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Procº nº 692/2002.
3ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Nos autos de inventário instaurados no Tribunal de comarca de Portimão, subsequentemente ao processo de divórcio de A e B, decretado por um tribunal alemão (Tribunal de Família de Erkelenz), a dada altura, veio a citada A deduzir um incidente inominado da instância por intermédio do qual pretendia que se declarasse que 'os interessados na partilha não tinham residência habitual comum à data do casamento, pois o interessado residia na República Federal da Alemanha e a interessada em Portugal', 'que a primeira residência conjugal após o casamento foi estabelecida na República Federal da Alemanha',
'que o interessado marido tinha e tem a nacionalidade alemã', 'que, atendendo às premissas supra referidas quer por aplicação das normas de conflitos vigentes no Direito Português, quer por aplicação das normas das que vigoravam à data da celebração do casamento, a lei aplicável à substância e efeitos do regime de bens é a Lei Alemã' e 'que, segundo a Lei Alemã, o regime de bens aplicável ao casamento dos interessados é o Zugewinngemeinschaft (§ 1363 I e § 1363 II 1 do BGB - Código Civil Alemão), nos termos do qual são próprios os bens adquiridos apenas por um dos cônjuges antes ou na pendência do casamento'.
Tendo, por decisão tomada em 18 de Abril de 2001 pelo Juiz do 2º Juízo do Tribunal de Família e Menores de Portimão, sido declarado que os interessados na partilha não tinham, à sua data, residência habitual comum em Portugal, dado que a requerente da providência residia em Portugal e o requerido na Alemanha, e que este tinha e tem nacionalidade alemã, veio a requerente agravar para o Tribunal da Relação de Évora.
Seguindo os autos de inventário seus trâmites, veio, em 22 de Junho de 2001, a ser proferida sentença homologatória da partilha, da qual apelou A .
Por acórdão de 28 de Fevereiro de 2002, o Tribunal da Relação de
Évora concedeu provimento ao agravo, decidindo que a substância e efeitos do regime de bens eram os definidos pela lei alemã, consequentemente anulando os termos processuais subsequentes à decisão agravada e não tomando conhecimento da apelação.
Do assim decidido agravou para o Supremo Tribunal de Justiça o requerido B que, na alegação adrede produzida, formulou as seguintes
«conclusões»:-
'1.ª A prova produzida em sede de incidente inominado com vista a determinar a lei aplicável à substância e regime de bens entre as ora partes, foi determinada pela falta de nacionalidade comum e de residência habitual à data do casamento das mesmas.
2.ª Resultou provado que a primeira residência conjugal do então casal, foi em Portugal.
3.ª Como a presente situação apresenta conexões com mais de um ordenamento jurídico, a norma de conflitos a aplicar é a do art. 53º, n.º 2 do C.C.
4.ª A norma a aplicar é o art. 53º, n.º 2 do C.C., com a redacção que lhe foi dada pelo D.L. n.º 496/77 de 25 de Novembro, dado que a anterior redacção, à luz dos princípios constitucionais ora vigentes, é materialmente inconstitucional, na medida em que a mesma traduz um tratamento discriminatório entre os cônjuges, o qual foi abolido pela C.R.P. de 1976, por força do seu artigo 36º, n.º 3, pelo que deverá ser mantido o Acórdão recorrido nesta parte decisória.
5.ª Pelo que, no caso sub judice, a redacção do art. 53º, n.º 2 do C.C. a atender é a ora vigente.
6.ª No douto Acórdão recorrido, o Tribunal a quo faz uma incorrecta interpretação e aplicação do conceito de primeira residência conjugal, utilizado no n.º 2, do art. 53º do C.C.
7.ª O conceito de primeira residência conjugal não pode ser preenchido pelo recurso aos mesmos critério que permitem determinar a residência habitual ou domicílio.
8.ª Perante a matéria de facto produzida, no douto Acórdão recorrido, o Tribunal a quo recorre ao critério de estabilidade - correntemente reconhecido pela doutrina e jurisprudência para determinar a existência da residência habitual ou do domicílio, para determinar onde ocorreu a primeira residência conjugal.
9.ª No Acórdão recorrido não é qualificada ou dada qualquer relevância ao facto provado relativo à residência, imediatamente após o casamento do Agravante e da Agravada, durante o período de duas ou três semanas em Portugal.
