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Proc. nº 726/02
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nestes autos, em que é recorrente o Ministério Público e é recorrido A, o Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, por decisão de 6 de Junho de 2002, recusou aplicar, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica, a norma do artigo 56º-A do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, aditado pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro.
2. Desta decisão foi interposto pelo representante do Ministério Público junto daquele Tribunal, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea a), da Constituição e
70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso obrigatório de constitucionalidade, para apreciação da conformidade com a Constituição da norma desaplicada.
3. Já neste Tribunal foi o Ministério Público, recorrente, notificado para alegar, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
'1 – É organicamente inconstitucional a norma constante do artigo 56º-A do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, na redacção emergente do Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro, já que a autorização legislativa, outorgada pela Lei nº 17/94, de 23 de Maio, não credenciava o Governo para editar uma norma de natureza penal.
2 - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida'.
4. Por parte do recorrido não foi apresentada, dentro do prazo legal, qualquer alegação. Dispensados os vistos legais, cumpre decidir II. Fundamentação
5. O presente recurso, interposto ao abrigo da alínea a), do nº 1, do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, tem por objecto a apreciação da inconstitucionalidade da norma que se extrai do artigo 56º-A do Decreto-Lei nº
445/91, de 20 de Novembro, (preceito que foi aditado àquele diploma pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro), a que o Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão recusou aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica. Esta questão não é nova na jurisprudência do Tribunal Constitucional, que teve já oportunidade - nos Acórdãos nºs 14/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Março de 1999), 46/99 e 469/02 (estes últimos ainda inéditos) - de com ela se confrontar, tendo sempre concluído pela inconstitucionalidade orgânica da referida norma. Assim, logo no primeiro daqueles arestos, ponderou este Tribunal:
'(...)
3. - A norma cuja aplicação foi recusada no presente processo - o artigo 56º-A, do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro - foi aditada a este diploma legal pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro e tem a seguinte redacção:
«Artigo 56º - A
(Falsas declarações ou informações dos técnicos e dos autores dos projectos) As falsas declarações ou informações prestadas pelos técnicos e pelos autores dos projectos no certificado de conformidade previsto no artigo 5º, no termo de responsabilidade previsto no artigo 6º, no livro de obra previsto no artigo 25º, ou na declaração referida no nº4 do artigo 26º integram o crime de falsificação de documentos previsto no Código Penal». O Código Penal, pelo seu lado, estabelece no artigo 256º, nº1, alínea b) que
'quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo (…) fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante (…) é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa (…)'. O fundamento da recusa de aplicação da norma incriminatória foi a falta de autorização legislativa, o que implicaria a referida inconstitucionalidade orgânica. Vejamos se se verifica tal fundamento e quais as suas consequências.
4. - De acordo com o que estabelecia a alínea c) do nº1 do artigo 168º da Constituição da República Portuguesa (adiante, CRP) - texto resultante da Revisão de 1989 (hoje correspondente ao artigo 165º, nº1, alínea c)) - é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre a 'definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal'. Assim, nestas matérias, o Governo não pode legislar, a menos que o faça munido da respectiva autorização legislativa, não podendo, baseado apenas na sua competência legislativa, tipificar condutas como criminosas, estabelecer ou modificar penas ou medidas de segurança, fixar ou alterar os respectivos pressupostos. Se o fizer, as normas que editar, por afrontarem a competência legislativa exclusiva do Parlamento, estarão afectadas de inconstitucionalidade orgânica.
5. - A norma desaplicada não constava da versão originária do Decreto-Lei nº
445/91: ela foi, como se referiu, aditada pelo Decreto-Lei nº250/94, de 15 de Outubro. A simples leitura da norma mostra que se trata de uma norma incriminadora de certas condutas, remetendo a sua punição para as normas sancionatórias do Código Penal. A incriminação das condutas descritas na norma é feita através da integração das mesmas condutas no tipo de crime - falsificação de documentos - que o Código Penal já define. Vejamos então se o Governo ao legislar como o fez estava ou não credenciado por autorização da Assembleia da República. O Decreto-Lei nº 250/94 foi editado ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei nº 17/94, de 23 de Maio, e também das alíneas a) e b) do artigo 201º da Constituição, tendo aquela lei autorizado o Governo a 'alterar o regime jurídico do licenciamento municipal de obras particulares'. Ora, quer do sentido que se retira do artigo 2º, nº1, quer do teor das diversas alíneas que integram o nº 2 daquele artigo e que definem a extensão da autorização legislativa, não consta qualquer referência que permita considerar como incluída na autorização a actuação do Governo tipificando e sancionando como crime as condutas que constam da norma desaplicada nos autos. Assim, a Lei de Autorização invocada no Decreto-Lei nº 250/94 não pode ser utilizada como credencial bastante para editar o artigo 56º-A de tal diploma.
É certo que na Lei nº 58/91, de 13 de Agosto, que autorizou o Governo a legislar em matéria de licenciamento municipal de obras particulares e ao abrigo da qual foi editado o Decreto-Lei nº 445/91, se estabelece no nº9 do artigo 2º (que define o sentido e a extensão da autorização legislativa concedida), que o Governo fica autorizado a legislar para 'qualificar como crime de falsas declarações a conduta dos autores de projectos que dolosamente, tenham declarado, no termo de responsabilidade, o cumprimento das normas técnicas gerais e específicas da construção e das disposições legais e regulamentares aplicáveis, quando essas afirmações se revelem incorrectas'. Se bem que o texto da norma aditada que consta do diploma publicado em 1994 não corresponda integralmente à autorização atrás referida, a verdade é que esta Lei de Autorização Legislativa foi publicada em Agosto de 1991 e fixava no seu artigo 4º o prazo de 90 dias (a contar da data de publicação - 13 de Agosto) como prazo de duração. E, não existem dúvidas de que o Governo utilizou dentro do respectivo prazo, tal autorização, bastando para o efeito verificar que editou em 20 de Novembro de 1991, o Decreto-Lei nº 445/91. Só que do texto deste diploma não constava qualquer norma na qual se qualificasse como crime a conduta referida no nº9 do artigo 2º da Lei de Autorização Legislativa, o que permite concluir que o Governo decidiu não utilizar, nessa parte, tal autorização. Assim, decorrido o prazo de duração da autorização, ela caducou relativamente às matérias que o Governo entendeu não regular no diploma autorizado. E como não reinscreveu a matéria em causa - a incriminação como crime de falsas declarações das condutas referenciadas no artigo 56º-A, aditado pelo Decreto-Lei nº 250/94 - na respectiva lei de autorização legislativa - a Lei nº 17/94, de 23 de Maio - a norma em causa não podia ter sido emitida pelo Governo, uma vez que se tratava de matéria relativa à definição de crimes e sua punição. Assim, não pode deixar de se concluir que o artigo 56º-A aditado pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro, ao Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, está afectado de inconstitucionalidade orgânica, por ter sido produzido pelo Governo, sem estar credenciado para o fazer. Pelo exposto, não pode censurar-se a decisão recorrida por recusar aplicação a tal norma, uma vez que, de acordo com o preceituado no artigo 207º (hoje, 204º) da Constituição, os Tribunais não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição'.
É esta jurisprudência, cuja inteira validade se mantém, que, uma vez mais, há que reiterar. III. Decisão Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao presente recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida na parte impugnada. Lisboa, 14 de Fevereiro de 2003 Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida