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Processo n.º 766/01
2ª Secção Relator - Paulo Mota Pinto
Acordam em secção no Tribunal Constitucional: I. Relatório Em 23 de Novembro de 2000 a sociedade A apresentou, junto do Tribunal Judicial de Abrantes, impugnação judicial da decisão do Director Geral de Transportes Terrestres que lhe aplicou coima no valor de 300 000$00, ao abrigo do disposto no artigo 27º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 38/99, de 6 de Fevereiro. Por decisão de
3 de Abril de 2001, aquele Tribunal Judicial julgou improcedente o recurso. Inconformada com este decisão, a impugnante interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, alegando nas suas conclusões, no que ora importa, o seguinte:
'– O douto despacho recorrido viola o princípio do contraditório consagrado no n.º 5 do artigo 32º da Constituição e no artigo 327º do Código de Processo penal, aplicável subsidiariamente de acordo com o disposto no artigo 41º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro;
– A douta decisão recorrida infringe o estatuído no n.º 2 do artigo 64º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, na parte que determina a audição da arguida sobre a proposta da decisão do caso por simples despacho;
– Por último, o despacho recorrido viola o direito a defensor, bem como o direito deste a defender o seu constituinte, direito fundamental que se encontra consagrado no n.º 3 do artigo 32º da Constituição, no artigo 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 10 de Dezembro de 1948, (...)
– O Tribunal recorrido interpretou – ou melhor houve certamente um erro – o n.º
2 do artigo 64º do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, no sentido de não ser obrigatória a notificação da proposta do M.º Juiz de decidir a questão por simples despacho ao mandatário judicial da arguida;
(...)
– O Tribunal recorrido devia ter interpretado o direito da arguida a defensor, bem como as normas que o consagram, no sentido de assegurar que o advogado pudesse representar e defender a sua constituinte, sendo para tal indispensável que lhe fossem notificados quer os actos praticados [pela] autoridade recorrida, quer os actos proferidos pelo Tribunal.' Por acórdão de 30 de Outubro de 2001, o Tribunal da Relação de Évora negou provimento ao recurso, considerando, nomeadamente, que:
'Diz a recorrente que a notificação não foi feita ao mandatário judicial da arguida mas directamente à arguida. Mas tal omissão não importa ineficácia dos actos praticados, pois que o artº 47º n.º 1 do D.L. 433/82, determina que a notificação será dirigida ao arguido e comunicada ao seu representante legal quando exista. E o n.º 2 dispõe que a notificação será dirigida ao defensor escolhido cuja procuração conste do processo ou ao defensor nomeado.
(...) Por último não houve violação do direito a defensor, já que o defensor exerce os direitos que a lei reconhece ao arguido, salvo os que ela reservar pessoalmente a este – art.º 63º n.º 1 do CPP – e não consta que a arguida ficasse impedida de exercer os seus direitos reconhecidos por lei nem que fosse impedida de exercer o contraditório, sendo certo por outro lado que não se verifica violação do disposto no art.º 64º do código de Processo Penal.' Inconformada com este acórdão, veio a recorrente dele interpor recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para ver apreciado 'o n.º 2 do artigo 64º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, no sentido de não ser obrigatória a notificação ao mandatário judicial da arguida, da proposta do M.º Juiz de decidir a questão por simples despacho' invocando para tanto a violação do
'direito a defensor, bem como o direito deste a defender o seu constituinte, direito fundamental que se encontra consagrado no n.º 3 do artigo 32º da Constituição'. Notificada para produzir alegações, a recorrente veio mais uma vez invocar a inconstitucionalidade da 'interpretação do artigo 64º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, bem como do artigo 46º do mesmo diploma, no sentido de que não
é necessária a notificação ao advogado – devidamente constituído – do arguido
‘da proposta’ de decidir o processo por simples despacho'. Na resposta às alegações apresentadas pela recorrente no Tribunal Constitucional, o Ministério Público veio suscitar a questão prévia da 'não suscitação adequada da questão de constitucionalidade da norma que constitui
‘ratio decidendi’ da decisão recorrida':