10.ª O legislador, no n.º 2, do art. 53º do C.C., ao referir-se ao conceito de primeira residência pretendeu referir-se ao local onde chegou a existir comunhão de vida, onde os cônjuges após o casamento tiveram vida como marido e mulher.
11.ª O conceito de primeira residência conjugal, embora não distinga entre residência habitual e residência ocasional, não afasta a relevância desta
última, importando apenas é que tenha existido uma residência.
12.ª O conceito de primeira residência conjugal é objectivo, prescindindo da intenção de permanência ou da sua natureza duradoura.
13.ª A ratio do art. 53º do C.C. é tutelar as expectativas das partes num domínio em que a autonomia da vontade pode intervir.
14.ª O julgador-aplicador da norma, para assegurar a tutela das expectativas das partes, deve aplicar a lei que os nubentes contavam que lhes fosse aplicável em matéria de regime de bens à data do casamento, ou seja, a lei mais estreitamente conexa no momento do casamento.
15.ª À data do casamento a lei que se encontrava mais estreitamente conexa era a lei portuguesa - o casamento foi celebrado em Portugal, entre uma cidadã de nacionalidade portuguesa e um cidadão de nacionalidade alemã, a qual tinha a sua residência habitual em Portugal e após o casamento, os cônjuges viveram como marido e mulher, fazendo comunhão de vida - partilhando cama, mesa e habitação, em Portugal, durante um período de duas a três semanas.
16.ª O ora Agravante e Agravada, ao terem celebrado matrimónio em Portugal, sem terem previamente manifestado a sua vontade quanto ao regime de bens, e por ser esta a lei mais próxima do acto contraído, quiseram-se sujeitar ao regime supletivo do regime da comunhão de adquiridos nos termos em que o mesmo é definido no ordenamento jurídico português - art. 1717º e segs. do C.C.
17.ª A lei materialmente aplicável à substância e os efeitos do regime de bens do Agravante e Agravada é a lei portuguesa'.
Por outro lado, a requerente A, na sua alegação, veio, nos termos do artº 684º-A do Código de Processo Civil, e inter alia, requerer que no recurso de agravo se viesse a conhecer da questão de saber se ao caso se deveria, ou não, aplicar 'à substância e efeitos do regime de bens o disposto no n.º 2 do artº. 53º do C. Civil, com a redacção que lhe foi conferida pelo D.L. 496/77 de
25/11'.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 3 de Outubro de 2002, negou provimento ao agravo, por entender que o regime de bens a que se deveria atender era o estabelecido na lei pessoal do cônjuge marido, por força do estatuído na parte final do nº 2 do artº 53º da redacção originária do Código Civil.
Para tanto, em síntese, aquele Alto Tribunal, raciocinou do seguinte modo:-
- eram duas as questões de direito a resolver, quais fossem as de saber se a norma constante do nº 2 do artº 53º do Código Civil, na redacção resultante do Decreto-Lei nº 496/77, era de aplicação retroactiva e, na hipótese de resposta negativa, se o regime de bens do casal regulado pela lei da primeira residência conjugal, no caso de faltar convenção antenupcial, nacionalidade comum e residência habitual comum à data do casamento, se reportava à primeira residência habitual do casal ou à primeira residência conjugal, ainda que meramente acidental;
- quanto à primeira questão, ponderou que o artº 177º do Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro, e o artº 12º, nº 2, do Código Civil, não levavam a que se considerasse que a norma actual constante do nº 2 do artº 53º deste Código se deveria aplicar 'às situações constituídas no período de vigência da lei pretérita';
- a 'razão de ser desta alteração do disposto no n. 2 do art. 53º visou ‘fazer desaparecer, na escolha das conexões em que assenta a determinação da lei aplicável a relações privadas internacionais, qualquer discriminação entre marido e mulher’';
- a regulamentação constante da nova redacção do nº 2 do artº 53º
'não pode ser considerada interpretativa da anterior e, como tal, de aplicação retroactiva', tratando--se, antes, de uma 'regulamentação inteiramente nova';
- ao caso dos autos seria, assim, aplicável a primitiva norma vertida no artº 53º, nº 2, do Código Civil, correlacionada com o regime de imutabilidade que se extrai da norma do nº 1 do artº 1714º do mesmo corpo de leis, dado que naquela se faz apelo não só ao acto do casamento, ocorrido, na situação em espécie, antes da reforma de 1977, como a outros factos que se verificaram na vigência da lei pretérita, como sejam os de os nubentes não terem a mesma nacionalidade e de não terem em Portugal a sua residência habitual comum, razão pela qual haveria que atender ao que se consagra na parte final daquele nº 2 do artº 53º, de entre o mais porque 'a norma de conflitos que regula qual o regime de bens de um casamento entre nubentes de nacionalidades diferentes destina-se a funcionar uma única vez. Logo que, por aplicação da respectiva norma de conflitos (...) se fixou qual o regime de bens do casal ou a legislação nacional (seja portuguesa ou estrangeira) que regula a determinação e o conteúdo de tal regime, a norma de conflitos portuguesa terminou a sua função, porque de outra forma estava-se a ir contra o princípio da imutabilidade do regime de bens desse casamento';
- mesmo tendo em conta a «válvula de segurança» constante do artº
22º do Código Civil, 'não se vê que da aplicação da norma primitiva do n. 2 do art. 53º, apontando para a lei alemã para regular o regime de bens do casal, resulte em concreto qualquer violação dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico português', ou se mostre em concreta colisão com alguma norma que faça parte da ordem pública internacional portuguesa, parecendo, por outro lado, 'que da aplicação da nova norma do n.2 do mesmo art. 53º isso já possa resultar. De facto, talvez possa considerar-se como princípio fundamental do direito de família português a imutabilidade do regime de bens do casamento. Além disso, é, particularmente, nítido que a norma nova do n. 2 do art. 53º do Cód. Civil, poderia levar também à aplicação da mesma lei para regulamentar o regime de bens do casamento, tudo dependendo do facto ‘primeira residência do casal’, que poderia ter lugar em Portugal, na Alemanha ou em qualquer outro país'.
- em face da resposta dada a esta primeira questão, desnecessário seria entrar na apreciação da segunda.
É deste acórdão que, pelo agravante B vem, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, interposto recurso para o Tribunal Constitucional, recurso esse admitido por despacho proferido em 28 de Outubro de 2002 pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça.
Convidado o ora recorrente a explicitar com precisão qual a dimensão interpretativa e concreto segmento normativo ínsito no preceito do nº 2 do artº
53º da versão originária do Código Civil que desejava que viessem a ser apreciados por este Tribunal, veio o mesmo dizer que pretendia ver apreciado o segmento normativo vertido naquele preceito que 'manda aplicar à definição da substância e efeitos das convenções antenupciais e do regime matrimonial de bens, no âmbito do direito internacional privado, a lei pessoal do marido',
'quando os cônjuges não têm a mesma nacionalidade e não resid[ ]em no mesmo país
à data do casamento'.
2. Determinada a feitura de alegações, fixando-se o objecto do recurso como abarcando a norma constante do nº 2 do artº 53º da versão originária do Código Civil na dimensão interpretativa segundo a qual - na parte em que se determina que à substância e efeitos do regime legal de bens é aplicável a lei pessoal do marido à data da casamento, no caso dos nubentes não terem a mesma nacionalidade nem a mesma residência habitual comum àquela data -
é de atender a essa prescrição para determinação do regime de bens de um casamento dissolvido após a entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa, rematou o recorrente a por si formulada com as seguintes
«conclusões»:-
'1.ª - Têm os presentes autos de recurso por objecto a apreciação do segmento normativo do n.º 2 do art. 53º do C.C. na redacção anterior [à] que lhe foi introduzida pelo D.L. 496/77 de 25 de Novembro, para determinação da lei que regula a substância do regime de bens de um casamento dissolvido posteriormente
à entrada em vigor da C.R.P. de 1976.
2.ª - A situação concreta dos presentes autos, e, que ora se coloca, consubstancia-se na celebração de um matrimónio, em Portugal, na data de
28/08/1972 - anteriormente à C.R.P. ora em vigor, entre um cidadão de nacionalidade alemã e uma cidadã de nacionalidade portuguesa, sem prévia estipulação de convenção antenupcial e inexistindo uma residência habitual comum
à data do casamento.
3.ª - O matrimónio foi dissolvido na Alemanha e a sentença foi confirmada e revista pelo Tribunal da Relação de Lisboa, como data de 21/04/1988.
4.ª - À presente data, mediante acção de inventário facultativo subsequente ao divórcio, encontra-se pendente a partilha dos bens entre os ex-cônjuges.
