou garantia patrimonial mais grave do que a preconizada pelo dominus dessa fase processual – o Ministério Público (artigo 194.º)”.
5.1.2 De acordo com a referida exposição de motivos, a justificação da nova formulação legal em causa residiu no facto de o legislador ter procurado corresponder à interpretação doutrinária maioritária sobre o âmbito dos poderes do juiz que decide da medida de coacção a aplicar, a partir da formulação então conferida ao artigo 194.º do Código do Processo Penal.
5.2 Até à reforma do Código, corporizada na Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o regime das medidas de coacção, no que aqui releva, estabelecia que as mesmas eram aplicadas por despacho do juiz, durante o inquérito a requerimento do Ministério Público e depois do inquérito mesmo oficiosamente, ouvido o Ministério Público (n.º 1 do artigo 194.º), sendo a sua aplicação precedida, sempre que possível e conveniente, de audição do arguido, podendo ter lugar no acto do primeiro interrogatório judicial (n.º 2, idem).
5.2.1 A doutrina processualista portuguesa pronunciou-se, fundamentalmente, sobre duas questões relativas ao regime em causa, tal como constava do Código à altura. A primeira, e a mais relevante para a questão de constitucionalidade que nos ocupa, era a de saber se poderia ser decretada medida mais gravosa do que a formulada no pedido do Ministério Público; já a segunda, aquém da questão em análise, considerava mesmo se o juiz poderia decretar medida diversa da requerida pelo Ministério Público ou se lhe estaria reservado o papel de concordar ou discordar da concreta medida proposta.
5.2.2 A resposta da maioria da doutrina processualista e penalista à primeira questão era não (dando conta dessa tendência, Dá Mesquita, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, Coimbra Editora, 2003, pp. 193-194, nota 122); entre aqueles notava-se alguma divisão quanto à segunda questão. A título de ilustração de diferentes respostas da doutrina quanto à segunda questão vide Odete Maria Oliveira, As medidas de coacção no novo Código de Processo penal, in Jornadas de Direito Processual penal. O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, Almedina, 1988, p. 171, ao afirmar que ao juiz de instrução apenas assiste o poder de livremente deferir ou indeferir a medida que o MP requerer e não pode impor medida de coacção diversa; diferentemente, Figueiredo Dias, Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias, Vol. II, tomo II, p. 91, admitindo que o juiz pode ficar aquém do requerido pelo Ministério Público.
5.2.3 Tal entendimento quanto à primeira questão traduz-se, pois, numa limitação dos poderes do juiz de instrução na fase de inquérito, traduzindo-se o requisito do «requerimento do Ministério Público» – sem ofender a exclusividade da competência jurisdicional quanto à aplicação da medida de coação e, nessa medida o princípio da reserva da função jurisdicional – num pedido conformador do “limite superior” da margem de liberdade do juiz quanto à escolha da medida de coação legalmente admissível.
6. Quanto ao teor da Constituição em matéria de função jurisdicional e reserva do juiz e do papel do Ministério Público no âmbito do processo penal são de considerar os artigos 202.º, n.º 1, 32.º, n.º 4 e 32.º, n.º 5 e 219.º da CRP. Os dois primeiros por consagrarem, respetivamente, uma reserva da competência para o exercício da função jurisdicional em proveito dos tribunais (princípio da reserva do juiz) e um caso especial de reserva do juiz (“de instrução”); os dois últimos por consagrarem a competência do MP, incluindo a competência para o exercício da ação penal, e a estrutura acusatória do processo penal.
7. Quanto à apreciação da questão de constitucionalidade, afigura-se pertinente equacionar os aspetos seguintes:
7.1 A questão de constitucionalidade ora colocada ao Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta, reporta-se à norma do n.º 2 do artigo 194.º do CPP, segundo a qual «Durante o inquérito, o juiz não pode aplicar medida de coacção (…) mais grave do que a requerida pelo Ministério Público, sob pena de nulidade».
Independentemente da questão, objecto de atenção por parte de doutrina, de saber se a norma em causa comporta uma interpretação que permita ao juiz decretar uma medida de coacção diversa da requerida pelo Ministério Público, o objecto do presente recurso restringe-se ao pedido formulado pelo Ministério Público e, assim, à apreciação da conformidade com a Constituição da norma do n.º 2 do artigo 194.º quanto à proibição da aplicação, pelo juiz, de medida de coacção mais grave do que a requerida pelo Ministério Público.
7.2 A questão agora colocada ao Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta, quanto à norma do n.º 2 do artigo 194.º do CPP não foi, até à data, objeto específico da atenção do Tribunal.
Não obstante, são duas as situações que apresentam pontos de contacto com o caso dos autos – por comportarem uma limitação do modo de funcionamento do tribunal (tribunal singular) e dos poderes do juiz (pena aplicável e decisão sobre a suspensão do processo) – em que este Tribunal teve a oportunidade de se pronunciar e apreciar a conformidade com a CRP das normas do CPP que consagram tal limitação: os artigos 16.º, n.º 3 e 4, e 281.º, n.º 1, do CPP em matéria, respetivamente, de competência do tribunal singular e de suspensão provisória do processo quando o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente de prisão, e mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta.
Ambas as situações apresentam todavia elementos de diferenciação em relação à situação do caso em apreço: a primeira, pela diferença de fase processual e respectivo domínio pelo juiz (fase de julgamento); a segunda, pela diferença quanto à natureza dos actos em causa (actos não judiciais para efeitos de aplicação das normas consagradoras de reservas especiais de juiz).
7.2.1 Na primeira situação, o TC entendeu que a reserva de jurisdição não sai beliscada pelo facto de o n.º 3 do artigo 16.º do CPP permitir que certos crimes, que em princípio deviam ser julgados pelo tribunal coletivo, o sejam pelo tribunal singular se o MP entender que, no caso, não deve ser aplicada pena de prisão superior a (então) 3 anos ou medida de segurança de internamento por mais tempo.
Ora, a este propósito há uma vasta produção jurisprudencial constitucional merecedora de referência, iniciada com o Acórdão n.º 393/89, de 18/05/1989 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, n.º 13, pp. 1057 e ss. - vide também os citados por Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, 2007, p. 32-33).
Também aí a questão de constitucionalidade suscitada se prendia com a distribuição de competências entre o Ministério Público e o juiz, de acordo com um sistema de determinação concreta da competência do juiz, em que a decisão deste é condicionada ou limitada pela opção do Ministério Público.
Isto, quanto ao juiz do julgamento, pois quando o Ministério Público, na acusação ou em requerimento, entenda não dever ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a cinco anos, não apenas determina a competência do tribunal singular, como vincula o tribunal a essa moldura penal na sua decisão condenatória (cfr. n.º 4 do artigo 16.º do CPP).
A sindicância do Tribunal Constitucional dirigiu-se, entre outros aspetos, à invocada violação da reserva da função jurisdicional, concluindo reiteradamente pela não verificação dessa ofensa à Constituição.
Vale a pena transcrever o que então (e sucessivamente) se concluiu (no Acórdão n.º 393/89, cit.):
“O artigo 16. °, n. ° 3, do Código de Processo Penal e o artigo 206. ° da Constituição
O artigo 205.° da Constituição preceitua que «os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo». É o princípio da reserva da função jurisdicional aos juízes e aos tribunais [sobre este princípio, cf. os Acórdãos deste Tribunal n.os 72/84, 56/85, 98/88 e 143/88 (Diário da República, 2.a série, de 10 de Janeiro de 1985, de 28 de Maio de 1985, de 22 de Agosto de 1988 e de 15 de Setembro de 1988, respectivamente)].
De sua parte, o artigo 206.° reza assim:
Artigo 206.°
(Função jurisdicional)
Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.
A fim de poderem desincumbir-se da tarefa de «administrar a justiça em nome do povo», «os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei» (cf. artigo 208.° da Constituição).
A independência dos tribunais conclama a independência dos juízes.
A independência dos juízes, que é, acima de tudo, um dever ético-social, vem a traduzir-se no dever de julgar «apenas segundo a Constituição e a lei», sem sujeição, portanto, a quaisquer ordens ou instruções. Na interpretação e aplicação das leis, hão-de, pois, os juízes agir sem outra obediência que não seja aos ditames da sua própria consciência [cf. artigo 4.° da Lei n.° 21/85, de 30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais)].
Nenhum destes princípios é violado pelo artigo 16.°, n.° 3, do Código de Processo Penal, pois quem julga é o juiz, e não o Ministério Público. É aquele, e não este, quem fixa a medida concreta da pena, movendo-se para tanto dentro da moldura abstracta fixada na lei.
Sucede é que o juiz, ao fixar a pena do caso, não pode exceder três anos (cf. citado artigo 16.°, n.° 4). Isso, porém, significa tão-só que ele não pode utilizar toda a moldura abstracta constante do tipo.
O Ministério Público condiciona, assim, a fixação da pena do caso: como porta-voz que é do poder punitivo do Estado, diz ao juiz que, face às circunstâncias do caso e tendo presentes os critérios legais de aplicação concreta das penas, a colectividade que ele representa não pretende que ao réu se aplique por aquele caso pena superior a três anos. E di-lo no exercício de um poder expressamente definido na lei.
Ora, isto não viola qualquer dos apontados princípios constitucionais.”
Valeu-se essa jurisprudência sobretudo da linha de argumentação defendida por Figueiredo Dias (“Sobre os sujeitos processuais no Novo Código do Processo Penal”, Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1988, pp. 3 e ss.) quanto à estrutura acusatória do processo e as suas implicações.
7.2.2 Quanto à legitimidade constitucional da atribuição ao MP do poder de decidir, com a concordância do juiz de instrução, pela suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, pronunciou-se este Tribunal nos Acórdãos n.º 67/06, de 24/01/2006 e n.º 144/04, de 10/03/2004 (disponíveis, como os demais adiante citados, em http://www.tribunalconstitucional.pt), entre outros.
No Acórdão n.º 67/2006, concluiu-se não haver obstáculos de ordem constitucional ao citado poder do Ministério Público, “porque a concretização da reserva para administrar justiça mediante a atribuição de competência aos tribunais para reprimir a violação da legalidade democrática (artigo 202.º, n.º 2 da Constituição) não é incompatível com soluções em que a actuação do tribunal, mesmo no processo penal, seja condicionada pelo impulso processual inicial ou sucessivo de outros sujeitos processuais, nem impede que a intervenção do juiz de instrução se limite, na fase de inquérito, a uma função de garantia, sempre que se torne necessária a prática de actos que colidam com a esfera dos direitos, liberdades e garantias (juiz de garantias ou juiz das liberdades).”
A concepção do papel do juiz, na fase de inquérito, como um juiz de garantias ou juiz de liberdades pode, com proveito, ser transposta para o caso dos autos, não obstante dever ter-se presente que aos atos processuais de suspensão do processo e escolha de injunções e regras de conduta não foi reconhecida (diferentemente do que acontece com as medidas de coação) a natureza de “atos judiciais” para efeitos de aplicação das normas consagradoras de reservas especiais de juiz, como decorre da seguinte passagem do acórdão: “Acresce, por último, que o acto processual em causa – a decisão primária de suspensão e escolha das injunções e regras de conduta – também não cabe em qualquer das hipóteses singulares de reserva de acto jurisdicional ou “casos constitucionais de reserva judicial” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., pág. 792) no domínio do processo penal, designadamente no n.º 2 do artigo 27.º da Constituição, porque as injunções e regras de conduta não revestem a natureza jurídica de penas, embora se consubstanciem em medidas que são seus “equivalentes funcionais” (Cf. neste sentido Pinto Torrão, op. cit., pág. 192, Anabela Miranda Rodrigues, Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, pág. 193, e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2.ª ed., pág. 112).”
8. Delimitado o objecto do presente recurso, no caso em análise o despacho do tribunal “a quo”, ora recorrido, recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação da norma do n.º 2 do artigo 194.º do CPP, com a redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, com fundamento na sua inconstitucionalidade material «porquanto interfere de modo intolerável no núcleo essencial da reserva da competência em matéria jurisdicional do juiz de instrução criminal, no âmbito dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, o que está reconhecido na Constituição da República Portuguesa, desde a sua criação – cfr. Arts. 20º, n.º 5, 27º, n.º 3, al. c), 28º e 32º, 4 da CRP.».
9. Os parâmetros de aferição da inconstitucionalidade material invocada, que fundamentou a recusa de aplicação da norma do n.º 2 do artigo 194.º do CPP foram, assim, os artigos 20.º, n.º 5, 27.º, n.º 3, al. c), 28.º e 32.º, 4 da Constituição.
9.1 Dos parâmetros de aferição da constitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 194.º do CPP invocados na decisão recorrida, um deles não se afigura à partida relevante.
Em primeiro lugar, o artigo 27.º, n.º 3, alínea c) da CRP não se afigura relevante pelo facto de não respeitar à situação do caso em análise. Com efeito, a alínea c) do n.º 3 do artigo 27.º da CRP excetua do princípio ínsito nos números anteriores a privação de liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar no caso de:
«c) Prisão, detenção ou outra medida coactiva sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão».
Tal não é, manifestamente, o caso dos autos, pelo que não se vislumbra em que medida o n.º 2 do artigo 194.º poderá envolver violação da alínea c) do n.º 2 do artigo 27.º da CRP.
Ainda que se entenda que a invocação pelo juiz do tribunal “a quo” do n.º 3 do artigo 27.º da CRP se refira, por lapso, à alínea c) em vez de se referir à alínea b) - «b) Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos» – não se vislumbra em que medida o n.º 2 do artigo 194.º possa envolver violação da mesma.
Com efeito, a eventual invocação da alínea b) do n.º 3 do artigo 27.º da CRP apenas serviria o propósito de justificar o preenchimento – ou a possibilidade de preenchimento – de um dos fundamentos constitucionalmente admitidos para a privação da liberdade, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar», mas não releva para a análise da norma legal objeto de fiscalização (n.º 2 do artigo 194.º do CPP).
9.2 Em segundo lugar, o artigo 28.º da CRP, também invocado como parâmetro da inconstitucionalidade material, afigura-se relevante na medida em que convoca, em especial, o princípio da reserva constitucional do juiz quanto à aplicação da medida de coação de prisão preventiva, a qual tem natureza excecional (vide o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 555/08, de 19/11/2008, II, 9.), e o princípio do contraditório.
No caso em apreço o artigo 28.º da CRP não releva todavia enquanto parâmetro da aferição da constitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 194.º do CPP, não servindo a sua invocação o propósito de justificar a competência para a aplicação de uma medida mais gravosa do que a requerida pelo MP.
9.3 Afastados dois dos parâmetros invocados pelo tribunal “a quo” para recusar a aplicação da norma do n.º 2 do artigo 194.º do CPP, importa apreciar a constitucionalidade da mesma à luz dos demais parâmetros cuja violação foi invocada – sem prejuízo da consideração de outros que se possam considerar relevantes no caso em apreço.
9.3.1 Quanto ao artigo 32.º, n.º 4, da CRP, cuja violação constitui fundamento da recusa de aplicação da norma do n.º 2 do artigo 194.º da CRP com fundamento em inconstitucionalidade material, esta disposição consagra um caso especial de reserva de juiz de instrução.
A CRP dispõe, no n.º 4 do artigo do artigo 32.º que «Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos atos instrutórios que não se prendam diretamente com os direitos fundamentais», o que configura, numa formulação pela positiva, uma reserva de competência do juiz de instrução do processo penal para a prática dos atos instrutórios que se prendam diretamente com os direitos fundamentais.
Entende-se aqui consagrado o «princípio da judicialização da instrução», nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira, com a advertência de que “a Constituição não define onde começa a instrução” (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª edição, revista, Coimbra Editora, 2007, anotação ao artigo 32.º, p. 520).
Na situação que nos ocupa, a reserva de competência do juiz é invocada na designada fase de inquérito, que precede a fase instrutória, de acordo com a classificação introduzida pelo legislador ordinário e plasmada no Código de Processo Penal de 1987, vigente. De uma forma clara, a síntese de Paulo Dá Mesquita: “O processo penal português organiza-se em três momentos, o inquérito, presidido pelo Ministério Público, a fase facultativa (requerida pelo arguido ou pelo assistente) de instrução dirigida pelo juiz de instrução e (existindo acusação ou pronúncia) o julgamento presidido por um juiz” (Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, Coimbra Editora, 2003, p. 52).
Prima facie pode questionar-se a própria aplicação do preceito constitucional, por se dirigir à garantia da participação do juiz na fase de «instrução» e não na fase de inquérito, em causa nos autos (vide as alegações do Ministério Público, V. Da apreciação do thema decidendum, 28.º).
