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Processo n.º 170/12
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A. veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC), invocando, para tal, a recusa de aplicação, por parte do tribunal a quo, da norma do n.º 1 do artigo 1817.º, do Código Civil – na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 14/2009, de 1 de abril – aplicável às ações de investigação de paternidade, por força do disposto no artigo 1873.º do mesmo diploma.
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se, nomeadamente, o seguinte:
“(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem pressupostos gerais de todos os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação; a natureza jurisdicional da decisão impugnada e o caráter instrumental do recurso.
Comecemos por analisar este último pressuposto.
O caráter ou função instrumental do recurso de constitucionalidade traduz-se na possibilidade de o julgamento da questão de constitucionalidade se repercutir, de forma útil e eficaz, na solução jurídica do caso concreto. Tal possibilidade efetiva-se quando a decisão sobre a questão de constitucionalidade é suscetível de alterar o sentido ou os efeitos da decisão recorrida, implicando uma reponderação da solução dada ao caso, pelo tribunal a quo.
Carecerá de utilidade a apreciação do mérito do recurso quando a decisão que venha a ser proferida seja insuscetível de se projetar no caso concreto, nomeadamente nos casos em que a decisão recorrida contenha uma fundamentação alternativa, efetiva e suficiente, que conduza, de forma autónoma, à mesma solução a que se chega através da via argumentativa a que subjaz o critério normativo, cuja constitucionalidade é posta em causa.
Transpondo tais considerações para o caso concreto, teremos de concluir que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, não obstante mencionar a recusa de aplicação do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, na redação introduzida pela Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, expressamente refere que “a solução do caso concreto não se alteraria, caso se tivesse por conforme com os princípios constitucionais, o novo prazo de caducidade de 10 anos” fixado na aludida disposição legal.
Explica a decisão recorrida que, tendo a ação sido proposta antes da entrada em vigor da referida Lei n.º 14/2009, a alteração introduzida por tal diploma ser-lhe-ia aplicável por força da norma transitória consagrada no artigo 3.º. Porém, “a aplicação ao caso dos autos da norma transitória (…) constituiria flagrante violação do princípio constitucional da justiça e da tutela da confiança legítima, ínsitos no princípio do Estado democrático, decorrente do Art.º 2º “ da Constituição da República Portuguesa.
E, deste modo, conclui que, ainda que não se considerasse inconstitucional o estabelecimento do prazo de caducidade previsto no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação introduzida pela Lei n.º 14/2009, “o certo é que a sua aplicação retroativa a processos pendentes (…) iria afetar negativamente, de forma substancial, as posições jurídicas subjetivas dos titulares de tal direito”, pelo que “ a norma transitória do Art. 3º da Lei 14/2009 sofreria, então, de manifesta inconstitucionalidade por violação dos Art.ºs 2º e 18º n.º 3 da Constituição, na exata medida em que manda aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, o prazo de caducidade (10 anos) previsto na nova redação do n.º 1 do Art.º 1817º do C.C..(...)
Por conseguinte, mesmo na hipótese ora equacionada, nunca seria de aplicar retroactivamente a nova redação do n.º 1 do Art.º 1817º do C.C., pelo que a ação em causa, intentada antes da entrada em vigor da Lei 14/2009, seria tempestiva e teria de prosseguir.”
Do excerto transcrito resulta claro que o acórdão recorrido estruturou uma fundamentação alternativa, efetiva e suficiente, baseada no argumento de inconstitucionalidade da norma do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, na medida em que manda aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, o prazo previsto na nova redação do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo diploma.
Ora, tal norma, assente no artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, não foi integrada na delimitação, feita pelo recorrente, do objeto do presente recurso, pelo que a sua constitucionalidade não poderia ser sindicada, nesta sede.
Assim sendo, forçoso é concluir que uma eventual apreciação do Tribunal Constitucional, relativamente à norma – extraível do artigo 1817.º, n.º 1 do Código Civil – cuja recusa de aplicação suporta a primeira linha de argumentação da decisão recorrida, não teria utilidade prática ou repercussão efetiva na solução do caso concreto, porquanto o sentido da mesma se manteria intocado, face à coexistência de uma segunda linha de argumentação, assente na recusa de aplicação de norma diversa – extraível do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009 – que conduziria, na lógica interna da decisão recorrida, ao mesmo resultado de improcedência do recurso de revista.
Na verdade, a aludida fundamentação alternativa subsistiria, impondo-se como ratio decidendi autónoma, incólume a eventual juízo de inconstitucionalidade que tivesse incidido sobre diferente critério normativo.
Nestes termos, configurando a instrumentalidade do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade um dos pressupostos de admissibilidade do mesmo, conclui-se que o presente recurso é inadmissível, atenta a insusceptibilidade de o julgamento da questão de constitucionalidade se repercutir, de forma útil e eficaz, na solução jurídica do caso concreto.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
3. O reclamante alicerça a sua discordância, relativamente à decisão reclamada, no facto de as referências à norma transitória plasmada no artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, não constituírem a ratio decidendi do acórdão recorrido, sendo apenas objeto de uma abordagem “lateral”.
Em consonância, explica que não poderia suscitar a questão da inconstitucionalidade de tal norma transitória, porquanto a aplicação da mesma ficou, em rigor, prejudicada, como expressamente resulta do referido acórdão.
Acrescenta que o caráter instrumental desta espécie de recurso não assume relevância quando a “segunda linha ou alternativa argumentativa” da decisão recorrida assenta igualmente num juízo de inconstitucionalidade. “Isto porque o juízo de inconstitucionalidade formulado sobre uma norma de direito material que constitui a ratio decidendi de uma decisão resolve definitivamente a questão jurídica que lhe subjaz, ficando prejudicada a questão da aplicação da norma de caráter transitório”.
Mais refere que o efeito útil do presente recurso se traduzirá no facto de o reclamante não ver negado o recurso de revista, com fundamento num juízo de inconstitucionalidade, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, sobre uma norma já julgada não inconstitucional pelo Plenário do Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 401/2011).
Pelo exposto, peticiona a procedência da presente reclamação e a consequente admissão do recurso interposto.
O reclamado não apresentou resposta.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
4. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos pelo reclamante não infirmam a correção do juízo efetuado, na decisão sumária proferida, consubstanciando, sobretudo, uma manifestação de discordância com a solução preconizada.
Em síntese, defende a reclamante que a decisão do recurso de constitucionalidade mantém o efeito útil de evitar que o reclamante veja negado o recurso de revista, com fundamento num juízo de inconstitucionalidade, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, sobre uma norma já julgada não inconstitucional pelo Plenário do Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 401/2011).
Tal argumento, porém, não tem em consideração o verdadeiro sentido do caráter instrumental do recurso de constitucionalidade, que não se prende com a natureza do fundamento da decisão recorrida, mas antes com o seu sentido decisório.
Para efeito do apuramento da suscetibilidade de repercussão, útil e efetiva, da decisão do Tribunal Constitucional no caso concreto, importa verificar se, dependendo do sentido da apreciação sobre a questão de constitucionalidade, a solução dada ao caso se mantém incólume ou se é alterável.
Ora, face ao texto da decisão recorrida, é inegável que, ainda que a decisão do Tribunal Constitucional fosse no sentido de julgar não inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, a solução de negar a revista manter-se-ia no caso concreto, como ficou demonstrado na decisão reclamada.
Sempre se dirá, aliás, que se é verdade que o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 401/2011, proferido pelo Plenário, julgou não inconstitucional a norma, cuja recusa de aplicação é objeto do presente recurso, igualmente se refira que, pelo Acórdão n.º 24/12, igualmente proferido em Plenário, este Tribunal confirmou o juízo de inconstitucionalidade que a decisão recorrida acolhe, quanto à norma do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril.
Assim, não cabendo a este Tribunal sindicar a opção do tribunal a quo sobre a prioridade de tratamento da questão da aplicabilidade da norma do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, em relação à questão da aplicabilidade da norma do artigo 3.º da mesma Lei, teremos que assumir, como um dado, que a linha principal argumentativa da decisão recorrida se centra, de facto, na recusa de aplicação da norma do referido n.º 1 do artigo 1817.º; porém, ainda que o juízo de inconstitucionalidade, subjacente a tal recusa, fosse infirmado pelo Tribunal Constitucional, manter-se-ia a não aplicação da mesma norma, por força do juízo de inconstitucionalidade que o tribunal a quo faz recair sobre a norma transitória do artigo 3.º.
Nestes termos, não sendo os argumentos aduzidos pelo reclamante suscetíveis de abalar os fundamentos da decisão reclamada, damos por reproduzida a sua fundamentação e, em consequência, concluímos pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III - Decisão
5. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 6 de junho de 2012, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 26 de setembro de 2012.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.