5.ª - Sendo a presente situação concreta do domínio da[s] relações privadas internacionais, porque conectada com vários ordenamentos jurídicos, importa determinar qual a lei que regula a substância e o regime de bens segundo o qual os ex-cônjuges se encontravam consorciados.
6.ª - Dado que a questão concreta se coloca perante o ordenamento jurídico português, é ao conjunto das normas de conflitos do presente foro que há que recorrer.
7.ª - A norma aplicável é a do art. 53º, n.º 2 do C.C.
8.ª - O preenchimento do seu conceito-quadro, reportando-se à data em que foi contraído o casamento - imobilização da conexão relevante -, tem por função dizer-nos quais os limites espácio-temporais da lex temporis fori, ou seja, do ordenamento vigente e no momento em que a questão é apreciada.
9.ª - Ainda que a situação jurídica - celebração do matrimónio - se tenha constituído à luz da primitiva versão do n.º 2, do art. 53º do C.C. e à luz dos princípios conformadores da Constituição de 1933, a resolução concreta da mesma coloca-se já depois da entrada em vigor da Constituição de 1976, e também da alteração do Código Civil efectuada pelo D.L. n.º 476/77 de 25 de Novembro.
10.ª - Com a entrada em vigor da C.R.P. de 1976, e a consagração de uma nova ordem constitucional conformadora do Estado de Direito Democrático, em sede de direitos, liberdades e garantias, houve que adaptar o Código Civil à Constituição.
11.ª - Um dos princípios que foi acolhido pela Constituição da República Portuguesa de 1976 em matéria de direitos fundamentais foi o princípio da igualdade entre os cônjuges (art. 13º, n.º 2 e 36º, n.º 3 da C.R.P.), o qual passou a integrar o quadro dos valores jurídico-materiais ancorados na Lei Fundamental do Estado.
12.ª - O D.L. 496/77 de 25 de Novembro, veio, assim introduzir grandes modificações em sede de direitos, liberdades e garantias, nomeadamente quanto à eliminação da discriminação em razão do sexo no que respeita aos direitos e deveres conjugais.
13.ª - Razão pela qual, no n.º 2 do art. 53º do C.C. se substituiu o estatuto pessoal do marido pela lei da primeira residência conjugal, assim, se revogando expressamente o primitivo segmento normativo, tendo-se, todavia, mantido inalterável a imobilização da conexão - data da celebração do casamento.
14.ª - A situação concreta - definição da lei aplicável à definição e substância do regime de bens encontra-se actualmente pendente de definição.
15.ª - O julgador-aplicador do Direito, colocado perante a situação concreta actual que tem de resolver, não pode aplicar uma norma que se encontra expressamente revogada e, que mesmo que não tivesse sido revogada, estava caduca por força da inconstitucionalidade material superveniente de que passou a estar ferida, nos termos do art. 290º e 36º, n.º 3 da C.R.P., em virtude da consagração do princípio constitucional da igualdade entre os cônjuges.
16.ª - A qualificação das normas de conflito é uma questão de subsumibilidade de um quid concreto a um conceito utilizado por uma norma e qualificar um quid é determiná-lo como subsumível a um conceito, por aplicação desse mesmo conceito, sendo uma questão que se coloca no momento da aplicação da norma jurídica.
17.ª - É actualmente que a norma está a ser aplicada, ainda que o preenchimento do seu conceito-quadro se reporte á data em que foi contraído o casamento.
18.ª - O segmento normativo da norma de conflitos do n.º 2 do art. 53º do C.C. a atender é o que foi introduzido pelo D.L. n.º 496/77 de 25 de Novembro.
19.ª - Está em causa, na decisão de que ora se recorre, a aplicação de uma norma
- cuja constitucionalidade ou inconstitucionalidade é aferida pelo parâmetro constitucional actualmente vigente, e é neste momento de aplicação da norma que se afere a sua conformidade com a Constituição.
20.ª - O princípio da igualdade entre os cônjuges integra o quadro dos valores jurídico-materiais ancorados na Lei Fundamental do Estado Português, fazendo parte da sua ‘ordem pública constitucional’.
21.ª - A aplicação, neste momento, a uma situação que se encontra em aberto, do segmento normativo do art. 53º, n.º 2 do C.C., ora vigente, que substitui o estatuto pessoal do marido pelo critério da primeira residência conjugal resulta de uma imposição constitucional.
22.ª - Imposição esta resultante do art. 18º da C.R.P. de 1976.
2[3].ª - Imposição que não colide com os princípios estruturantes da ordem pública portuguesa, e, nomeadamente, no que toca ao regime de bens, com o princípio da imutabilidade deste, consagrado no art. 1714º, n.º 1 do C.C.
2[4].ª - A norma de conflitos do art. 53º do C.C. ao fixar o elemento de conexão no tempo - referido ao momento do casamento, impede a sucessão de estatutos nesta matéria, procurando assegurar o respeito das expectativas que as partes poderiam ter ao celebrar o casamento, de acordo com a vontade que teriam expressa ou tacitamente manifestado.
2[5].ª - É materialmente inconstitucional o segmento normativo da norma vertida no art. 53º, n.º 2 do C.C., na versão anterior à redacção que lhe foi introduzida pelo D.L. n.º 496/77 de 25 de Novembro, por violar frontalmente os art. 13º, nº 2 e 36º, n.º 3 da Lei Fundamental - normas que incorporam um dos valores axiais do ordenamento jurídico português consubstanciado no princípio da igualdade entre os cônjuges.
2[6].ª - O art. 53º, n.º [1] do C.C. na versão anterior à redacção que lhe foi introduzida pelo D.L. n.º 496/77 de 25 de Novembro, viola o princípio da igualdade entre marido e mulher, o qual faz parte da ordem pública constitucional, estando, assim, a referida norma ferida de inconstitucionalidade material, que pode e deve ser declarada'.
Por seu turno, a recorrida concluiu a sua alegação propugnando pelo improvimento do recurso.
Cumpre decidir.
3. Na sua redacção originária, dispunha-se no nº 2 do seu artº 53º que, não tendo os nubentes a mesma nacionalidade, era aplicável a lei da sua residência habitual comum à data do casamento e, se esta faltasse também, a lei pessoal do marido na mesma data.
No caso de que emergem os presentes autos, foi dado como assente que o ora recorrente, de nacionalidade alemã, e a recorrida, de nacionalidade portuguesa, contraíram matrimónio um com a outra, em Portugal e sem estipulação de convenção antenupcial, em 28 de Agosto de 1972, tendo o primeiro, àquela data, residência habitual na Alemanha e a segunda em Portugal, vindo ambos a viver neste País apenas duas ou três semanas - e, 'como não fosse intenção do casal ficar definitivamente em Portugal, findas essas duas ou três semanas, foram viver para a Alemanha , onde ainda viviam aquando do divórcio' -, ocorrendo a dissolução do casamento, por sentença, que decretou o divórcio, proferida em 6 de Fevereiro de 1987 pelo Tribunal de Família de Erklenz, República Federal da Alemanha, revista e confirmada por acórdão lavrado pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 21 de Abril de 1988.
Neste contexto fáctico, o Supremo Tribunal de Justiça, concluiu que ao casamento sub iudicio - atentas as circunstâncias da data em que o mesmo foi celebrado e de que o regime de bens a que o mesmo deveria obedecer se fixava na data da sua celebração, tornando-se o mesmo imutável, ex vi do nº 1 do artº
1714º do Código Civil - era aplicável a lei pessoal que a norma de conflitos constante da parte final do nº 2 do artº 53º da versão originária daquele corpo de leis consagrava.
4. Se bem se entende o posicionamento do recorrente, quiçá do mesmo se pode extrair que, não obstante, aquando da celebração do matrimónio, à respectiva substância e aos respectivos efeitos se tivesse aplicado, por força da norma de conflitos surpreendida na primitiva redacção do nº 2 do artº 53º do Código Civil, a posterior vigência da Constituição de 1976 imporia a revogação dessa norma e, consequentemente, seriam de aplicar àqueles regime e substância a nova redacção dada à dita norma pelo Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro.
Vejamos.
Como assinalou Ferrer Correia (A Revisão do Código Civil e o Direito Internacional Privado, conferência proferida na sessão inaugural dos Trabalhos Judiciais ocorrida em 18 de Janeiro de 1979, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 283, 17 e segs. e Estudos Vários de Direito, Coimbra, 1982, 279 e segs.), muito embora as normas de conflito, na sua óptica, não sejam regras técnicas axiologicamente neutrais, ou seja, 'regras que não tenham o sentido de servir a justiça', o que é certo é que 'a justiça que servem - dir-se-á - é de cunho eminentemente formal, nela predominando o ingrediente da certeza e da estabilidade jurídica'.