'Na verdade, a norma constante do artigo 64º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82 limita-se a prescrever a possibilidade de, em processo contraordenacional, o juiz dirimir as questões suscitadas pelo recorrente de forma célere e simplificada, dispensando, por desnecessária, a audiência de julgamento: ao regime normativo estatuído neste preceito legal é totalmente estranha a problemática da notificação de tal despacho às partes ou sujeitos processuais – matéria que encontra naturalmente a sua sede no artigo 47º do mesmo diploma legal e, subsidiariamente, nas disposições do processo penal – fundando-se, aliás, o acórdão recorrido na explícita invocação de tal norma legal, para decidir que a omissão de notificação ao mandatário (expressamente imposta, aliás, pelo n.º 2 deste preceito) não importava ineficácia ou nulidade processual, dado ter sido efectivamente notificada a própria entidade recorrente. Ou seja: para além de se ter fundado, como ‘ratio decidendi’, em norma que não integra o objecto do presente recurso, a decisão recorrida, em rigor, não considerou que a norma em causa (o citado n.º 2 do artigo 47º) ‘dispensa’ a notificação ao mandatário constituído, limitando-se a julgar, perante a especificidade da situação dos autos, que a irregularidade decorrente da
‘omissão’ inquestionavelmente cometida pela secretaria se devia considerar sanada ou precludida, em consequência da notificação operada ao interessado directo. Ora, neste circunstancialismo, não tendo o recorrente questionado a constitucionalidade da norma que constitui efectivamente o suporte do regime jurídico em que assentou decisivamente o acórdão impugnado, não pode o Tribunal Constitucional conhecer de tal questão a propósito de outra norma, cujo teor se mostra absolutamente estranho à disciplina das notificações operadas em processo contraordenacional e aos efeitos das omissões ou irregularidades eventualmente cometidas. Concluindo as suas alegações da seguinte forma:
'1º – Não tendo a recorrente – face ao teor do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional – questionado a constitucionalidade da norma que – disciplinado o regime das notificações operadas em processo contraordenacional (artigo 47º do Decreto-Lei 433/82) funciona como ‘ratio decidendi’ do acórdão recorrido, não deverá conhecer-se do presente recurso.
2º – Na verdade, é o teor do requerimento de interposição de tal recurso que delimita, de modo irremediável, o seu objecto, não sendo lícito ampliá-lo nas alegações apresentadas ulteriormente.' A recorrente foi notificada para se pronunciar sobre esta questão prévia, vindo pugnar pelo conhecimento do presente recurso, nos seguintes termos:
'(...)
3. Salvo o devido respeito, parece ser evidente que a norma contida no n.º 2 do artigo 64º do Regime Geral das Contra-Ordenações ao prever que ‘o juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido e o Ministério Público não se oponham’, implica necessariamente a comunicação desta ‘proposta’ ao arguido, ou, como é o caso, ao seu defensor.
(...)
5. Neste sentido é manifesto, que o artigo 46º relativo à notificação é instrumental face ao artigo 64º, todos do Regime Geral das Contra-Ordenações, onde se prevê a possibilidade de o arguido se opor à decisão do pleito por despacho.
6. Reafirma-se que uma interpretação do n.º 2 do artigo 64º do Regime Geral das Contra-Ordenações, consentânea com os princípios do contraditório e do direito a defensor implica a notificação ao advogado do arguido da proposta da decisão da causa por despacho.
7. Por outro lado, a norma que o Tribunal de 1.ª Instância violou, violação essa repetida no douto acórdão recorrido, foi o artigo 64º que prevê a audição do arguido sobre a matéria então em causa, em conformidade com os princípios constitucionais do direito a defensor e do contraditório.
8. Ora, esta questão foi como que ‘esquecida’ pelo douto acórdão do Tribunal recorrido que se ‘refugiou’ numa norma, meramente instrumental, para negar o direito - constitucionalmente consagrado - do arguido a defensor.
9. Assim, a questão controversa consiste precisamente na aplicação dos princípios constitucionais atrás referidos na interpretação e aplicação do n.º 2 do artigo 64º do Regime Geral das Contra-ordenações.
10. Assim, a ratio decidendi do douto acórdão recorrido consistiu precisamente no entendimento de que o cumprimento do n.º2 do artigo 64º do Regime Geral das Contra-ordenações que acolhe os princípios constitucionais do contraditório e do direito a defensor não importa a comunicação ao advogado do arguido da proposta de decisão por despacho.
11. Entendimento este manifestamente inconstitucional.' Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos O presente recurso foi admitido, em decisão que, nos termos do artigo 76º, n.º
3, da Lei do Tribunal Constitucional, não vincula este Tribunal. Importa, pois, antes de mais, apurar se se verificam os requisitos para se poder tomar conhecimento do recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Como se sabe, são os seguintes esses requisitos: antes de mais, que a(s) norma(s) jurídicas cuja constitucionalidade é(são) impugnada(s) tenha(m) sido aplicada(s) na decisão recorrida; depois, que o recorrente tenha suscitado a inconstitucionalidade dessa(s) norma(s) jurídica(s) durante o processo; e, ainda, que não seja possível interpor recurso ordinário de tal decisão (cfr., entre muitos, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 114/89, 469/91 e 178/95, publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1989, de 24 de Abril de 1992 e de 21 de Junho de 1995). No requerimento de recurso indicou-se, como objecto deste, a apreciação da constitucionalidade do 'n.º 2 do artigo 64º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, no sentido de não ser obrigatória a notificação ao mandatário judicial da arguida, da proposta do M.º Juiz de decidir a questão por simples despacho'. Preceitua este artigo 64.º, n.º 2 (tendo como epígrafe 'Decisão por despacho judicial'):
'2 – O juiz decidirá por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham a este processo.' Ora, a decisão do Tribunal da Relação de Évora negou provimento ao recurso, fundamentando-se no seguinte quanto ao artigo 64º, n.º 2 e à notificação da arguida:
'Quanto à alegada infracção ao disposto no artº 64º n.º 2 do DL 433/82, dispõe o n.º 1 deste preceito que o juiz decidirá do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho e, segundo o invocado n 2, o juiz decide por despacho quando não considerar necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham. Ora o já citado despacho de 31 de Janeiro que julgou dispensável a realização da audiência de discussão e julgamento, ordenou a notificação do MP e do recorrente para em dez dias querendo deduzirem oposição à decisão por despacho e, notificados, não consta ter havido oposição. Diz a recorrente que a notificação não foi feita ao mandatário judicial da arguida mas directamente à arguida. Mas tal omissão não importa ineficácia dos actos praticados, pois que o artº 47º n.º 1 do D.L. 433/82, determina que a notificação será dirigida ao arguido e comunicada ao seu representante legal quando exista. E o n.º 2 dispõe que a notificação será dirigida ao defensor escolhido cuja procuração conste do processo ou ao defensor nomeado. Analisando estes elementos, reconhece-se que assiste razão ao Ministério Público, quando afirma que a decisão recorrida se fundou, como ratio decidendi, na norma do artigo 47º, n.ºs 1 e 2, relativos à notificação, e não no artigo
64º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 433/82. Aquelas normas é que disciplinam o regime das notificações operadas em processo contraordenacional e funcionaram como rationes decidendi do acórdão ecorrido, e não o artigo 64º, n.º 2, numa pretensa interpretação reportada à notificação, que tal preceito, aliás, não comporta. Este artigo 64º, n.º 2 prevê apenas a possibilidade de, em processo contraordenacional, o juiz decidir dispensando, por desnecessária, a audiência de julgamento. Mas, como bem salienta o Ministério Público, é-lhe totalmente estranha a disciplina da notificação do despacho aos sujeitos processuais. Tal matéria tem a sua sede autónoma (e geral) no artigo 47º do mesmo diploma legal, e a decisão recorrida fundou-se na sua explícita invocação para decidir que a falta de notificação ao mandatário não importava ineficácia ou nulidade processual, por ter sido efectivamente notificada a própria entidade recorrente. Nem tal conclusão é alterada por se afirmar que as normas sobre notificações foram 'instrumentais' face ao referido artigo 64º. As normas sobre notificações são instrumentais em relação a muitas outras (em boa verdade, em relação a todas as que prevejam ou pressuponham a comunicação de actos processuais aos sujeitos processuais), não podendo considerar-se, quando se discute uma questão que tem a sua sede normativa autónoma no regime das notificações, que terá sido aplicada, em cada um desses casos também uma interpretação dessas outras normas. O presente recurso refere-se, assim, a uma dimensão ou interpretação normativa –
'o n.º 2 do artigo 64º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, no sentido de não ser obrigatória a notificação ao mandatário judicial da arguida, da proposta do M.º Juiz de decidir a questão por simples despacho' – que, além de não poder incluir-se no preceito indicado, não pode considerar-se aplicada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido. Este aplicou, antes, como razão de decidir só por si bastante – e que permaneceria intocada mesmo que o tribunal pudesse julgar inconstitucional a citada 'interpretação' normativa – os n.ºs 1 e
2 do artigo 47º desse diploma, a que o requerimento de recurso se não reporta. E não pode, pois, tomar-se conhecimento do presente recurso. III. Decisão Com estes fundamentos, decide-se não tomar conhecimento do presente recurso e condenar a recorrente em custas, com 8 (oito) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 12 de Fevereiro de 2003 Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário Torres Benjamim Rodrigues Luís Nunes de Almeida