Não parece argumento decisivo, pois mesmo atribuindo ao conceito de instrução plasmado na Constituição o conteúdo que lhe é conferido pelo legislador ordinário, a aplicação do princípio contido no n.º 4 do artigo 32.º da Constituição às fases que antecedem a fase de instrução do processo penal é acolhida pela doutrina e jurisprudência constitucionais, sempre que haja afetação de direitos fundamentais. Com desenvolvimento, Jorge Miranda e Rui Medeiros dão conta dessa leitura da norma constitucional citada:
“ Na vigência da redacção originária da Constituição entendíamos que o n.º 4 do artigo 32.º tinha pretendido atribuir a competência para a investigação à jurisdição, subtraindo-a ao Ministério Público e às polícias, dando ao conceito de “instrução” o sentido amplo que resultava da legislação contemporânea da aprovação do texto constitucional. Em razão das alterações da Constituição posteriores ao Código de Processo Penal de 1987, consideramos agora que o actual conteúdo do conceito de instrução é mais restrito e corresponde à garantia processual dos direitos do arguido ao esclarecimento dos factos, com a sua participação, em ordem à decisão de o submeter a julgamento, o que equivale à fase processual da instrução consagrada no Código de Processo Penal, excluindo-se, pois, a fase de investigação pré-acusatória, salvo no que respeita aos actos que nesta fase se prendam directamente com os direitos fundamentais, em que a garantia da jurisdição é essencial e reservada pela Constituição a um juiz (Vejam-se, neste sentido, os Acs. N.ºs 7/87, 23/90 e 395/04).
Por aplicação deste critério, o Tribunal Constitucional decidiu, nos Acs. N.ºs 155/07 e 228/07, que a Constituição impõe a prévia autorização do juiz, para que tenha lugar “a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita”, uma vez que o acto em causa contende, de forma relevante, com direitos, liberdades e garantias” (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª edição, revista, actualizada e ampliada, Wolters Kluwer Portugal/Coimbra Editora, 2010, pp. 728-729).
A este propósito, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, cit., p. 521) concluem que “sempre se deve entender, pelo menos, que na fase pré-instrutória carecem de intervenção do juiz os actos que afectem direitos, liberdades e garantias” e, mais à frente, que “devem ter-se por abrangidos todos os actos que, fora de processo penal, sempre se haveriam de ter por ofensas a direitos fundamentais (aplicação de medidas de coacção, reconhecimento e interrogatório do arguido, buscas domiciliárias, intercepção ou gravação de conversações telefónicas, exame de correspondência, acesso a ficheiros informáticos de dados pessoais, exames que contendam com a privacidade, etc.)”.
Em face do n.º 4 do artigo 32.º, estamos perante uma garantia constitucional de reserva de competência do juiz de instrução relativamente a determinados atos processuais, mesmo na fase pré-instrutória, sendo consensual o entendimento de que cabem aqui as medidas de coação aplicadas na fase de inquérito.
Assim, as medidas de coação são “atos judiciais” para efeitos do artigo [hoje] 202.º da Constituição, pelo que devem ser mesmo praticados (e não meramente autorizados) pelo juiz de instrução, como conclui Anabela Miranda Rodrigues (“A jurisprudência constitucional portuguesa e a reserva do juiz nas fases anteriores ao julgamento ou a matriz basicamente acusatória do processo penal” in XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, p. 51).
No caso em apreço, a norma cuja constitucionalidade foi posta em crise tem por obrigatória a intervenção do juiz de instrução na aplicação de medidas de coacção ao arguido na fase de inquérito – em consonância com a natureza de “acto judicial” das medidas de coação. É o juiz que decreta as medidas de coação a aplicar (segundo a lei, sob requerimento do Ministério Público). A questão suscitada não se prende pois com a intervenção do juiz na fase de inquérito, mas com o conteúdo do poder a exercer e a sua vinculação a um “limite” previamente estabelecido por outro órgão – o MP –, ou seja, a medida da liberdade da decisão do juiz quanto à aplicação daquelas medidas (natureza, quantum e modo de execução).
9.3.2 Ora a medida da liberdade de decisão do juiz na fase de inquérito – quanto à escolha da natureza, quantum e modo de execução das medidas de coacção a aplicar – não pode deixar de ser apreciada tendo em consideração também o disposto no n.º 5 do artigo 32.º da CRP na parte em que consagra a estrutura acusatória do processo criminal.
Assume pois particular relevância, enquanto parâmetro de aferição da constitucionalidade, ainda que não invocado no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, o n.º 5 do artigo 32.º da CRP, na medida em que consagre a estrutura acusatória do processo penal.
A estrutura acusatória do processo penal, adoptada entre nós, implica uma repartição de competências entre o juiz e o Ministério Público, traduzida muitas vezes na expressão «quem investiga não julga» (Anabela Miranda Rodrigues, “A jurisprudência constitucional portuguesa e a reserva do juiz nas fases anteriores ao julgamento ou a matriz basicamente acusatória do processo penal” in XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, p. 50).
Ao Ministério Público é conferido, pelo CPP, o poder de direcção do inquérito.
Dispõe o artigo 53.º do CPP:
«Artigo 53.º
Posição e atribuições do Ministério Público no processo
1 - Compete ao Ministério Público, no processo penal, colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade.
2 - Compete em especial ao Ministério Público:
a) Receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar-lhes;
b) Dirigir o inquérito;
c) Deduzir acusação e sustentá-la efectivamente na instrução e no julgamento;
d) Interpor recursos, ainda que no exclusivo interesse da defesa;
e) Promover a execução das penas e das medidas de segurança.»
E dispõe, em especial, o artigo 263.º, n.º 1, do CPP que «A direcção do inquérito cabe ao Ministério Público (…)».
Assim, ao Ministério Público é conferido o poder de direcção do inquérito (vd. artigo 53.º, n.º 2, alínea b), e artigo 263.º, n.º 1, do CPP), o que vai ao encontro do estatuto constitucionalmente conferido a este órgão pelo artigo 219.º da Lei Fundamental, enquanto magistratura autónoma, a quem cabe o exercício da acção penal, num quadro de defesa da legalidade, movendo-se por critérios de objectividade e imparcialidade (vide o Acórdão n.º 7/87 do Tribunal Constitucional, de 9/01/1987, n.º 2.4 e o Acórdão n.º 395/04 de 2/06/2004, B).
Nas diferentes posições entre os sujeitos processuais (juiz e Ministério Público), será de recordar o ensinamento de Figueiredo Dias, que baseou grande parte da produção jurisprudencial constitucional sobre o tema, sobre a repartição de competências entre o Juiz e o Ministério Público determinada pelo princípio do acusatório – subjacente, como atrás se disse, ao Acórdão n.º 393/89:
“O problema que então ficava para resolver era outro: era o de saber se, no caso (decerto, excepcional) em que, no fim do julgamento, o juiz lograsse a convicção de que deveria aplicar uma sanção em medida superior à pré-determinada, deveria ter competência para a aplicar (e não há rigorosamente nada na Constituição que o impedisse), ou seria preferível que limitasse a sua convicção pelo máximo de medida da sanção que estava na sua competência normal aplicar. A Comissão decidiu-se, no artigo 16.º, n.º 3, pela última alternativa e, quanto a mim, com excelentes razões político-criminais, que seria deslocado explanar aqui.
O que interessa é acentuar que, deste modo – e como agora, porventura, já se terá tornado claro –, o princípio da reserva da função jurisdicional permanece intocado: é o juiz singular que julga, como é ele que determina concretamente a sanção dentro dos limites abstractos em que a lei lhe permite que mova a sua discricionariedade vinculada. A lei acrescento e acentuo – e só ela, de sorte que a independência do juiz também não é, no que quer que seja, afectada. O que sucede é que – e é isto o que há de singular no método de determinação concreta da competência – «lei» não é apenas o preceito do Código Penal onde se prevêem os limites abstractos das sanções aplicáveis; «lei» é também, e a igual título, o preceito do Código que limite a convicção do juiz pelo máximo das sanções que ele pode aplicar, quando o Ministério Público – como representante do Estado e porta-voz, portanto, do seu poder punitivo – entenda que, no caso, aquele máximo não deve ser ultrapassado. Esse entendimento tem na base um processo de «aplicação do direito»? Decerto que sim, como o tem qualquer outro que o Ministério Público assuma no exercício da acção penal e, nomeadamente, na sua decisão de acusar ou antes de arquivar o processo: «aplicação do direito», porém, não «jurisprudência». O Ministério Público co-determina deste modo, em certa medida, o sentido da decisão final? Decerto que sim, como o codetermina qualquer acto próprio de um sujeito processual, nomeadamente a sua decisão de recorrer ou de não recorrer! Os poderes do juiz são assim limitados, para além do que resulta da lei penal substantiva aplicável? Decerto que sim, como o são através de inúmeros comportamentos dos sujeitos processuais, nomeadamente aquele em que se traduz a fixação do objecto do processo pelo Ministério Público, ou – de uma forma ainda mais paradigmática para o caso aqui em discussão – aquele outro que põe em funcionamento a proibição de «reformatio in peius». De uma forma ainda mais paradigmática, digo, porque a argumentação dos opositores desta proibição – que, durante tantos anos, impediu a verdadeira conquista democrática em que uma tal proibição se traduz – não era no fundo outra senão a de que o regime próprio desta proibição tornaria parcialmente disponível o objecto do processo e permitiria assim que a actuação processual dos eventuais recorrentes subtraísse ao juiz funções que deveriam caber-lhe de forma indisponível!
Toda esta linha de argumentação não colhe face a um processo penal dotado, nos termos do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, de «estrutura acusatória», Não quero significar com isto que a estrutura acusatória do processo penal implique por necessidade soluções como a da proibição da reformatio in peius ou a constante do artigo 16.º, n.ºs 2 e 3. Digo, sim, que estas soluções são compatíveis com aquela estrutura acusatória e devem ser compreendidas à sua luz; e, ainda mais, que elas representam «um autêntico reforço da estrutura acusatória do processo penal», sem por isso porem em causa o princípio da investigação ou o carácter indisponível do objecto do processo: que elas representam, numa palavra, a realização da «máxima acusatoriedade do processo penal» compatível com os restantes princípios gerais que lhe presidem. Pela simples e boa razão – que o conjunto do presente trabalho, mas nomeadamente a sua parte final, procura tornar clara – de que levar ao ponto de censura soluções como aquelas de que aqui se trata não significaria respeito pelos princípios da indisponibilidade e da investigação: significaria, sim, conceder a um processo de estrutura inquisitória, ou de estrutura mista acusatória/inquisitória – esse, na verdade, irremediavelmente inconstitucional perante o disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição.
Julgo poder agora concluir: face à Constituição, tanto o sistema do projecto como o do Código, relativos ao artigo 16.º, são perfeitamente legítimos. Não é, pois, no domínio da arguição de inconstitucionalidade – que, a este como a outros propósitos, mal encobre o circunstancialismo político e sociológico em que hic et nunc se processam as relações institucionais e corporativas entre as magistraturas judicial e do Ministério Público – que a discussão entre os dois sistemas deve ser colocada. E, sim, no domínio das vantagens e desvantagens político-criminais que cada um apresenta para a máxima realização possível das finalidades antinómicas do processo penal que o problema deve ser posto e – assim se espera – aprofundado no futuro.” (“Sobre os sujeitos processuais no Novo Código do Processo Penal”, Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1988, pp. 20 e ss.).
Por seu turno, o conceito de reserva de jurisdição foi preenchido na jurisprudência do Tribunal Constitucional como decorrência fundamental do próprio princípio da independência dos tribunais. Pode ler-se no Acórdão n.º 67/2006:
“Um dos corolários ou dimensões do princípio da independência dos tribunais é o de que o juiz, no exercício da sua função jurisdicional, apenas está submetido às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas (independência funcional). Por outro lado, como diz Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pág. 658, a independência judicial postula o reconhecimento de uma reserva de jurisdição, entendida como reserva de um conteúdo material típico da função jurisdicional, o que implica que em determinadas matérias cabe ao juiz não apenas a última, mas também a primeira palavra. É o que se passa, desde logo, no domínio tradicional das penas restritivas da liberdade e das penas de natureza criminal na sua globalidade. Os tribunais são os “guardiões da liberdade” e daí a consagração do princípio nulla poena sine judicio (…)”.
O estabelecimento de uma reserva específica do juiz de instrução (32.º, n.º 4, da CRP) pode colher as considerações antecedentes quanto ao juiz do julgamento, a que acrescerá a compreensão do papel do juiz de instrução na defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos na fase pré-acusatória. Nas palavras de Dá Mesquita, “ O estatuto do órgão judicial nas fases em que intervém como dominus da fase processual (instrução ou julgamento) é inteiramente distinto do que assume na fase pré-acusatória «como entidade exclusivamente competente para praticar ordenar ou autorizar certos actos processuais que na sua pura objectividade externa, se traduzem em ataques a direitos, liberdades e garantias das pessoas constitucionalmente protegidos», sendo certo que a fase do inquérito pode findar sem que o juiz de instrução tenha intervenção.
A circunstância da direcção da fase de inquérito pertencer ao Ministério Público e da intervenção judicial ser pontual não descaracteriza o juiz de instrução na fase pré-acusatória como órgão judicial que actua em plena autonomia do Ministério Público, apesar de a sua intervenção estar normalmente dependente da promoção do Ministério Público pelo que objectivamente condicionada a uma decisão prévia desse órgão” (Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, ob. cit., pp. 173-174).
Conclui, nessa esteira, o Autor citado tratar-se de uma intervenção tipificada e provocada, cabendo ao Ministério Público o juízo sobre a sua oportunidade e a primeira avaliação da sua necessidade (idem, p. 175).
Noutra perspectiva, já foi ponderado neste Tribunal que a reserva de juiz “comprime a alegada reserva do Ministério Público na direcção do inquérito, até onde se revele necessária para protecção efectiva dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Daí que, em obediência ao texto constitucional, o CPP de 1987 não tenha deixado de prever a intervenção ocasional do juiz de instrução para praticar, ordenar ou autorizar certos actos processuais singulares que, na sua pura objectividade externa, se traduzem em ataques a direitos, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos (v.g., a aplicação de medidas de coacção ao arguido, a realização de buscas domiciliárias, a apreensão de correspondência, a localização celular ou a intercepção, gravação e registo de comunicações telefónicas), para além de outros actos de cariz jurisdicional (v.g., tomada de declarações para memória futura, admissão de assistente, aplicação de multas)“ (Acórdão n.º 412/2011, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt).
Assim, a configuração constitucional dos papéis conferidos ao Juiz e ao Ministério Público em processo penal, na conjugação do princípio do acusatório com a reserva de juiz na aplicação de medidas de coação na fase de inquérito, não se afigura desrespeitada pela solução legal em causa prevista no n.º 2 do artigo 194.º do CPP.
Para o efeito, deverá compreender-se que a intervenção do juiz de instrução na aplicação de medidas de coacção na fase de inquérito é primacialmente dirigida ao controlo do meio de coação requerido, seja na sua admissibilidade e legalidade. Pelo que a norma contida no n.º 2 do artigo 194.º do CPP não viola o disposto no artigo 32.º, n.º 4 e n.º 5 da CRP.
9.3.3 Por último, impõe-se ainda uma referência ao artigo 20.º, n.º 5, da CRP enquanto parâmetro de apreciação da constitucionalidade invocado na decisão recorrida.
Dispõe este preceito que:
«Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter a tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos».
É no âmbito da possibilidade de ponderação de diferentes valores (em especial a liberdade, na perspetiva do arguido, a par porventura de outros, como o direito à vida ou à integridade física) – e correspondentemente, da garantia dos direitos fundamentais, quer do arguido, no âmbito do processo criminal, quer da vítima – no quadro do exercício da competência do juiz de aplicação de uma medida de coação, na sua vertente cautelar, que se poderá entender a referência, pelo juiz “a quo”, ao parâmetro do n.º 5 do artigo 20.º como fundamento da inconstitucionalidade material alegada na decisão recorrida enquanto norma que consagra o princípio da tutela jurisdicional efetiva e em tempo útil contra ameaças ou agressões ao direitos fundamentais. Não impondo todavia aquela disposição a ponderação em causa, nem sendo especificamente destinado à tutela dos direitos fundamentais da vítima no âmbito do processo penal, não se pode concluir que o n.º 2 do artigo 194.º do CPP, na sua redação atual, ofenda o disposto no n.º 5 do artigo 20.º da CRP.
10. Em suma, a solução escolhida pelo legislador infra-constitucional consagrada na norma do n.º 2 do artigo 194.º da CRP, na redação decorrente da reforma do processo penal de 2007, não se afigura contrária à CRP sob a ótica dos parâmetros relevantes analisados – artigos 32.º, n.º 4, 32.º, n.º 5 e 20.º, n.º 5, da CRP – não padecendo de inconstitucionalidade material.
III – DECISÃO
11. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 194.º do Código de Processo Penal na redação resultante da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto e, em consequência,
b) conceder provimento ao recurso, devendo o processo ser devolvido ao tribunal “a quo” para que seja revogado o despacho recorrido e substituído por outro em conformidade.
c) Lisboa, 23 de outubro de 2012.- Maria José Rangel de Mesquita – Maria de Fátima Mata-Mouros – Fernando Vaz Ventura – Maria João Antunes – Joaquim de Sousa Ribeiro.