E, continua-se naquela obra:-
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O direito internacional privado propõe-se como escopo precípuo promover e garantir a estabilidade e continuidade das situações interindividuais plurilocalizadas (i.e., conectadas com duas ou mais legislações), assegurar a livre circulação por sobre as fronteiras dos Estados dos direitos delas decorrentes. As suas normas - como o proclamava David Cavers em 1933, num breve estudo que hoje é um clássico na literatura sobre os conflitos de leis - operam a escolha do direito aplicável por assim dizer de olhos vendados, fazendo abstracção completa do conteúdo da lei a que submetem as situações multinacionais. Não é seu intento confiar o caso à melhor lei, a mais adequada à sua especificidade, senão à que mais próxima estiver da situação concreta.
...............................................................................................................................................................................................................................................................'
O autor que se vem citando, após aquele discretear, assinala que, quanto à questão de saber como podem as normas de direito internacional privado ser valoradas segundo a perspectiva da Constituição, designadamente a possibilidade de elas infringirem os direitos fundamentais dos cidadãos, sustenta que deve afastar-se, desde logo, em face da concepção actual do direito internacional privado, aqueloutra, clássica, de harmonia com a qual tal direito era um direito exclusivamente formal, 'indiferente ao conteúdo das normas substanciais concorrentes e aos critérios e valores da justiça material'.
Também Moura Ramos (Direito Internacional Privado e Constituição, 3ª Reimpressão, Coimbra, 1994, 171 e seguintes, maxime, 194 e seguintes) perfilha a ideia segundo a qual seria de afastar a doutrina clássica da indiferença da constituição perante o direito internacional privado e, consequentemente, da não legitimidade do juiz do foro negar em toda e qualquer circunstância a aplicação do direito estrangeiro com base na contradição desse direito com a sua lei básica, consagradora de direitos fundamentais «das gentes».
5. Não se nega que, com a revisão do Código Civil operada pelo Decreto-Lei nº 496/77, se teve como escopo expurgar, do catálogo das conexões que se surpreendiam nos artigos 14 e seguintes da sua versão originária, a normação da qual resultasse, e no que ora nos interessa, uma discriminação entre marido e mulher, em termos de, como diz Ferrer Correia (Estudos cit., 281),
'resultar daí privilégio ou benefício para uma parte e prejuízo ou privação dalgum direito para outra', pois, nessa 'hipótese, deixava ... de atender-se ao interesse da mulher na aplicação do seu próprio estatuto pessoal - para se resolver o diferendo pela aplicação do estatuto pessoal do marido. Preferência tanto menos justificada quanto é certo que por esse modo se possibilitava ao marido o alterar em pontos relevantes a situação jurídica da mulher, através de uma mudança de nacionalidade ou até (em certos casos) de domicílio; e isto, claro está, sem reciprocidade. Havia, portanto, privilégio, para uma das partes e prejuízo para a outra'.
A questão que se coloca, porém, situa-se, in casu, com outros contornos.
De facto, o casamento celebrado entre o ora recorrente e a recorrida foi celebrado antes da vigência da Constituição de 1976, numa ocasião, portanto, em que a lei fundamental do Estado Português estava plasmada na Constituição Política de 1933, a qual não continha preceito ou princípio do qual decorresse a igualdade em termos semelhantes aos decorrentes do nº 2 do artigo 18º e do artigo 36º, este como aquele da Constituição de 1976.
A norma ínsita no nº 2 do artº 53º do Código Civil, ao estabelecer a remissão, no passo ora relevante, para a lei pessoal do marido, não se revelaria, assim, como ofensiva de qualquer preceito ou princípio constante de um catálogo dos direitos fundamentais dos indivíduos vertidos na Constituição de
1933.
Coloque-se aqui um parêntesis para vincar que é evidente que, na figuração desta asserção, não estaria em causa saber se um eventual princípio da igualdade entre cônjuges, que porventura decorresse da pretérita lei fundamental, obstava a que pudesse ser estabelecida uma regra de conexão de onde resultasse a aplicabilidade da lei pessoal do marido ou da lei pessoal da mulher, por isso que a aferição da compatibilidade do direito ordinário com a lei fundamental vigente antes da Constituição da República Portuguesa de 1976 é questão que se não insere na competência deste Tribunal; o que releva, isso sim,
é, a perfilhar-se um entendimento que não repouse na clássica perspectivação do direito internacional privado como devendo ser imune à constituição da lei do estado do foro (ou, se se quiser, mover-se fora do espaço constitucional do foro), saber se a própria norma estabelecedora da regulação do conflito de leis adopta um critério privilegiador de um estatuto pessoal em detrimento de outro, sem que, para tanto, haja razões, motivos ou conveniências justificáveis (e, logo, não arbitrárias) que ditem essa adopção, tendo como enfoque a superveniência de nova lei fundamental .
Simplesmente, isto posto, haverá que não passar em claro que a substância e o regime do casamento, são, desde logo, regulados pelo ordenamento que resulta da conexão ditada pela norma de conflitos.
Na situação sub specie não se coloca, desta sorte, a questão de saber se o ordenamento para o qual foi remetida a regulação do regime de bens é, ele mesmo, composto por normas que ofendam os direitos fundamentais dos indivíduos, visualizados estes na óptica do vigente ordenamento constitucional português.
O que está em análise é, pois, saber se a superveniência da Constituição de 1976 tem a virtualidade de se projectar sobre uma norma de conflitos pretérita que operou desde logo os seus efeitos, dada a ocorrência do facto casamento, muito embora com aplicação a situações que se conectem com a relação jurídica que visou regular.
5.1. Ferrer Correia, nos já citados Estudos (296, 297) , vinca que
'para os preceitos constitucionais (...) não pode deixar de pôr-se aquele mesmo problema que se levanta para as disposições das leis ordinárias e que é o problema da sua esfera de aplicação temporal e espacial'. E, neste particular, pode ler-se:-
'........................................................................................................................................................................................................................................................................................
.......................Problema que tem a ver com a própria essência da norma jurídica como norma de conduta (regula agendi). Como regra de dever-ser, como norma reguladora de comportamentos humanos - que ora pretende incentivar ora coibir e em qualquer caso condicionar - a regra de direito não é segundo a sua natureza aplicável a condutas que lhe sejam estranhas, que se situem fora da sua esfera de eficácia (quer em razão do tempo em que ocorreram, quer em razão do que chamarei a sua localização espacial) e cujos agentes nenhuma possibilidade ou razão tiveram para por ela se deixarem determinar. Certo que, assim como há leis aplicáveis a factos pretéritos (leis retroactivas), assim também poderá haver preceitos que pretendam aplicar-se a todas e quaisquer situações da vida, mesmo as que se não encontrem conectadas com o respectivo ordenamento jurídico por alguns dos modos admitidos em direito internacional privado. Só que em tal sentido deverá pesar então algum motivo de interesse público excepcionalmente ponderoso, ou algum imperativo de universal justiça.
Em regra, a aplicação de uma lei a uma situação factual determinada pressupõe a existência entre ambas de algum nexo, de algum ponto de contacto apreciável, ou seja em razão dos próprios factos, da coisa, ou das pessoas.
8. Esta doutrina - segundo a qual a regra de direito postula a existência de uma determinada conexão espacial com o respectivo ordenamento jurídico - não deixa de valer, como se disse, pelo facto de estarem em causa preceitos que dispõem sobre direitos fundamentais dos indivíduos.
De resto, já o Supremo Tribunal de Justiça teve ensejo de tomar posição no problema pelo que toca ao aspecto da conexão temporal: foi no Acórdão de 26 de Outubro de 1976, onde expressamente se afirma que as normas constitucionais - a que estava em causa era exactamente a que proíbe toda a discriminação em prejuízo dos filhos nascidos fora do casamento - não tem qualquer vocação de retroactividade.
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Poderá, aliás - na medida em que se admita a aplicação analógica à norma de conflitos de normas especiais de direito transitório aplicáveis apenas a normas materiais -, sustentar-se que o artº 15º do Decreto-Lei nº 47344, de 25 de Novembro de 1966 (que aprovou o Código Civil), ao prescrever que os preceitos atinentes aos regimes de bens estabelecidos nesse corpo de leis só são aplicáveis aos casamentos celebrados até à entrada em vigor daquele Código (mais propriamente os celebrados até 31 de Maio de 1967), na medida em que forem considerados como interpretativos do direito vigente, conjugadamente com a circunstância de a norma do nº 2 do artº 53º - ora questionada -, ainda do mesmo Código, se reportar a um facto concreto, qual seja o da data do casamento, e de se estabelecer no nº 1 do artº 1714º a regra da não alterabilidade, após a celebração do casamento, do regime de bens legalmente fixado, apontará no sentido de os normativos solucionadores dos conflitos de leis no que tange ao regime de bens do casamento não terem eficácia retroactiva.
