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Processo n.º 520/12
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos Autos, reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 76.º e do n.º 1 do artigo 77.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), dos despachos que indeferiram o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça em 17 de maio de 2012 e 24 de maio de 2012.
2. O ora reclamante foi condenado, pela 2.ª Secção da Vara Mista de Coimbra, em Acórdão de 15 de julho de 2011, em pena de 8 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes. Inconformado, interpôs desta decisão recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, em cujas conclusões sustentou o seguinte:
«(...)
2 – O tribunal deveria ter verificado a aptidão mental da testemunha B., para avaliar da sua credibilidade.
3 – Como não o fez, tal testemunho não deveria assim ter sido considerado.
4 – Impugna-se a matéria de facto dada como assente e que se fundamenta no depoimento da testemunha B., conjugada com o relatório policial junto e depoimento da testemunha C..
5 – A douta sentença não procedeu ao exame crítico das provas.
(...)
13 – A interpretação dada ao artigo 131.º n.º 2 do CPP, pelo douto tribunal é inconstitucional por violar os artigos 32.º e 205.º nº 1 da CRP.
(...)»
Além deste recurso, o ora reclamante interpôs igualmente recurso interlocutório do despacho do tribunal de 1.ª instância que indeferiu o pedido de submissão a exame médico da testemunha B., recurso esse que assumiu o seguinte teor:
«(...)
A testemunha B. no decurso do seu depoimento reconheceu que “não ando bem da cabeça”.
Acresce que nos documentos junto aos Autos a testemunha justificou as suas faltas sucessivas às sessões de julgamentos com atestados médicos, sendo emitido pelos serviços de psiquiatria.
Estão reunidas todas as condições para o douto tribunal se questionar de forma séria sobre a capacidade mental da testemunha para depor.
Em nosso entender e deixámo-lo consignado em ata a testemunha deveria ter sido de imediato submetida a um exame médico.
Andou assim mal o meritíssimo juiz a quo, ao prosseguir a inquirição da testemunha sem proceder a realização do exame.
Nestes termos e demais de direito deverá o presente recurso obter provimento a revogar-se o douto despacho, sendo substituído por um outro que decrete a submissão a exame médico testemunha B., para avaliar da sua capacidade mental.
(...)»
Ora, face a este arrazoado, decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra, em Acórdão de 20 de dezembro de 2011, manter na íntegra o teor do Acórdão recorrido, negando provimento aos recursos interpostos pelo agora reclamante. Considerou aquele Tribunal, com efeito, que não “foi feita uma interpretação inconstitucional do artigo 131.º, n.º 2, do CPP”, visto que no caso vertente o “tribunal não viu necessidade de verificar a aptidão física e mental do B. para prestar testemunho, por lhe merecer credibilidade a sua versão dos acontecimentos, apenas tendo concluído que estava perante um homem temeroso do que lhe poderia vir a acontecer, caso falasse contra os arguidos.”
De seguida, veio o reclamante interpor recurso, junto do Supremo Tribunal de Justiça, do Acórdão do Tribunal da Relação mencionado supra, reiterando, nas conclusões do respetivo requerimento, que a “interpretação dada ao artigo 131.º, n.º 2 do CPP, pelo douto tribunal, é inconstitucional por violar os artigos 32.º, n.ºs 1 e 8, 34.º, n.ºs 1 e 4, ex vi artigos 18.º e 205.º, n.º 1, da CRP” (v. folha 101).
O Supremo Tribunal de Justiça, em decisão sumária tirada em 27 de abril de 2011, considerou o seguinte:
«(...)
O acórdão da Relação, relativamente ao arguido A., decidiu, como se viu, dois recursos: um interposto do despacho que, na audiência de julgamento, indeferiu o pedido de sujeição de uma testemunha a exame médico com vista a avaliar o seu estado mental; o outro interposto do acórdão do tribunal de 1.ª instância que o condenou nos termos referidos. E negou provimento a ambos.
No recurso para este Supremo Tribunal, o arguido impugna essas duas decisões contidas no acórdão da Relação.
(...)
Em face do exposto, decide-se rejeitar o recurso, por inadmissibilidade, enquanto visa a parte da decisão recorrida que julgou o recurso interposto do despacho que recusou a sujeição de uma testemunha a exame médico, e por manifesta improcedência, enquanto visa a parte do acórdão recorrido que manteve a condenação do recorrente.
(...)»
Na sequência desta decisão sumária, o reclamante interpôs, junto do Supremo Tribunal de Justiça, recurso para o Tribunal Constitucional, incidente sobre “questões de inconstitucionalidade suscitada nos autos, tudo nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 70.º e 71.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro.” Competente para apreciar a admissibilidade deste recurso, nos termos do artigo 76.º, n.º 1, da LTC, o Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça indeferiu o requerimento apresentado por considerar que ainda não estavam esgotados os recursos ordinários admitidos pela lei processual aplicável, em despacho com o seguinte teor:
«(...)
A decisão de que se pretende recorrer não é um acórdão, mas sim uma decisão sumária, proferida ao abrigo do disposto no artigo 417.º, n.º 6, alínea b), do CPP.
Essa decisão pode ser impugnada mediante reclamação para a conferência, nos termos do n.º 8 do mesmo preceito.
Por essa razão, em conformidade com o disposto no artigo 70.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, o recurso para o Tribunal Constitucional não é admissível.
(...)»
Seguiu-se, da parte do reclamante, um segundo recurso para o Tribunal Constitucional, novamente interposto junto do Supremo Tribunal de Justiça (v. folha 115), e novamente por este indeferido, em despacho com data de 24 de maio de 2012, e com a seguinte redacção:
«(...)
Requerimento de fls. 1080
O recurso para o TC não foi admitido pelo despacho de fls. 1077.
Esse despacho só pode ser posto em causa por meio de reclamação para o Tribunal Constitucional – art. 76.º, n. 4, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
O requerimento em análise não se situa nesse contexto. Por isso, indefere-se.
Notifique.
(...)»
Em 30 de maio de 2012, deu entrada novo requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, ao qual se seguiu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, exarado em 14 de Junho de 2012. Aí decidiu o Tribunal o seguinte:
«(...)
A atitude do arguido de interpor de novo recurso para o Tribunal Constitucional “da questão de inconstitucionalidade suscitada nos autos”, quando já está decidido que esse recurso não é admissível, não lançando mão do meio próprio para reagir contra essa decisão, que lhe foi indicado, leva a concluir que este seu comportamento processual só pode ter um objectivo: retardar o trânsito em julgado da decisão que o condenou a 8 anos e 6 meses de prisão.
(...)
Assim, nos termos do disposto no artº 720º, nº 1, 2, 3 e 5, do CPC, aplicável por força do disposto no artº 4º do CPP, considerando-se manifestamente infundado o incidente suscitado com a apresentação do requerimento de 29/05/2012, determina-se:
A extracção de traslado, para ficar no Supremo Tribunal de Justiça, da decisão condenatória do tribunal de 1.ª instância, do requerimento de interposição de recurso para a Relação, do acórdão da Relação, do requerimento de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, da decisão sumária do relator de 26/04/2012e de todo o processado subsequentemente, no qual só será proferida qualquer decisão depois de, contadas as custas a final, o requerente as ter pago; e
Logo de seguida, a remessa do processo ao tribunal recorrido, com vista à execução da decisão condenatória.
(...)»
Finalmente, o reclamante apresentou, junto do Tribunal Constitucional, e de acordo com o preceituado no n.º 4 do artigo 76.º, da LTC, a seguinte reclamação:
«(...)
A., arguido nos autos à margem referenciados, tendo sido notificado da douta decisão que recusou a admissão de recurso de (in)constitucionalidade, vem daquela decisão reclamar para V. Exa., nos termos e com os seguintes fundamentos:
O arguido interpôs recurso para o STJ de acórdão proferido pelo tribunal da Relação de Coimbra.
Nos presentes autos, entre outras, foi colocada à apreciação do tribunal de primeira instância a seguinte questão de (in)constitucionalidade:
“DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DADA AO ARTIGO 131.º N.º 2 DO CÓDIGO PENAL PELO DOUTO TRIBUNAL”
“Transcrevemos o artigo 131.º n.º 2 do Código de Processo Penal:
A autoridade judiciária verifica a aptidão física ou mental de qualquer pessoa para prestar testemunho, quando isso for necessário para avaliar da sua credibilidade e puder ser feito sem retardamento da marcha normal do processo.
Levantado este incidente, pela própria testemunha, quando afirma “não ando bem da cabeça”, e tendo sido requerido pelo arguido um exame para aferir da sua capacidade para depor, por despacho, o tribunal entendeu que nada lhe permitia questionar a aptidão mental da testemunha (para prestar testemunho) e indeferindo o requerido.”
“Em nosso modesto entender, esta interpretação do artigo 131.º n.º 2 é inconstitucional por violar o disposto no artigo 32.º da CRP, no que tange às garantias de defesa do arguido: o tribunal está vinculado a verificar a aptidão mental de qualquer testemunha para prestar depoimento, por ser necessário avaliar da sua credibilidade.”
“Perante a afirmação de B., o tribunal estava obrigado a mandar verificar a aptidão mental da testemunha, porque poderia ser feita a perícia sem retardamento da marcha normal do processo, até porque o tribunal já tinha marcado novas sessões de julgamento, por motivos menos ponderosos, por exemplo, a falta desta mesma testemunha B., no dia 13 de junho de 2011.”
“Ao proferir despacho no sentido de não mandar avaliar a capacidade psíquica do depoente o tribunal a quo, na interpretação do art. 131.º/2 CPP, que mobilizou para a solução do caso, tornou esta norma infratora do art. 32.º da CRP, fragilizando as garantias de defesa do arguido, fazendo uma leitura normativa errónea da disposição da lei, que lhe impunha caminho diverso...”
Pretende que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre esta questão, por ser essencial à justiça do caso, razão pela qual interpôs, aliás, este recurso de (in)constitucionalidade, não recebido.
Entende, porém, o Venerando STJ que não cabe recurso da decisão, mas reclamação, e nesta encruzilhada jurídica, privou o arguido da realização de um estado de direito realizado, e da justiça.
Sendo o Tribunal Constitucional o garante do cumprimento da Constituição e das leis conformes, pretende, o reclamante, com a presente, que seja admitido e apreciado o recurso acima referido, para o qual, no tempo oportuno será apresentada motivação própria.
(...)»
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público respondeu à reclamação, pugnando pelo seu indeferimento.
II. Fundamentação
4. Apesar de o reclamante não esclarecer devidamente, em nenhum dos requerimentos de recurso para o Tribunal Constitucional apresentados, ao abrigo de que alínea do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, pretendeu recorrer, decorre do arrazoado formulado que se tratou de um recurso interposto ao abrigo do n.º 1, alínea b), daquele preceito, o qual, recorde-se, dispõe que “cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo;”
Ora, mesmo estando em causa uma reclamação apresentada nos termos do artigo 76.º, n.º 4, da LTC, não deve o Tribunal Constitucional limitar-se à apreciação do fundamento de rejeição do recurso de constitucionalidade considerado pelo tribunal recorrido, cabendo-lhe pronunciar-se igualmente sobre a verificação dos demais pressupostos de admissibilidade do recurso (cfr., neste sentido, o Acórdão n.º 276/88, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Assim, para que o presente recurso entre nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional deve o recorrente requerer a reapreciação de uma questão de inconstitucionalidade, tempestiva e adequadamente suscitada perante o tribunal a quo, referente a normas jurídicas ou interpretações normativas de que este haja feito efetiva aplicação, entenda-se, que hajam constituído efetivo fundamento jurídico da resolução da questão principal.
De facto, o recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, está dependente – como sempre decorreria da natureza instrumental do processo de fiscalização concreta – da circunstância de a norma (ou interpretação normativa a partir dela destacada) cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo ter tido efetiva aplicação na resolução do processo base. Na verdade, isto só sucede quando a norma ou segmento normativo (explícita ou implicitamente) desaplicado houver sido ratio decidendi da decisão recorrida, leia-se, quando haja sido o fundamento ou o suporte jurídico determinante de tal decisão (v., por exemplo, os Acórdãos n.º 187/95, 120/92 e 376/00, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Exige-se ainda o esgotamento dos recursos ordinários que, in casu, fossem de admitir, devendo um tal requisito ser compreendido nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 70.º, da LTC. Os preceitos mencionados assumem um conceito amplo de recurso ordinário, que há-de incluir também as reclamações para os presidentes dos tribunais superiores, os despachos de não admissão ou de retenção de recurso, as reclamações dos despachos dos juízes relatores para a conferência e ainda as reclamações dos despachos de não admissão do recurso (cfr. os Acórdãos n.ºs 316/85, 571/06 e 341/08, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Fixam, também, uma compreensão ampla do que seja o esgotamento de tais recursos, visto que “o que releva decisivamente é, pois, que se haja tornado impossível, no momento em que se interpõe o recurso de constitucionalidade, o recurso para um tribunal hierarquicamente superior ao que proferiu a decisão recorrida – quer tal impossibilidade decorra da perda do direito de recorrer por caducidade (decurso do prazo), de renúncia expressa (...) ao recurso ou de qualquer outra razão (...)” (Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, 2010, p. 123).
5. Resulta, no entanto, dos autos que os pressupostos processuais elencados não encontram cabal cumprimento no processo agora objeto de apreciação. Senão vejamos.
Desde logo, tem razão o Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça quando afirma que, à data em que foi apresentado o primeiro requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 109), ainda não estavam efectivamente esgotados os recursos ordinários tolerados pela decisão. Não havia ainda, com efeito, decorrido o prazo legalmente atendível para a reclamação para a conferência, hipótese aberta pelo artigo 417.º, n.º 8, do Código de Processo Penal. E, como vem sustentando a jurisprudência constitucional consolidada, a interposição do recurso de constitucionalidade num momento em que seria ainda possível ao recorrente servir-se de meio impugnatório ordinário não deve ser entendida como renúncia a um tal meio, cabendo, nesse caso, rejeição do recurso para o Tribunal Constitucional por extemporaneidade (cfr. os Acórdãos n.ºs 105/03, 18/04, 427/08 e 76/09, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Depois, mesmo que assim se não entendesse, a norma ou segmento normativo cuja inconstitucionalidade o ora reclamante alega ter suscitado tempestivamente – a saber, o artigo 131.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – não foi aplicado na decisão recorrida e, subconsequentemente, tampouco constituiu efetivo fundamento jurídico da solução aí veiculada. O recurso de constitucionalidade interposto pelo reclamante reporta-se à decisão sumária, proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, que, recorde-se, rejeitou o recurso (referente ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20 de dezembro de 2011) por dois motivos: em primeiro lugar, por inadmissibilidade, na parte relativa ao despacho que indeferiu a realização de exame médico, com fundamento no artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal; em segundo lugar, por manifesta improcedência, nos termos do artigo 434.º, na parte em que tal recurso impugnava a decisão da Relação de manter a condenação ditada na 1.ª instância, visto que, enquanto tribunal de revista, o STJ visa exclusivamente o reexame da matéria de direito. Em momento algum, portanto, este Tribunal superior aplicou, ainda que implicitamente, a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade o reclamante alega ter posto em crise.
III. Decisão
6. Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar o despacho de indeferimento do requerimento de interposição do recurso, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs.
Lisboa, 6 de novembro de 2012. – J. Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.