6. É evidente que, a concluir-se que à nova redacção dada ao nº 2 do artº 53º do Código Civil não deve ser conferida eficácia retroactiva, nem por isso e por aí a questão de constitucionalidade ficaria solucionada.
Sublinha-se, uma vez mais, que não está em causa saber se o ordenamento para o qual remeteu a norma de conflitos em apreço contém normação que ofenda interesses públicos excepcionalmente ponderosos; antes está em crise a apreciação da própria norma de conflitos de leis (que teve, ao tempo da sua emissão, por escopo regular esse conflito, regulando-o, porventura sem ofender a Constituição que então imperava) e, assim, saber se, ela mesma, em face da superveniência de uma nova lei fundamental, e porque a opção nela assumida se posta como desconforme com esta (em face da adopção de um critério privilegiador de um estatuto pessoal em detrimento de outro, em contrário de um princípio constante da nova Constituição), pode, posteriormente à aludida nova lei fundamental, ser recusada aplicar perante aquela desconformidade.
Neste contexto, tudo redunda numa questão de aplicação da lei no tempo, questão que, mesmo tendo como parâmetro normas de direito internacional privado, não se postará de modo substancialmente diverso da atinente a normas reguladoras de outros ramos do direito (cfr., sobre o problema, Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Volume I, 313 a 318).
Como atrás já se aflorou, a norma de conflitos em causa operou o respectivo comando ao tempo da celebração do casamento, estabelecendo, pois, que ao respectivo regime de bens era aplicável a lei pessoal do marido, não se podendo, pois, dizer, como parece resultar da postura do ora recorrente, que a aplicação daquele normativo só ocorre aquando da decisão a tomar sobre a partilha dos bens do casal que se visa efectuar nos autos de inventário em presença.
De acordo com o disposto no nº 1 do artº 1714º do Código Civil, fora dos casos previstos na lei, não é permitido alterar, depois da celebração do casamento, o regime legal de bens legalmente fixado (cfr., sobre a razão de ser desta não alterabilidade, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado,
4ºvolume, 397, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, volume I, 2ª edição, 493 e segs. e Maria Rita Aranha da Gama Lobo Xavier, Os limites à autonomia privada na disciplina das relações patrimoniais entre os cônjuges, 2000, 177).
O esgotamento dos efeitos da norma em análise - obviamente entendida esta frase no sentido da definição de qual o regime de bens aplicável ao contrato consorcial em presença - ocorreu, desta arte, num tempo em que ainda se não encontrava em vigor a Constituição de 1976, sendo que a repercussão dessa definição - na estratificação do regime de bens previsto na lei pessoal do marido - não é aqui, como resulta do que acima se veio de dizer, questão que agora se possa apreciar.
Não se pode, assim, defender a aplicação de normas ou princípios vertidos na Lei Fundamental de 1976 a um preceito cujo resultado (o da escolha da lei que, em face do conflito de ordenamentos em presença, haverá de reger o regime de bens do casamento) se esgotou num domínio temporal já transcorrido e no qual aquela Lei ainda não pautava o ordenamento jurídico nacional.
Como refere Luís de Lima Pinheiro (ob. e volume citados, 317 e
318):-
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A aplicação às normas de conflitos de normas especiais de Direito transitório que se reportam apenas a normas materiais tem de se fundamentar em analogia.
Importa não esquecer que visando a norma de conflitos a regulação das situações transnacionais é sempre relativamente à efectiva sucessão dos sistemas materiais aplicáveis que em última análise têm de colocar-se os problemas da sucessão no tempo das normas de conflitos.
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A esta solução não obsta a inconstitucionalidade superveniente da norma de conflitos contida no art. 1107.º do Código de Seabra, por utilizar como elemento de conexão a nacionalidade do marido.
A lei fundamental não obriga a uma revaloração de todas as situações já constituídas.
Por um lado, porque as normas constitucionais conhecem limites temporais de aplicação. A menos que os comandos da lei fundamental reclamem aplicação retroactiva, o que, em princípio, não se verifica, não há que estender o império da lei fundamental a factos passados. O casamento sem convenção antenupcial que desencadeou a fixação do regime de bens ao abrigo da norma de conflitos antiga é um facto passado.
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7. Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa, 14 de Fevereiro de 2003 Bravo Serra Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida