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Proc. n.º 531/99 TC – Plenário Rel.: Cons.º Artur Maurício
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional
1 – O Provedor de Justiça, no uso da sua competência prevista no artigo 281º, n.º 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa, requer a este Tribunal:
a) a declaração da ilegalidade da norma do artigo 46º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/88, de 17 de Dezembro, ou, subsidiariamente, a declaração da inconstitucionalidade da norma contida no segmento adiante indicado da alínea 18), do artigo 2º, da Lei n.º 41/98, de 4 de Agosto e, consequentemente, da dita norma do artigo 46º, n.º 1, da LGT; b) a declaração da inconstitucionalidade da norma contida no segmento adiante identificado da alínea 23), do artigo 2º, da Lei n.º 41/98 e, consequentemente, das normas do artigo 76º, n.ºs 1 e 4, da mesma LGT; c) a declaração da inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos
87º, alínea c), 89º, 90º, n.º 2 e 75º, n.º 2, alínea c), também dessa LGT.
Estabelecem as normas impugnadas (com indicação a negro dos segmentos normativos questionados):
Lei n.º 41/98, de 4 de Agosto:
Artigo 2º
Sentido e extensão
Para a prossecução dos fins indicados nos artigos anteriores, o Governo fica autorizado a:
..............................................................................................................
18) Rever os pressupostos da suspensão do prazo de caducidade e da interrupção da prescrição, podendo o primeiro ser dilatado nos casos de contratos fiscais no período a que os respectivos benefícios se aplicam e o segundo a ser encurtado de modo consentâneo com as possibilidades e o aumento da eficiência da Administração.
..............................................................................................................
23) Estabelecer normas, de acordo com a Constituição e em atenção ao disposto no Código do Procedimento Administrativo, sobre competência, delegação e substituição, legitimidade, prazos, notificações, direito de informação, direito de acesso, instrução do procedimento, meios de prova e seu valor, ónus da prova, liquidação, revisão e liquidação adicional, modalidades de cobrança, pagamentos por conta, fiscalização, direito de petição, reclamação e recurso hierárquico, prazos e revogação das decisões da Administração.
Lei Geral Tributária
Artigo 46º
(Suspensão do prazo de caducidade)
1 – O prazo de caducidade suspende-se com a notificação ao contribuinte, nos termos legais, de início de acção de inspecção externa, cessando, no entanto, esse efeito, contando-se o prazo desde o início, caso a duração da inspecção externa tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação.
..........................................................................................................
Artigo 75º
(Declarações e outros elementos do contribuinte)
1 – Presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal.
2 – A presunção referida no número anterior não se verifica quando: a)
......................................................................................................... b)
......................................................................................................... c) A matéria tributável do sujeito passivo se afastar significativamente para menos, sem razão justificada, dos indicadores objectivos da actividade de base técnico-científica previstos na presente lei.
Artigo 76º
(Valor probatório)
1 – As informações prestadas pela inspecção tributária fazem fé, quando fundamentadas e se basearem em critérios objectivos, nos termos da lei.
............................................................................................................
............................................................................................................
4 – São abrangidas pelo n.º 1 as informações prestadas pelas administrações tributárias estrangeiras ao abrigo de convenções internacionais de assistência mútua a que o Estado português esteja vinculado, sem prejuízo da prova em contrário do sujeito passivo ou interessado.
Artigo
87º
(Realização da avaliação indirecta)
A avaliação indirecta só pode efectuar-se em caso de: a)
......................................................................................................... b)
......................................................................................................... c) A matéria tributável do sujeito passivo se afastar significativamente para menos, sem razão justificada, da aplicação dos indicadores objectivos de base técnico-científica referidos na presente lei.
Artigo 89º
(Indicadores de actividade inferiores aos normais)
1 – A aplicação de métodos indirectos com fundamento em a matéria tributável ser significativamente inferior à que resultaria da aplicação de indicadores objectivos de actividade de base técnico-científica só pode efectuar-se, para efeitos da alínea c) do artigo 87º, em caso de o sujeito não apresentar na declaração em que a liquidação se baseia razões justificativas desse afastamento, desde que tenham decorrido mais de três anos sobre o início da sua actividade.
2 – Os indicadores objectivos de base técnico-científica referidos no número anterior são definidos anualmente, nos termos da lei, pelo Ministro das Finanças, após audição das associações empresariais e profissionais, e podem consistir em margens de lucro ou rentabilidade que, tendo em conta a localização e dimensão da actividade, sejam manifestamente inferiores às normais do exercício da actividade e possam, por isso, constituir factores distorcidos da concorrência.
Artigo
90º
(Determinação da matéria tributável por métodos indirectos)
1-
..........................................................................................................
2 – No caso de a matéria tributável se afastar significativamente para menos, sem razão justificada, dos indicadores objectivos de actividade de base técnico-científica, a sua determinação efectua-se de acordo com esses indicadores.
Alterada a redacção da alínea c), do artigo 87º, da LGT, pela Lei n.º 100/89, de
26 de Julho, o Provedor de Justiça, em aditamento ao seu requerimento inicial
(apresentado antes de ordenada a notificação dos órgãos legislativos autores das normas impugnadas), alargou o seu pedido à declaração de inconstitucionalidade da correspondente norma, na nova redacção, que é a seguinte:
Artigo 87º
(Realização da avaliação indirecta) A avaliação indirecta só pode efectuar-se em caso de: a)
......................................................................................................... b)
......................................................................................................... c) A matéria tributável do sujeito passivo se afastar, sem razão justificada, mais de 30 % para menos, ou durante três anos seguidos, mais de 15
% para menos, da que resultaria da aplicação dos indicadores objectivos da actividade de base técnico-científica referidos na presente lei .
2 - O requerente expõe como fundamentos do seu pedido:
A) Quanto ao artigo 46º, n.º 1, da LGT e segmento em causa do artigo 2º da Lei n.º 41/98:
- a contraditoriedade da norma ínsita no primeiro preceito com a
autorização concedida pelo segundo no tocante à suspensão do prazo de caducidade da liquidação dos impostos, o que faz incorrer tal norma em
“ilegalidade material por violação de lei com valor reforçado, de acordo com o disposto no artigo 112º, n.º 2, da Constituição”;
- a não proceder tal “ilegalidade”, a definição, no dito segmento da alínea 18), do artigo 2º, da Lei n.º 41/98, sem a necessária precisão, do sentido da autorização concedida ao Governo, em matéria de suspensão do referido prazo de caducidade, o que determina a violação da exigência imposta pelo artigo
165º, n.º 2, da Constituição, gerando a inconstitucionalidade dessa norma a daquela que a utilizou (a norma do artigo 46º, n.º 1, da LGT).
B) Quanto ao segmento destacado da alínea 23), do artigo 2º, da Lei n.º
41/98 e aos n.ºs 1 e 4 do artigo 76º da LGT:
- a insuficiência do sentido da autorização legislativa (com violação do disposto no artigo 165º, n.º 2, da Constituição) relativa aos meios de prova e seu valor e ao ónus da prova no processo tributário, o que inquina, consequentemente, as citadas normas da LGT, emitidas no uso de tal autorização e relativas ao valor probatório, nesse processo, das informações prestadas pela inspecção tributária e, por maioria de razão, por administrações tributárias estrangeiras; e isto tanto mais quanto o regime consagrado nos n.ºs 1 e 4, do artigo 76º, da LGT promove uma inversão do ónus da prova (colocada agora a cargo do contribuinte), o que representa uma inovação relativamente ao direito anterior (do Código de Processo Tributário) em que vigorava sem limites a regra da presunção de veracidade das declarações do contribuinte e sendo certo que da citada alínea 23), do artigo 2º, da Lei de autorização consta a única referência
à temática em causa sendo o seu teor indefinido quanto à orientação a seguir pelo Executivo nesta matéria.
C) Quanto aos artigos 87º, alínea c), 89º, 90º, n.º 2 e 75º, n.º 2, alínea c) da LGT:
- quanto a todas normas, a violação, por um lado, dos princípios da capacidade contributiva e da tributação do rendimento real consignados nos artigos 13º, 103º, n.º 1 e 104º da Constituição e, por outro, do princípio da proporcionalidade, ínsito na ideia de Estado de direito democrático expressa no artigo 2º da Constituição. Quanto à nova possibilidade de avaliação indirecta da matéria tributável prevista no artigo 87º da LGT, ela representa, para o requerente, “uma inversão dos princípios fundamentais do direito fiscal consagrados no texto constitucional, designadamente os que se prendem com a capacidade contributiva e com a tributação do rendimento real”, já que, com ela, “o que se faz é transformar a necessária subsidiariedade da avaliação indirecta (...) na regra geral para a determinação naqueles casos da matéria colectável”. Por outro lado, o regime legal em causa nem sequer se mostra “imprescindível ou sequer útil no combate à fraude e à evasão fiscais”, sendo desproporcionado à luz desse objectivo e daí que viole também o principio da proporcionalidade. Com a nova redacção da alínea c), do artigo 87º, da LGT, em que se passou a quantificar o afastamento de que ali se trata, continuam a valer os mesmos fundamentos do pedido de declaração de inconstitucionalidade.
- No que concerne apenas aos artigos 89º, n.º 2 e 90º, n.º 2, da LGT, a violação dos princípios da legalidade e da tipicidade fiscais, bem como do princípio estabelecido no artigo 112º, n.º 6 da Constituição. Tal resulta de os indicadores técnico-científicos, a utilizar quando se verifique a situação prevista no artigo 87º, alínea c), serem definidos anualmente pelo Ministro das Finanças, o que interfere “de forma determinante na determinação dos elementos do imposto mencionados no artigo 103º, n.º 2 da Constituição”, contrariando os referidos princípios constitucionais que se extraem da conjugação do disposto no artigo 165º, n.º 1, alínea i) e daquele artigo 103º, n.º 2, ambos da Constituição; a violação do artigo 112º, n.º 6, da Constituição resultaria, por outro lado, da qualificação de “deslegalização” que o requerente faz da descrita situação. Sem que, em rigor, se invoque a violação de outros princípios constitucionais, mas como reforço dessa violação, alega, ainda, o Provedor de Justiça que a faculdade de o Ministro das Finanças “escolher”, embora nos termos da lei, “os critérios que nas circunstâncias entenda como os mais adequados” – o que
“aumenta substancialmente o poder discricionário da administração fiscal na determinação da matéria colectável das situações em apreço” e se traduz mesmo num “poder discricionário [dessa] administração (...) inadmissível num Estado de direito democrático” - “põe seguramente em crise as exigências que estão subjacentes ao princípio da segurança jurídica aplicado ao domínio tributário”.
Notificado para responder, relativamente às normas provenientes da Assembleia da República, o Presidente deste órgão de soberania ofereceu o merecimento dos autos e juntou os números do “Diário” parlamentar contendo os correspondentes trabalhos preparatórios.
Por seu turno, o Primeiro-Ministro contestou o pedido do Provedor da Justiça, em toda a sua extensão, alegando em síntese:
A) Quanto ao artigo 46º, n.º 1, da LGT e ao segmento em causa da alínea 18), do artigo 2º, da Lei n.º 41/98:
- suposto que o “sentido” da autorização que devia considerar-se era o da alínea 18), o mesmo (que tem a ver tão só com os contratos fiscais) não teria sido atingido: quando muito, ter-se-ia excedido a “extensão” da autorização, o que implicaria, então, não já a “ilegalidade”, mas a “inconstitucionalidade” da norma do artigo 46º n.º 1, vício esse outro, cuja declaração, porém, não está incluída no “pedido” do requerente (artigo 6º);
- em qualquer caso, não ocorre sequer, na dita norma (do artigo 46º, n.º
1), violação da “extensão” ou mesmo do “objecto” da autorização legislativa conferida pela Lei n.º 41/98, e, isso, atento o disposto na alínea 17), do seu artigo 2º, que é (e não a alínea 18)), a que interessa ao caso, ao conceder ao legislador governamental a possibilidade de “rever os prazos [no plural, acentua-se} de caducidade do direito de liquidar os impostos”, podendo
“encurtá-los de modo consentâneo com as possibilidade e o aumento de eficiência da administração”: ora, a verdade é que, tendo em conta o limite da suspensão estabelecido no n.º 1, do artigo 46º, resulta que aí se fixa um prazo de caducidade (de quatro anos e meio), fundado na realização de acções inspectivas, decerto mais alargado que o novo prazo geral do artigo 45º, mas ainda assim inferior ao que vigorava antes da Lei Geral Tributária, e, portanto, em sintonia com o objectivo geral de encurtamento dos prazos (subjacente à Lei n.º 41/98)
(artigo 7º);
- por outro lado, tão pouco pode dizer-se que a lei de autorização não define suficientemente o correspondente “sentido”, no ponto em apreço: na verdade, sendo certo que o “sentido” das autorizações legislativas “não tem sempre de ser caracterizado apenas por directrizes densas”, e importando considerar a alínea 17), do artigo 2º, da Lei n.º 41/98, no seu contexto sistemático, temos que “a lei delegante fixou em parâmetros suficientemente amplos um conjunto de fundamentos suficientes” para prescrever-se a suspensão dos “prazos prescritivos” no caso de actos inspectivos. Mas, a entender-se que o
“sentido” da autorização não tinha “densidade suficiente”, então era nessa alínea 17) que residia o problema, e não na alínea 18), única cuja declaração de inconstitucionalidade vem pedida e a que o Tribunal pode ater-se – sendo que, de resto, a eventual declaração de inconstitucionalidade desta última em nada afectaria a subsistência do artigo 46º, n.º 1, por justamente o fundamento habilitante deste preceito residir na alínea 17) (artigo 9º)´.
B) Quanto ao segmento destacado da alínea 23), do artigo 2º, da Lei n.º
41/98 e aos n.ºs 1 e 4, do artigo 76º, da LGT:
- a alínea 23), do artigo 2º (da Lei n.º 41/98, ao conferir ao legislador delegado “uma habilitação ampla” para dispor, sobre os meios de prova, o seu valor e o ónus da prova “de acordo com o que dispõe o Código de Procedimento Administrativo”, encontra nessa remissão o “sentido dominante da autorização” que contém. Interessa ao ponto, directamente, o artigo 87º, n.º 1 deste Código, de cujo teor em si mesmo (nomeadamente, ao consagrar o princípio da livre apreciação da prova pela Administração) e de cuja remissão, por sua vez, para todos “os meios de prova admitidos em direito” (neste se incluindo também o próprio direito fiscal), se retiram vários critérios e directrizes relevante. E de tal modo que poderá dizer-se que o n.º 1, do artigo 76º, da LGT, enquanto norma autorizada, “recolheu os critérios de definição do seu sentido, precisamente, da conjugação entre o n.º 1 do artigo 87º do CP e os n.ºs 1 e 2 do artigo 134º do CPT, norma que estatui que “as informações prestadas pela administração tributária fazem fé, quando fundamentadas e se basearem em critérios objectivos, nos termos da lei” (artigos 14º a 16º)
- o novo regime da LGT não inverteu globalmente, ou na sua essência, a regra sobre o ónus da prova que antes, no quadro do CPT, vigorava em direito fiscal: assim, do confronto, designadamente, dos artigos 74º, n.º 1, 7º, n.º 1, e 78º desse Código com o artigo 75º, n.º 1, da Lei, resulta que esta última mantém, como aquele, a “regra da tributação com fundamento nos elementos fornecidos ou declarados pelo contribuinte, sendo essa regra apenas afastada quando a administração alegue e prove alguma das circunstâncias previstas na lei para o efeito” (artigo 17º).
C) Quanto aos artigos 87º, alínea c), 89º, 90º, n.º 2, e 75º, n.º 2, alínea c) da LGT:
- decorre da Constituição – quando dispõe, no artigo 104º, n.º 2, que a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o rendimento real – que a mesma admite excepções ao “princípio da tributação do rendimento real através da avaliação directa”, corporizadas nomeadamente através dos métodos de avaliação indirecta. Ora, o artigo 81º, n.º 1, da LGT é particularmente claro no estabelecimento, como regra, da avaliação directa do rendimento e, como excepção, do recurso aos métodos de avaliação indirecta, definindo-se, depois, no artigo 87º da mesma lei, os casos em que a última pode ter lugar, com a fixação taxativa dos respectivos pressupostos, Assim acontece na alínea c) desse artigo (o dito artigo 87º), a qual, contemplando uma situação “que não constitui um facto dominante que caracteriza a situação tributária da generalidade ou da maioria dos sujeitos passivos abrangidos pela [sua] previsão”, não pode dizer-se que configure um caso de avaliação indirecta passível de converter-se em regra geral. Acresce que o carácter excepcional da situação aí prevista ficou reforçado com a nova redacção dada, pela Lei n.º 100/99, à alínea em causa, e a
“quantificação legal dos critérios justificantes da submissão dos sujeitos passivos à avaliação indirecta”, que dela passou a constar;
- por outro lado, o afastamento entre a declaração do contribuinte e os indicadores objectivos, de que se trata na alínea c), do artigo 87º, não desencadeia automática e necessariamente a aplicação do método da avaliação indirecta, mas unicamente após “um processo inspectivo pautado pelos princípios do contraditório e da participação”, em que “o contribuinte não logre justificar” tal afastamento – tudo o que (a ocorrência do afastamento e a improcedência das razões do contribuinte) a Administração terá de fundamentar
(cfr. artigo 23º);
- assim, a norma da alínea c), do artigo 87º, da LGT e as normas dela dependentes não incorrem – pelo menos desde a entrada em vigor da Lei n.º 100/99
– nem em violação dos princípios da capacidade contributiva e da tributação do rendimento real, nem em violação do princípio da proporcionalidade (afr. Artigo
24º).
D) Quanto, em especial, ao n.º 2, do artigo 89º e ao n.º 2, do artigo 90º, da LGT:
- a LGT prevê, logo no seu artigo 2º e, depois, noutros lugares, relações de complementaridade entre as suas normas e uma pluralidade de outras, nomeadamente através de “remissões” para outros actos legislativos. Ora, justamente no n.º 2, do artigo 89º, dessa Lei dispõe-se que a definição dos indicadores de base técnico-científica (que servirão de base à avaliação indirecta da matéria tributável quando se verifique o pressuposto da alínea c), do artigo 87º) será feita anualmente nos termos da lei – donde resulta que a densificação do indicador aí previsto (“margens de lucro ou rentabilidade”) ou a fixação de outros (que o preceito parece também admitir) “devem ser estabelecidos em lei especial, não dispondo o referido preceito da LGT de exequibilidade até à emissão da mesma lei”. Sendo “juridicamente inadmissível que o Ministro das Finanças pudesse, através de norma administrativa estabelecer primariamente critérios de liquidação que o n.º 3 do artigo 103º da CRP remete para sede legal ou integrar administrativamente lacunas ou previsões legais indeterminadas”, é, essa, na dúvida, a interpretação (em conformidade com a Constituição) que há-de ser feita da norma em causa – de sorte que a competência do Ministro das Finanças, de que nela se trata, se restringirá à concretização
(em função de factores anualmente variáveis e ouvidas previamente as associações representativas dos interessados) dos indicadores fixados primária e precisamente por acto legislativo (cfr. artigos 32º a 34º);
- com o sentido interpretativo exposto, as normas do n.º 2, do artigo
89º e do n.º 2, do artigo 90º, da LGT não violarão, nem os princípios da tipicidade e legalidade fiscal, nem o princípio do artigo 112º, n.º 6, da Constituição.
Submetido a debate o memorando apresentado pelo Presidente deste Tribunal e fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver, cumpre decidir de acordo com essa orientação (artigos 63º, n.º 2 e 65º, n.º 1, da LTC).
3 – Como se deixou relatado, relativamente à norma do n.º 1, do artigo 46º, da LGT, vem posta a questão da sua “ilegalidade”, por violação do sentido da correspondente norma parlamentar autorizadora – “ilegalidade” que se reporta ao disposto nos artigos 112º, n.º 2 e 281º, n.º 1, alínea b), da CRP, ou seja “por violação de lei de valor reforçado”.
Colocar-se-ia, desde logo, a questão de saber se tal qualificação estaria correcta e se, diversamente, o “vício” invocado não seria antes o de
“inconstitucionalidade” por violação de norma constitucional de competência, como, aliás, o Tribunal Constitucional vem, reiteradamente, entendendo em situações idênticas.
Por outro lado, a dever manter-se tal entendimento do Tribunal, seria, depois, de questionar se poderia oficiosamente convolar-se o pedido de declaração de ilegalidade em pedido de declaração de inconstitucionalidade e se uma resposta negativa a essa questão (como se retirará da jurisprudência do Tribunal) continuaria a justificar-se quando o fundamento invocado de um ou outro vício
(ilegalidade ou inconstitucionalidade) é o mesmo, como no caso.
Mas não se torna necessário resolver as questões enunciadas, uma vez que o Provedor de Justiça formula um pedido subsidiário de inconstitucionalidade dirigido, em primeira linha, à alínea 18), do artigo 2º, da Lei n.º 41/98 e, consequencialmente, à norma do artigo 46º da LGT, cuja análise acaba por convergir substantivamente, em passos essenciais, com a da questão da eventual desconformidade, e seu relevo, da última das normas referidas com a primeira.
4 – As questões suscitadas relativamente às normas ínsitas na alínea 18), do artigo 2º, da Lei n.º 41/98 e no artigo 46º da LGT têm como pressuposto que a matéria da suspensão do prazo de caducidade de liquidação dos impostos, como respeitante às “garantias do contribuinte”, se insere na competência reservada
(relativa) da Assembleia da República.
A análise desta doutrina implicaria a resposta a diversas questões, nomeadamente, as de saber:
- se na reserva parlamentar enunciada no artigo 165º, n.º 1, alínea i), da CRP entram todos os diferentes aspectos da disciplina fiscal submetidos pelo artigo
103º, n.º 2, ao “princípio da legalidade” (a “incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias do contribuinte”), em particular a matéria das “garantias do contribuinte” por cuja definição não passa a “criação de impostos”;
- se, admitindo uma resposta afirmativa à questão antecedente, qual o âmbito e extensão da reserva nessa parte (o que são, ou quais são as “garantias dos contribuintes” para esse efeito e até onde tem o respectivo regime de ser objecto de normação ou autorização normativa da Assembleia da República);
- se, ainda admitindo uma resposta afirmativa à primeira questão, a sujeição à reserva parlamentar apenas ocorrerá “na medida em que [as garantias] sejam objecto de restrição ou condicionamento e já não quando forem objecto de ampliação ou alargamento” (cfr. Casalta Nabais “Manual de Direito Fiscal”, Coimbra, 2000, p. 142), ou se, de todo o modo, continua a emergir nesta área específica a vertente “político-democrática” da reserva, tradutora do objectivo de assegurar a intervenção do Parlamento nas escolhas políticas em matéria fiscal;
- se, pressupondo que a definição dos prazos de caducidade de liquidação dos impostos é matéria de “garantias dos contribuintes”, coberta pela reserva parlamentar, tal como se decidiu no Acórdão n.º 168/02, in DR, II Série, de
1/6/2002, nessa reserva cairá também, necessariamente, a definição das circunstâncias suspensivas desses prazos;
- se, dando resposta positiva à questão precedente, é para o efeito irrelevante que o regime de caducidade instituído pelo artigo 46º, n.º 1, da LGT se configure como globalmente mais favorável aos contribuintes do que aquele que vigorava anteriormente, pois, muito embora a notificação do início de uma inspecção externa determine agora a suspensão do prazo de caducidade, o prazo regra de caducidade passou de 5 anos (anterior artigo 33º, n.º 1, do Código de Processo Tributário) para 4 anos (artigo 45º, n.º 1, da LGT), e, assim, mesmo ocorrendo a situação contemplada no artigo 46º, n.º 1, da LGT, aquele prazo não poderá ir além de 4 anos e meio.
A verdade, porém, é que se torna desnecessário resolver as questões enunciadas, uma vez que, aceite, por hipótese de raciocínio, o pressuposto da alegação de inconstitucionalidade – necessidade de autorização legislativa – se entende que as exigências consignadas no artigo 165º, n.º 2, da Constituição, se mostram, no caso, satisfeitas, como se passa a demonstrar.
5 – No que concerne à suficiência da autorização, não impõe o artigo 165º, n.º
2, da Constituição, que da autorização conste uma pré-definição, sintética mas minuciosa, de todas as soluções normativas a estabelecer pelo legislador governamental, mas tão-só a demarcação, em termos mais amplos ou mais estreitos, da área de intervenção deste (objecto e extensão da autorização) e o sentido geral dessa intervenção. Nisso há-de a Assembleia da República poder ir mais ou menos longe já que lhe fica sempre a possibilidade de apreciar ulteriormente e corrigir, se necessário, a legislação governamental (artigo 169º da CRP); e com isso fica também (sem que haja violação da Constituição) uma margem maior ou menor para o Governo modelar, em definitivo, as soluções normativas.
A Lei n.º 41/98 não só começa por delimitar, em termos sintéticos mas perfeitamente claros, a área e a matéria a que respeita a intervenção do Governo
(artigo 1º, com a epígrafe “Objecto”) como também especifica, depois (artigo 2º, com a epígrafe “Sentido e extensão”), ao longo de 42 pormenorizadas alíneas, essa indicação inicial e precisa em cada ponto a orientação que deve ser observada pela normação governamental. Não se pode, deste modo, dizer que, a um nível global e numa leitura conjugada de todo o enunciado das suas disposições, a habilitação legislativa conferida por essa Lei seja “insuficiente”, à luz das exigências constitucionais.
Mas é também assim no ponto específico em causa.
Com efeito, logo resulta da alínea 18), do artigo 2º, a habilitação do Governo para “rever os pressupostos da suspensão do prazo de caducidade”
(acrescentando-se a especificação de que esse prazo pode ser dilatado em certa hipótese) e, assim, para alterar (e certamente alargar) o que até então a lei dispunha sobre a matéria e se confinava ao artigo 33º, n.º 2, do CPT; e depois, melhor se percebe o intuito (e o alcance) da cláusula autorizadora em causa quando se atente que ela vem no seguimento de uma outra – a da alínea 17) com a qual se tem de conexionar e se considera decisiva (como, de resto, o entende o Primeiro-Ministro, na sua resposta) para a conclusão a que se chega – que começa logo por prever que o legislador governamental altere os prazos vigentes de caducidade da liquidação, eventualmente encurtando-os.
Não é pois “indefinido”, sem enunciar “de forma inteligível o sentido da autorização legislativa”, o conteúdo da alínea 18), do artigo 2º, da Lei n.º
41/98.
Reconhece-se que não se esclarece no preceito em causa em que termos hajam de ficar configurados os pressupostos da suspensão do prazo de caducidade da liquidação; mas isso, como atrás se sustentou, não tem uma norma autorizadora que dizê-lo; e se o acrescento feito no mesmo preceito da especificação que ficou referida exige um maior esforço interpretativo – necessidade a que não têm que ficar imunes as leis de autorização legislativa - tal não afecta a sua conformidade constitucional, sendo também que, ao cabo, é tarefa dos operadores jurídicos (e, antes de mais, neste caso, do Governo, como seu primeiro destinatário) apurar e fixar o sentido dos seus preceitos (cfr. cit. Acórdão n.º
168/02).
A questão posta pelo requerente só pode, pois, estar numa eventual violação do sentido da norma autorizadora pelo n.º 1 do artigo 46º da LGT. Mas também sem razão.
Argumenta o requerente que, com esse preceito, se cria uma circunstância suspensiva do prazo de caducidade susceptível de, pela sua utilização reiterada, permitir o protelamento indefinido daquele prazo, o que vai justamente ao arrepio do propósito da lei de autorização, que foi o do seu encurtamento (como logo o demonstra a alínea 17), do artigo 2º): um alargamento desse prazo, por via da suspensão, só foi admitido – sustenta o requerente – “nos casos de contratos fiscais no período a que os respectivos benefícios se aplicam”, como se especifica na alínea 18).
Ora, a interpretação, mas sobretudo o alcance, atribuídos no requerimento inicial ao artigo 46º, n.º 1, da LGT, não podem aceitar-se e, mesmo na situação aí contemplada, acaba por ter-se, como atrás se disse, um prazo de caducidade mais curto (ao menos em princípio) do que o anterior.
Com efeito, logo a letra do preceito consente uma interpretação no sentido de ele ter vindo permitir o estabelecimento de novas situações de suspensão do prazo de caducidade da liquidação, limitando-se a especificar ou particularizar, entre elas, a do caso dos “contratos fiscais”.
Acresce que esta interpretação é efectivamente a mais razoável pois não faria sentido que, tendo o legislador parlamentar reconhecido a necessidade de rever os pressupostos do regime de suspensão do prazo de caducidade da liquidação, houvesse tido em vista apenas o dito caso dos “contratos fiscais” e deixado de fora outras situações, não contempladas na legislação em vigor (a lei apenas ligava o efeito suspensivo à “instauração da acção judicial, no caso de situações litigiosas” (artigo 33º, n.º 2, do CPT) em que essa suspensão seria igualmente justificada. Mais: não faria sentido que o legislador deixasse de fora aquela dessas situações em que tal justificação se apresentava seguramente com maior acuidade e cabimento, em especial quando, a um tempo, se previa um encurtamento, em geral, dos prazos de caducidade.
Entende-se, pois, que a autorização para emitir uma norma como a do n.º 1, do artigo 46º, da LGT, não pode deixar de se considerar implicitamente contida na alínea 18), do artigo 2º, da Lei n.º 41/98.
Mas, decisivamente, (também aqui) porque, ao fim e ao cabo, o prazo de caducidade da liquidação se reduz, face ao regime anterior, o disposto na antecedente alínea 17), do mesmo artigo 2º, permitindo ao Governo “rever os prazos de caducidade do direito de liquidar os tributos (...) podendo-os encurtar de modo consentâneo com as possibilidades e o aumento de eficiência da Administração”, é credencial bastante para a emissão da norma contida no n.º 1, do artigo 46º, da LGT.
6 – A questão de constitucionalidade respeitante às normas da alínea 23) – no segmento destacado - do artigo 2º, da Lei n.º 41/98 e dos n.ºs 1 e 4, do artigo
76º, da LGT, tem igualmente como pressuposto o entendimento de que a matéria que elas versam – a força probatória das informações da inspecção tributária – cai na reserva relativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 165º, n.º
1, alínea i), combinado com o artigo 103º, n.º 2, da Constituição, como atinente
às “garantias dos contribuintes”.
Mas não se aceita um tal pressuposto.
Com efeito, regras sobre as provas admissíveis e o valor delas e, nomeadamente, sobre o valor probatório de informações oficiais, com as que estão em causa, respeitam à “instrução” do procedimento ou do processo tributário (assim, justamente, as tratando, e bem, a LGT, ao inseri-las, como não podia deixa de ser, no seu correspondente título e capítulo (Capitulo III do Título III)) . Sempre seria, pois, excessivo incluí-las naquela reserva (ainda que se queira, possa ou deva mesmo ver nessas regras um qualquer efeito ou dimensão garantística, designadamente por poderem implicar com a distribuição do ónus da prova).
De todo o modo, tendo em conta o que supra se disse sobre a “suficiência” das autorizações legislativas, não se deixará de dizer que a remissão que na alínea
23) se faz para o “Código de Procedimento Administrativo” não é despicienda para apontar e definir o “sentido” geral da autorização nela contida.
O que fica exposto é bastante para concluir que a alínea 23), do artigo 2º, da Lei n.º 41/98 e os n.ºs 1 e 4, do artigo 76º, da LGT, não violam o disposto no artigo 165º, n.º 1, alínea i), combinado com o artigo 103º, n.º 2, da CRP.
Não deixará, no entanto, de se acrescentar o seguinte:
Em primeiro lugar, não faz sentido a afirmação – que visa sublinhar o alcance, em certo aspecto, da norma da LGT agora em apreço – de que “ela estende a atribuição da força probatória”, que reconhece às informações da fiscalização, e que antes estava só prevista para os “processos judiciais” a “todo o procedimento tributário”, tal como definido no artigo 54º da LGT (art.º 26º do requerimento inicial).
Na verdade, muito embora, antes, se tratasse da força probatória das
“informações oficiais” tão só a propósito da impugnação judicial (artigo 134º, n.º 2, do CPT), claro é que a Administração também delas se podia servir e se servia – naturalmente com a mesma força probatória, e, sendo o caso, com prejuízo das indicações fornecidas pelos contribuintes – nas fases não contenciosas do procedimento tributário, fosse a fase da liquidação ou da correcção desta, fosse a reclamação graciosa (quanto a esta última, cfr., de resto, artigo 98º, n.º 2, do CPT).
Em suma, pois, a norma em apreço apenas “formaliza” e “codifica”, quanto a esse aspecto, um princípio e uma situação anteriores.
Em segundo lugar, não é, no mínimo, fácil encontrar suporte para a afirmação do requerimento inicial (artigo 28º) de que, com a norma em análise, se “deixa de consagrar sem limites a regra da presunção de veracidade das declarações dos contribuintes (...) como era o caso do regime constante do Código de Processo Tributário”, com o que – e é também um pressuposto e um ponto central na argumentação do requerente, para acentuar o carácter inovatório do regime em questão – no âmbito de tal norma se “promove uma verdadeira inversão do ónus da prova, que passa assim [nas] circunstâncias precisas [nela previstas, de informações oficiais fundamentadas em critérios objectivos] a pertencer ao contribuinte”, ao contrário do que antes sucedia.
Na verdade, no quadro legal que imediatamente antecedeu a LGT, reconheciam-se as declarações dos contribuintes como base do apuramento da matéria tributável, desde que apresentadas nos termos da lei e fornecidos por aqueles os elementos necessários à verificação da sua situação tributária (artigo 76º, n.º 2, do CPT), e estabelecia-se uma presunção de veracidade dos dados da contabilidade ou escrita dos sujeitos passíveis do imposto, e dos apuramentos dela decorrentes, quando a mesma “se mostre organizada segundo a lei comercial e fiscal” e não se verifiquem “erros, inexactidões ou outros indícios fundados de que ela não reflecte a matéria tributável efectiva do contribuinte” (artigo 78º do CPT). Por outro lado, e a um tempo, dispunha-se que “as informações oficiais só têm força probatória quando devidamente fundamentadas” (artigo 134º, n.º 2 do CPT).
Àquela primeira vertente do regime do CPT corresponde agora o artigo 75º da LGT, o qual, nos seus n.ºs 1 e 2, estabelece uma presunção de veracidade das declarações e escrita do contribuinte, em termos, não só substantivamente, mas até literalmente, similares aos do CPT (abstraindo, neste momento, do disposto na alínea c), do n.º 2, que introduz uma hipótese ou situação nova não importando à comparação e que, aliás, há-de ainda ser analisada em separado). À segunda dessas vertentes corresponde, por sua vez, o artigo 76º, n.º 1 da LGT, aqui em análise.
Ora não se vê que o confronto dos preceitos de um e de outro diploma ofereça dois regimes diversos, e inversos um do outro, quanto à distribuição do ónus da prova entre contribuinte e administração, emergente do funcionamento combinado dos dois pares de preceitos.
De resto, nem sequer as normas sobre o valor probatório das declarações dos contribuintes, por um lado, e das informações oficiais, por outro, têm de operar sempre e necessariamente em contraposição (e implicando, portanto, com a distribuição do ónus da prova) pois pode cada um desses elementos de prova ser
útil ou relevante, num dado caso concreto, para factos diferentes ou para aspectos diferentes da situação fáctico-tributária geral.
Por último – e quanto à norma, essa efectivamente nova, do n.º 4, do artigo 76º, da LGT – importa, desde logo, sublinhar não se verem razões para considerá-la de modo específico e diverso, no tocante à problemática da “extensão” da reserva parlamentar supra analisada.
Mas, além disso, importa acrescentar – o que, de resto, interessa ainda àquela problemática – que o preceito de que ora se trata se reveste, em bom rigor, de um carácter por assim dizer “derivado” e “secundário” já que a relevância das informações prestadas por Administrações tributárias estrangeiras depende e resulta, em primeira linha, das “convenções internacionais” de assistência mútua, para que nesse preceito se remete, celebradas pelo Estado português e vinculando-o.
7 – Com a ampliação do pedido, referida em 1, faz parte do objecto do processo a norma da alínea c), do artigo 87º, da LGT, quer na sua versão originária como naquela que foi introduzida pela Lei n.º 100/99 e se encontra em vigor.
Contudo, apenas se conhecerá da segunda versão.
Na verdade, é jurisprudência reiterada deste Tribunal que a apreciação, em fiscalização abstracta de constitucionalidade, de normas entretanto revogadas só se justifica quando ocorra um interesse jurídico relevante, isto é, quando se revista de um conteúdo jurídico apreciável.
Ora, tendo a LGT entrado em vigor em 1 de Janeiro de 1999 (cfr. artigo 6º do Decreto-Lei n.º 398/88), a citada alínea c), do artigo 87º, na sua versão originária, acabou por não vigorar senão durante escasso meio ano, o que só por si já significaria não ter sequer tido a oportunidade de ser aplicada; e nem poderia ter sido aplicada pois, até à sua revogação (como até hoje) não foram definidos, pelo modo previsto no artigo 89º, quaisquer dos indicadores objectivos de actividade referidos no preceito.
Não se verifica, assim, qualquer interesse jurídico relevante para conhecer da norma do artigo 87º, alínea c), da LGT, na sua versão originária.
Outras alterações legislativas ocorreram, entretanto, com a Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro – é o caso do aditamento de duas novas alíneas (d) e e)) ao citado artigo 87º, da LGT, assim se introduzindo outras tantas novas situações de determinação da matéria tributável por métodos indirectos e do artigo 89º-A em ligação com o preceituado na primeira alínea aditada ao artigo 87º.
Estas alterações em nada afectaram os preceitos em causa (intocados), pelo que não ficou prejudicado o conhecimento do pedido no que concerne às normas contidas nos mesmos preceitos.
8 – Na redacção actual do artigo 87º, alínea c), da LGT prevê-se, como se viu, que, se a matéria tributável apresentada ou declarada pelo sujeito passivo “se afastar, sem razão justificada, mais de 30 % para menos ou, durante três anos seguidos, mais de 15% para menos” da que resultaria de certos “indicadores objectivos da actividade de base técnico-científica”, referidos na própria LGT, se procederá à avaliação indirecta dessa matéria tributável.
Conjugando o disposto neste preceito com o que se estabelece no artigo 89º, n.º
1, da mesma Lei, é necessário, para que se passe à avaliação indirecta, que:
- não haja justificação, por parte do sujeito passivo, para o referido afastamento em causa dos indicadores objectivos;
- tenham decorrido mais de três anos sobre o início do exercício da actividade.
De notar que aquele artigo 89º, n.º 1, tal como artigo 90º, n.º 1, também da LGT, continua a referir-se a “matéria tributável (...) significativamente inferior”, sem se ter adaptado à nova redacção da alínea c), do artigo 87º, onde se passou a objectivar o afastamento relevante da aplicação dos indicadores objectivos da actividade, o que não significa que se não deva entender – sob pena de incoerência e de desfuncionalidade do sistema – que esses preceitos se mostram implicitamente modificados de modo correspondente e semelhante.
Os aludidos indicadores são definidos anualmente pelo Ministro das Finanças, após audição das associações empresariais e profissionais e “podem consistir em margens de lucro ou rentabilidade, que tendo em conta a localização e dimensão da actividade, sejam manifestamente inferiores às normais do exercício da actividade e possam, por isso, constituir factores distorcidos de concorrência”
(artigo 89º, n.º 3, da LGT).
É de acordo com esses indicadores que se efectuará a determinação da matéria tributável quando se verificarem os pressupostos previstos no artigo 87º, alínea c) e 89º, n.º 1 (artigo 90º, n.º 2, da LGT).
Quando se verificar a situação em apreço não vale a presunção de que são
“verdadeiras e de boa fé” as declarações dos contribuintes (artigo 75º, n.ºs 1 e
2, alínea c), da LGT).
A decisão de tributação pelos métodos indirectos, no caso, “descreverá o afastamento da matéria tributável do sujeito passivo dos indicadores objectivos da actividade de base científica e indicará os critérios utilizados na sua determinação” e “a fundamentação deverá também incluir as razões da não aceitação das justificações apresentadas pelo contribuinte” (artigo 77º, n.ºs 4 e 5, da LGT).
Interessa, ainda, para completar o enquadramento legal da solução jurídica questionada, salientar que na impugnação judicial da liquidação originada por avaliação indirecta pode ser invocada qualquer ilegalidade desta, nomeadamente por erro nos seus pressupostos, caso em que a impugnação deverá ser precedida de prévia reclamação (artigo 86º, n.ºs 2 a 5, da LGT).
Por outro lado, sempre poderá o contribuinte lançar mão do pedido de revisão da matéria colectável fixada por métodos indirectos – designadamente pondo em causa os pressupostos da determinação indirecta da matéria colectável – nos termos dos artigos 91º e segs. da LGT.
É a LGT que institui (inovando) o regime legal em causa – a avaliação indirecta
(através de “métodos indiciários” ou de “presunções”) estava contemplada no CIRS e no CIRC, mas apenas para os casos de “impossibilidade”, resultante de uma qualquer das circunstâncias na lei, e demonstrada e fundamentada pela Administração, de comprovação e quantificação directa daquela base de tributação, ou seja, para o caso que continua a prever-se, em termos fundamentalmente idênticos, na alínea b), do artigo 87º e no artigo 88º da LGT.
9 – Invoca o requerente, como se viu, a violação do princípio da proporcionalidade, aparentemente em termos autónomos (como princípio da proibição do excesso).
Considera-se, no entanto, que o princípio só deverá ser tido em conta – e se for o caso – em conjugação com qualquer dos outros que vêm invocados, como, de resto, o requerente não deixa de o fazer qualificando a medida como “excessiva, irrazoável e desproporcionada, com repercussões óbvias ao nível do valor fundamental da não discriminação e com sacrifícios dos princípios da capacidade contributiva e da tributação do rendimento real consignados na Lei Fundamental”
(artigo 66º do requerimento).
Pode, no entanto, dizer-se, desde já, que, mesmo numa perspectiva conjunta, não devem ter-se como relevantes considerações e argumentos centrados sobre a eficácia e as consequências do regime legal – nomeadamente quanto ao efeito possível de o contribuinte evasor “tender a apresentar a respectiva declaração até aos limites do valor da matéria colectável fixado para o Ministro das Finanças para a actividade em causa, ficando quanto a eventuais dados não fornecidos na posição de insuspeito” (artigo 65º do requerimento).
Trata-se aqui de um tipo de considerações que relevam já, afinal, de uma reavaliação dos prognósticos do legislador que, no ensinamento de Otto Bachof
(“Estado de direito e poder político: os Tribunais Constitucionais entre a Constituição e a política”, n.º VI-4, in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, vol. VI, 1980), o “tribunal constitucional tem de aceitar (...) se eles não foram manifestamente erróneos”. Afloramentos desta doutrina podem ver-se na jurisprudência do Tribunal Constitucional, como é o caso do Acórdão n.º 65/02, in DR, II Série, de 1/3/2002.
O eventual relevo, no caso, do princípio da proporcionalidade, em combinação com algum dos demais mencionados, haverá de passar, pois, por outras considerações.
10 – O princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de “uniformidade” – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação.
Consiste este critério em que a incidência e a repartição dos impostos – dos
“impostos fiscais” mais precisamente – se deverá fazer segundo a capacidade económica ou “capacidade de gastar” (na formulação clássica portuguesa, de Teixeira Ribeiro, “A justiça na tributação” in “Boletim de Ciências Económicas”, vol. XXX, Coimbra 1987, n.º 6, autor que também se lhe refere como “capacidade para pagar”) de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício).
A actual Constituição da República não consagra expressamente este princípio com longa tradição no direito constitucional português - a Carta Constitucional de 1826 expressa-o na fórmula de tributação “conforme os haveres” dos cidadãos e, na Constituição de 33, o artigo 28º consigna-o na obrigação imposta a todos os cidadãos de contribuir para os encargos públicos “conforme os seus haveres”)
Não obstante o silêncio da Constituição, é entendimento generalizado da doutrina que a “capacidade contributiva” continua a ser um critério básico da nossa “Constituição fiscal” sendo que a ele se pode (ou deve) chegar a partir dos princípios estruturantes do sistema fiscal formulados nos artigos 103º e
104º da CRP (cfr. Casalta Nabais “O dever fundamental de pagar impostos”, págs.
445 e segs., onde, no entanto, se defende que, embora o princípio não careça – para ter suporte constitucional – de preceito específico e directo, não é de todo inútil ou indiferente a sua consagração expressa).
Autores há, porém, que contestam a operatividade jurídica prática ao princípio da capacidade contributiva, em razão, nomeadamente, da sua acentuada e indiscutível indeterminabilidade, não se estando aí senão perante uma “fórmula passe-partout” imprestável para um teste jurídico-constitucional dos impostos, quer porque se limitaria a “estabelecer que “deve pagar-se o que se pode pagar” sem definir o “poder pagar”, quer porque “não forneceria nenhum critério concreto para a repartição justa dos encargos fiscais por todos os contribuintes”, quer ainda porque “diria muito pouco sobre as taxas a considerar correctas dos impostos ou sobre a sua exacta progressão, caso esta, em alguma medida possa resultar de um tal princípio” (cfr. Casalta Nabais ob. cit. págs. 459 e 461).
Diferentemente, outros autores, como é o caso do próprio Casalta Nabais reconhecem ainda “importantes préstimos” ao princípio, o qual “afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que, na selecção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja erija em objecto ou matéria colectável de cada imposto um determinado pressuposto que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respectivo imposto” e tem “especial densidade no concernente ao(s) imposto(s) sobre o rendimento” exigindo “um conceito de rendimento mais amplo do que o rendimento-produto” e implicando “quer o princípio do rendimento líquido (...) quer o princípio do rendimento disponível
(...)” (“Direito Fiscal”, págs. 157/168).
De todo o modo, deve reconhecer-se não ser fácil retirar consequências jurídicas muito líquidas e seguras do princípio da capacidade contributiva, traduzidas num juízo de inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adoptadas pelo legislador fiscal.
Assim, desde logo se imporá a maior contenção, reserva e dúvida, quanto à possibilidade de se chegar a um tal juízo sobre o regime legal em apreço, a partir do seu confronto com o mesmo princípio. E isto mesmo quando se aceite que tal princípio é um parâmetro constitucional susceptível de efectivamente assumir relevo no caso.
A verdade, porém, é que, no caso, o princípio da capacidade contributiva não é sequer parâmetro constitucional relevante para a apreciação da solução legal em causa.
Com efeito, esta solução legal não implica critério de imposição diverso daquele em que se exprime, no seu mais rigoroso e estrito sentido, o referido princípio – ou seja um critério de repartição dos impostos (ou de certos impostos) em função dos “haveres” ou da “capacidade económica”,
“capacidade de gastar” ou “capacidade de pagar” dos contribuintes – limitando-se a definir e estabelecer o instrumento, método ou procedimento que, em dadas circunstâncias, há-de utilizar-se justamente para apurar aquela capacidade económica.
A isto se poderá contrapor que as dimensões do princípio são mais vastas, delas emergindo, logo primariamente e como algo de necessário, a ideia ou o postulado da existência da capacidade económica como substracto ou pressuposto insuprível da tributação - “a capacidade contributiva tem de basear-se na força ou potencialidade económica do contribuinte, expressa na titularidade ou utilização da riqueza (ou do rendimento)”, escreve, a propósito, Casalta Nabais, “O dever fundamental...”, pág. 463.
Mas, ainda aqui, o princípio da capacidade contributiva se situa a montante da solução legal uma vez que esta opera no quadro das normas de incidência que pressupõem e visam atingir manifestações de capacidade económica.
Objectar-se-á que certos métodos de tributação, pela sua mesma estrutura, podem, afinal, acabar por conduzir à imposição de situações ou realidades em que falece, de todo, a capacidade contributiva, ou (e com maior probabilidade) em que a medida do imposto exigido não tem efectiva correspondência com essa capacidade, indo além (e, porventura, bastante além) dela; é o que ainda Casalta Nabais (“O dever fundamental...”págs. 497/498 e
501/502) considera, quando se refere a “soluções tradicionais do direito dos impostos” com suporte no “interesse fiscal”, em particular as “presunções”, considerando esta técnica legislativa “movida por legítimas preocupações de simplificação de praticabilidade das leis fiscais”, mas que “tem de compatibilizar-se com o princípio da capacidade contributiva, o que passa, quer pela ilegitimidade das presunções absolutas, na medida em que obstam à prova da inexistência da capacidade contributiva visada na respectiva lei, quer pela idoneidade das presunções relativas para traduzirem o correspondente pressuposto económico do imposto” e, mais adiante, aludindo ao “rendimento normal”, quando sustenta que ele “apenas poderá ser contestado nos casos em que a tributação conduza a situações de intolerável iniquidade”.
Mas, se nos ativermos ao que aquele autor escreve na obra citada
(anterior à vigência do regime legal agora em apreço), não pode deixar de se concluir que a solução em causa se compatibiliza com o princípio da capacidade contributiva. É que, a admitir-se que na hipótese em apreço se está perante uma
“presunção”, ela admite prova em contrário e, a considerar-se que se trata de um tributação pelo “rendimento normal”, não pode dizer-se que ela necessariamente conduza a “situações de intolerável iniquidade”.
Não se desconhece que, em escrito posterior, o mesmo autor veio sustentar a desconformidade constitucional da norma ínsita na alínea c) do artigo 87º da LGT (“O quadro constitucional da tributação das empresas”, in Nos
25 anos da Constituição da República Portuguesa de 1976, ed. AAFDL, 2001).
Simplesmente, aí, o fundamento do juízo de inconstitucionalidade situa-se já num plano diferente do das considerações gerais a que atrás se fez referência; embora tendo a ver com elas, ele assenta na equiparação a uma inadmissível “presunção absoluta de rendimentos” da eventual situação (“situação limite”) em que a tributação do rendimento normal não admita prova em contrário. Mas, no caso, não terá cabimento pôr as coisas nesses termos já que ao contribuinte começa por ser dada a possibilidade de justificar o afastamento da sua matéria tributável dos indicadores-padrão (assim podendo evitar a aplicação destes), o que é afinal menos do que exigir-lhe a prova de que não obteve o rendimento correspondente a tais indicadores.
Nestes termos, considera-se que a solução legal em apreço, tal como emerge dos artigos 87º, alínea c), 89º, 90º, n.º 2 e 75º, n.º 2, alínea c), da LGT, não afecta o princípio da capacidade contributiva.
11 – Mas será que essa solução ofende o princípio da tributação do rendimento real ?
É o que se passa a apreciar.
Dispõe o artigo 104º, n.º 2 da Constituição:
“A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real.”
“Rendimento real” é, segundo o ensinamento de Teixeira Ribeiro,
“aquele que se apura ou se presume o contribuinte obteve”; o conceito diferencia-se do de “rendimento normal” que, de acordo com o mesmo ensinamento,
“significa uma de duas coisas: o rendimento médio de uma série de anos, que um agente económico poderia obter operando em condições normais: isto é operando nas condições mais frequentes naquela época e lugar, e, portanto, com a diligência, técnica e preços geralmente praticados. É um rendimento que, sendo médio, todos os anos se atribui, embora com possíveis actualizações, ao respectivo agente económico; o rendimento de determinado ano, que poderia obter-se em condições normais. Este é um rendimento que só se atribui ao respectivo agente económico naquele ou naqueles anos em que as condições prevalecentes lhe possibilitariam consegui-lo.”(“Lições de Finanças Públicas, 3º ed., 1989, n.º 33 d)”).
Sendo assim o rendimento real aquele que o contribuinte efectivamente auferiu, há-de ser em princípio com base na declaração que ele faz ao Fisco que se determinará a matéria colectável (o lucro tributável) sobre a qual incidirá o imposto; mas, constituindo a tributação do rendimento presumido também uma forma de determinar o rendimento real, a utilização deste critério insere-se, ainda, plenamente, no princípio que o artigo 104º, n.º 2, da Constituição consagra.
Note-se, aliás, que o apuramento do rendimento real (no sentido do rendimento efectivamente auferido), com base nas declarações ou na escrita do contribuinte, não prescinde, como se sabe, de presunções.
Desde logo, a aceitação da declaração do contribuinte como base da tributação do rendimento real assenta numa presunção: a da veracidade da contabilidade ou da escrita. Isto significa, nas palavras de A. Carlos Santos
(“A presunção da veracidade na contabilidade” in “Da questão fiscal à reforma da reforma fiscal”, pág. 90), “que a contabilidade não exprime directamente a situação dos contribuintes, mas indirectamente, através de uma presunção legal.” E acrescenta o mesmo autor:
“Não se trata, obviamente, de uma presunção juris et jure , e como tal inilidível. É uma presunção que assenta em certos pressupostos, o da contabilidade ter sido organizada de acordo com a lei comercial fiscal (e com os princípios da normalização contabilística) e o de que os dados e apuramento dela decorrentes não contenham erros, inexactidões ou outros indícios fundados de que ela não reflecte a matéria tributável do contribuinte.”
Por outro lado, também os rendimentos declarados, ainda que de acordo com uma contabilidade bem organizada, não deixam de assentar em presunções ou ficções.
Escreveu, a propósito, o mesmo autor sobre o apuramento dos rendimentos brutos em sede da categoria C (de acordo com a legislação em vigor) e de IRC (“Sobre a colecta mínima” in ob. cit. págs. 129/130):
“Apenas por ficção jurídica se poderá dizer que os valores apurados contabilisticamente correspondem a rendimentos reais, uma vez que, também aqui, o sistema de determinação da matéria colectável está repleto de valores normais e de presunções. Em última instância, o rendimento efectivamente sujeito a tributação, mesmo quando apurado através da contabilidade bem organizada, é sempre um dado construído segundo escolhas do legislador, o qual pondera em que medida se deve ou não afastar dos registos contabilísticos da realidade económica subjacente.
A própria contabilidade assenta em múltiplos pressupostos ficcionais pelo que mais rigoroso seria falar de sistemas mistos. Um grande nome das Finanças Públicas, Einaudi, falava, a este propósito, do mito da procura contabilística da base tributável. O rendimento de um exercício é sempre um valor subjectivo. Porque assente num conjunto de avaliações e presunções. Basta pensar na valorização dos stocks, nas quotas de amortizações, nas provisões, no próprio princípio da anualidade dos exercícios e do balanço, fórmulas que se afastam de uma constatação de um verdadeiro rendimento real e efectivo para se aproximarem das de rendimento presumido ou normal”.
O que se deixa dito sobre uma realidade que o legislador constituinte não desconhecia, tem apenas o alcance de “relativizar” o sentido com que o artigo 104º n.º 2 da CRP estabelece o princípio da tributação das empresas “sobre o seu rendimento real”, afastando uma pretensa identificação, em termos absolutos, com uma tributação isenta de presunções, exclusivamente assente na contabilidade ou nas declarações do contribuinte.
E isto não tendo ainda em conta o que naquele preceito constitucional Xavier de Basto qualifica de “moderador de sentido”: a expressão
“fundamentalmente”.
Com efeito, se a determinação do rendimento tributável de acordo com presunções exprime ainda a tributação de um rendimento “real”, aquela expressão terá necessariamente um sentido mais amplo do que apenas o de consentir a tributação de um rendimento presumido como defende Teixeira Ribeiro (“A reforma fiscal”, pág. 130). É, aliás, o que sustenta A. Carlos Santos quando escreve
(“Os métodos indiciários e a questão fiscal” in ob. cit. pág. 91):
“O princípio da tributação do rendimento real no que respeita às empresas (isto é, dos lucros realmente verificados tem aliás expressão constitucional (art.º 107º n.º 2), se bem que a Constituição realisticamente admita, em termos excepcionais é certo a tributação de lucros normais ou presumidos e seja omissa quanto aos métodos através dos quais se conhecem os lucros reais. É pois ainda em nome dessa necessidade que a declaração ou a escrita dos contribuintes podem ser postas em causa. Em certos casos, com efeito, há que ver se os rendimentos reais podem ser, complementar ou exclusivamente, atingidos por métodos diversos do método directo, declarativo ou contabilístico, ou se, excepcionalmente, quando haja dificuldade de tributar rendimentos reais se não deve a lei abrir a possibilidade de, nesses casos, a administração recorrer à determinação de outras formas de rendimento.”
Note-se, de resto, que mesmo Teixeira Ribeiro (ob. cit., pág. 307) com a interpretação que faz do preceito constitucional, admite (como não poderia deixar de ser) situações em que “não há mais remédio do que tributar o rendimento normal: quando se torna impossível conhecer com suficiente aproximação o rendimento real”; e Casalta Nabais (“O quadro constitucional da tributação das empresas” in ob. cit., pág. 367), que sustenta a inconstitucionalidade da norma do artigo 90º, n.º 2, da LGT, consente também que o preceito constitucional “não impede, naturalmente, que haja empresas que não sejam tributadas pelo seu rendimento real mas pelo seu rendimento normal.”
Ainda para uma perfeita compreensão do disposto no artigo 104º, n.º
2, da CRP, importa ponderar o que Casalta Nabais escreve sobre a génese e finalidade desta norma na mesma obra, págs. 359 e segs.) que o leva à seguinte conclusão:
“(...) o que o legislador Constituinte quis em 1976, e continua a querer em 2001, é que, na sua concretização legal, o nosso sistema de tributação das empresas se aproxime tanto quanto possível do ideal, ou seja, consagre uma tributação das empresas que incida fundamentalmente sobre o seu rendimento real. Isto significa que o legislador fiscal se encontra constitucionalmente vinculado
à instituição da regra, do princípio, da tributação das empresas pelo seu rendimento real.
O que não implica que não haja qualquer outra possibilidade de tributação das empresas. Com efeito, o legislador não deixa de ter aí uma razoável dose de liberdade conformadora, traduzida em múltiplas faculdades, muitas delas, decorrentes do próprio âmbito do princípio constitucional em análise”.
Em suma, pois, a tributação das empresas pelo seu rendimento real constitui um princípio ou uma regra que permite, excepcionalmente, desvios ou excepções.
Assente a declaração do contribuinte numa presunção de veracidade que, segundo o ensinamento de Teixeira Ribeiro (“Sistema fiscal português” n.º 6 in Boletim de Ciências Económicas, 1991) varia consoante “o grau de confiança que merecem os elementos fornecidos pelo contribuinte”, pode o legislador prever situações baseadas em elementos de normalidade em que o ónus da prova se inverta contra o contribuinte.
O estabelecimento dessas presunções há-de, porém, ter um fundamento de razoabilidade e não onerar o contribuinte com um prova impossível ou excessivamente onerosa que transforme em regra a excepção da tributação pelo rendimento normal.
12 - É agora altura de confrontar o regime constitucional com a regime legal em causa supra delineado.
Anota-se, desde já, que, inserindo-se esse regime na LGT, ele teria um âmbito de aplicação transcendendo o do princípio do artigo 104º, n.º 2, da CRP – respeitante à tributação das empresas, societárias ou singulares. Haveria, assim, que limitar ou reduzir correspondentemente, desde logo, o campo do seu confronto com este princípio.
Em boa verdade, porém, o que sucede é que tal regime, apesar de inscrito nesse diploma geral, se acha especificamente concebido e vocacionado para a tributação do rendimento das empresas – como logo o mostram o teor e o conteúdo da alínea c), do artigo 87º e do n.º 2, do artigo 89º (atente-se – e é quanto basta – no facto de os indicadores se reportarem às diferentes
“actividades” económicas e às correspondentes “margens de lucro ou rentabilidade”). Terá, assim, cabimento um confronto desse regime in totum, e sem descontos, com o princípio constitucional ora em causa
Isto dito, importa salientar que as normas contidas na alínea c), do artigo 87º e nos artigos 89º, n.ºs 1 e 2 e 90º, n.º 2, da LGT, prosseguem claramente uma finalidade de “combate á evasão fiscal” (artigo 2º, n.ºs 24) e
25), da Lei n.º 41/98).
Como é sabido – e torna-se desnecessário demonstrá-lo - as estatísticas revelam que o fenómeno da evasão fiscal assumiu uma expressão tal que leva Saldanha Sanches (“Sistema e reforma fiscal: que evolução” in Fisco, ano IX, n.º 82/83, págs. 109 e segs.) a caracterizar como um dos “aspectos centrais da situação fiscal portuguesa” a “fraude fiscal endémica nas pequenas e médias empresas e que se vai revelar em situações de reiterado incumprimento nas
áreas sensíveis do IRC do IRS e do IVA”, acrescentando (apesar da censura à
“miragem do refúgio do lucro normal”) que “faltando meios para controlar as declarações dos contribuintes, o direito de ser tributado segundo a declaração transformou-se no direito de pagar o imposto resultante de uma declaração fraudulenta e o direito de ser tributado de acordo com o lucro real no direito de ver reconhecidos pela Administração situações empresariais caracterizadas por prejuízos perpétuos”.
Ora, considerando que as receitas fiscais representam um instrumento necessário para o cumprimento pelo Estado das tarefas fundamentais que a Constituição lhe impõe (artigo 9º) e que a política fiscal é um dos meios através do qual o Estado deve “promover a justiça social, assegurar a igualdade de oportunidades e operar as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento” (artigo 81º, alínea b), da Constituição) há-de reconhecer-se que a situação prevista na alínea c), do artigo 87º, da LGT, como um dos pressupostos da avaliação indirecta da matéria colectável, bem como o critério estabelecido no artigo 90º, n.º 2, da mesma Lei, têm, a esta luz, total respaldo.
Não significa isto, obviamente, que o combate à evasão fiscal legitime todo e qualquer instrumento legal com desrespeito pelos princípios da
“constituição fiscal”. Mas esses princípios, nomeadamente, e com a plasticidade que de algum modo o caracteriza, o que consta do artigo 104º, n.º 2, da CRP, não podem deixar de ser lidos e aplicados em conjugação com outros ditames constitucionais.
E que significa, afinal, o pressuposto em causa ?
Antes de mais, ele tem uma referência essencial: “os indicadores objectivos da actividade de base técnico científica” “definidos anualmente, nos termos da lei, pelo Ministro das Finanças” (artigos 87º, alínea c) e 89º, n.º 2, da LGT).
Como se deixou dito, a “lei” para que o artigo 89º, n.º 2, da LGT, remete e onde presumivelmente devem constar os critérios a que os indicadores devem obedecer não foi ainda aprovada; dá, porém e desde logo, o mesmo preceito um critério rector – “margens de lucro ou rentabilidade, tendo em conta a localização e dimensão da actividade”.
Traduz, claramente, o preceito uma preocupação de rigor
(técnico-científico) que aponta não só para uma ponderação da conjuntura económica (e daí a anualidade da fixação dos indicadores) como também para uma proximidade às realidades em causa (a localização e a dimensão da actividade).
E será mesmo de nos questionarmos sobre se a razão por que tais indicadores não foram ainda aprovados não reflectirá aquela mesma preocupação e a extrema dificuldade de uma tanto quanto possível aproximação aos rendimentos reais...
Por outro lado, para determinar a aplicação da avaliação indirecta, o afastamento do indicador tem que situar-se – viu-se já - em mais de 30 % para menos ou, durante três anos seguidos, mais de 15% para menos, não relevando os três anos subsequentes ao início da actividade.
Trata-se, pois, de pressupostos que razoavelmente justificam a norma constante do artigo 75º, n.º 2, alínea c), da LGT – a não verificação da presunção de veracidade das declarações do contribuinte; o grau de confiança nessas declarações degrada-se, pois só circunstâncias anómalas justificam que uma actividade económica, prosseguida com finalidades lucrativas, apresente resultados significativamente abaixo de uma média apurada com o referido rigor.
Mas se este indicador (ou o afastamento dele) é adequado para detectar situações de evasão ou de fraude fiscal e não merece, neste plano, censura constitucional, a questão que a seguir se coloca é a de saber se a determinação da matéria colectável nos termos do artigo 90º, n.º 2, da LGT sai igualmente incólume no teste da sua constitucionalidade, tendo como parâmetro o princípio consagrado no artigo 104º, n.º 2, da CRP em conjugação com o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso.
Reconhece-se, no confronto dos regimes estabelecidos nos n.ºs 1 e 2, do artigo 90º, da LGT, que, enquanto no primeiro a determinação da matéria tributável “poderá ter em conta”, ao lado de elementos objectivos (alíneas a), b) e c), do n.º 1) outros que se conexionam directamente com a situação concreta e subjectiva do contribuinte, no segundo, ela se efectua de acordo com os
“indicadores”.
A verdade, porém, é que a distinção entre rendimento presumido e rendimento normal é muitas vezes difusa, particularmente quando os indicadores são fixados com um rigor que os aproxime, tanto quanto possível, da realidade
(Xavier de Basto, in Fisco n.ºs 82/83, pág. 121, comentando a observação de que
”no plano da aplicação prática, a fronteira entre tributação do rendimento presumido e tributação do rendimento normal é evanescente”, diz que “assim será em muitos casos”), não podendo sequer afirmar-se que a determinação da matéria tributável pelo segundo conduza necessariamente a tributação mais elevada.
Mas, seguramente, o que não pode dizer-se é que o regime legal em causa imponha o rendimento normal como método principal de determinação da matéria colectável.
Na verdade, ele é, desde logo, um regime que se aplica a situações que, considerando os “indicadores” de referência e o grau de afastamento que o lucro declarado representa (acrescendo, numa das situações, o prolongamento, por três anos seguidos dessa situação), não podem ter-se por normais – elas são anómalas ou excepcionais.
Depois, a determinação da matéria tributável de acordo com os indicadores é a conclusão de um procedimento que passa pela injustificação, por parte do contribuinte, do referido afastamento: o contribuinte tem – como atrás se disse – a possibilidade de justificar o afastamento da sua matéria tributável; e só se o não fizer a tributação é feita de acordo com os indicadores (artigos 89º, n.º 1 e 90º, n.º 2, da LGT)
Acentue-se, ainda, que a não aceitação por parte da Administração tributária das razões apresentadas pelo contribuinte tem que ser fundamentada, por força do disposto no artigo 77º, n.º 5, da LGT, fundamentação essa que não se subtrai ao poder sindicador dos tribunais tributários em caso de impugnação.
Por outras palavras, é concedido ao contribuinte o poder bastante para ilidir a presunção de que o rendimento declarado é inferior ao real, o que parece de algum modo contrariar a afirmação do Xavier de Basto (loc. e pág. cit.) de que num sistema de tributação normal “já não tem sentido a elisão da presunção”. Se, teoricamente, o não tem, a verdade é que a consagração legal desta faculdade acaba por conferir ao critério da tributação pelo rendimento normal um carácter de ultima ratio.
E, contrariamente ao que Francisco Sousa Câmara entende (“A avaliação indirecta da matéria colectável e os preços de transferência na LGT” in “Problemas fundamentais do direito tributário”, pág. 355), não se considera que o regime em causa faça recair sobre o contribuinte “a prova diabólica de demonstrar as razões pelos quais os seus resultados são mais reduzidos do que a média do sector”.
Não se vê, com efeito, como dificuldade insuperável, a prova de factos particulares, ligados à concreta actividade do contribuinte, que fundamentem, em termos de razoabilidade, a obtenção do lucro tributável declarado.
Poderá, no entanto, censurar-se a aplicação do critério nos casos em que o contribuinte dispõe de uma contabilidade organizada e sã, tendo em conta que, em situações de incumprimento grave de deveres fiscais (v.g. as que se prevêem nas alíneas a), b) e c), do artigo 88º, da LGT) a tributação é feita nos termos do artigo 90º, n.º 1, da LGT – ou seja, com a consideração de elementos reais -, o que traduziria uma solução injusta, iníqua ou arbitrária; é este, aliás, o caso em que Xavier de Basto entende verificar-se uma solução
“claramente injusta e desequilibrada” (O princípio da tributação do rendimento real e a Lei Geral Tributária” in Fiscalidade, n.º 5, Janeiro 2001, pág. 19/20)
Mas sem razão.
Em primeiro lugar, não pode afirmar-se que a tributação das empresas que não têm contabilidade que permita a comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributável seja sempre efectuada de acordo com índices com atinência à sua situação concreta.
Com efeito, nos termos do artigo 90º, n.º 1, da LGT, a determinação da matéria colectável não tem necessariamente em conta todos os elementos enunciados das diversas alíneas do preceito - é o que dizem, em anotação ao preceito, Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge de Sousa (“Lei Geral Tributária, comentada e anotada”, 1999, Vislis, pág. 308); e isto desde logo significa que ela pode ser feita pelos índices referidos nas alíneas a), b) e c) do artigo 90º, n.º 1, ou seja, por elementos objectivos (designadamente,
“margens médias de lucro líquido”, ou “taxas médias de rentabilidade”).
Em segundo lugar, considerando o afastamento dos indicadores, nos termos em que ele pode dar lugar à tributação pelo rendimento normal, como um adequado e forte indício de evasão fiscal, não é lícito atribuir-se um relevo excessivo à referida “contabilidade organizada e sã”.
Na verdade, e como é sabido, a contabilidade organizada não é sempre e necessariamente o reflexo da realidade da empresa, podendo ocultar, com maior ou menor sofisticação, rendimentos superiores aos escriturados.
Mas, mesmo não sendo assim, aquele que revela uma contabilidade organizada disporá sempre de um poderoso suporte para demonstrar e provar - ilidindo a presunção de o rendimento apresentado não corresponder à realidade – que essa contabilidade espelha com fidelidade a realidade concreta, podendo, deste modo, afastar mesmo a aplicação de qualquer critério de avaliação indirecta da matéria tributável e acabar por ser tributado em função do lucro declarado, ou seja, do rendimento real efectivo.
Não já assim nos casos previstos nas alíneas a), b) e c), do artigo
87º, da LGT, em que, para além das sanções tributárias a que o contribuinte se sujeita, a tributação do rendimento presumido mais facilmente se impõe - ou, dito de outro modo, mais dificilmente se tributará por avaliação directa - quer pela impossibilidade lógica de tributar o rendimento real efectivo quando de todo faltam os elementos da contabilidade ou a declaração, quer pela maior dificuldade de prova contrária à presunção quando esses elementos são insuficientes, se verificam atrasos ou irregularidades na escrituração, se oculta, destrói, inutiliza, falsifica ou vicia a contabilidade ou demais documentos legalmente exigidos, ou se dispõe de diversas contabilidades com propósitos simulatórios.
O confronto só impressionará quando se admita que a falta de razões suficientemente convincentes do afastamento dos indicadores possa não significar a ocultação do rendimento real; e, neste caso, o contribuinte não deixará de ser tributado nos termos do artigo 90º, n.º 2, da LGT.
Entende-se, contudo, que se trataria sempre de uma situação-limite só congeminável no pressuposto – inaceitável - de que a administração tributária, na valoração das justificações, procederia contra o que o sistema lhe impõe - ela deve proceder “em termos tais que as não converta [as justificações] em custos ou ónus desproporcionados para os contribuintes”
(Casalta Nabais, “O quadro constitucional...” cit. pág. 373).
Em suma, pois, as normas contidas nos artigos 87º, alínea c), 89º,
75º, n.º 2, alínea c) e 90º, n.º 2, da LGT, não violam o princípio consagrado no artigo 104º, n.º 2, da Constituição, em si mesmo considerado ou em conjugação com o princípio da proporcionalidade.
13 - Sustenta, também, o Provedor de Justiça a questão da inconstitucionalidade orgânica das normas dos artigos 89º, n.º 2 e 90º, n.º 2, da LGT, por desrespeitarem a reserva de lei em matéria fiscal, no ponto em que, versando ainda sobre a “incidência” (“real” ou “objectiva”) dos impostos, cuja definição entra naquela reserva, não poderia ser transferida para um (ou delegada num) regulamento ministerial a regulamentação da matéria correspondente matéria; ao fazê-lo, aquelas normas violariam o artigo 165º, n.º 1, alínea i), conjugado com o artigo 103º, n.º 2 e o disposto no artigo 112º, n.º 6, todos da CRP.
Antes de mais, importa afastar este último preceito constitucional como parâmetro autónomo de aferição de constitucionalidade das referidas normas da LGT.
Com efeito, ou a matéria é mesmo da reserva parlamentar – e o preceito constitucional relevante que se mostra ofendido é o citado artigo 165º, n.º 1, alínea i) – ou não o é – e, então, não se está perante qualquer
“deslegalização” (designadamente, a abertura da possibilidade de um regulamento vir dispor em termos inovatórios sobre matéria disciplinada em lei) vedada pelo artigo 112º, n.º 6.
Teve já o Tribunal Constitucional ocasião de se pronunciar sobre o conceito de “incidência” (ou “incidência real”) dos impostos, no quadro do disposto, actualmente, no artigo 103º, n.º 3, da CRP (cfr. Acórdãos n.ºs 358/92 e 57/95 in Acórdãos do Tribunal Constitucional 23º vol. págs. 109 e segs. e 30º vol. págs. 141 e segs., respectivamente; ainda sobre essa jurisprudência, cfr. J. M. Cardoso da Costa, “O enquadramento constitucional do Direito dos impostos em Portugal” in Perspectivas Constitucionais – Nos 20 anos da Constituição de
1976, págs. 407 e segs. em especial n.º 8).
Se, conforme o que se escreve no estudo citado (p. 409), sempre foi entendimento tradicional da doutrina portuguesa a distinção entre “definição” e
“determinação” da matéria colectável, valendo o princípio da legalidade com maior intensidade no primeiro domínio, em que está em causa “a identificação da entidade económica – rendimento, despesa, património, capital – sujeita a imposto e, consequentemente, um elemento “substantivo” e “essencial” da normação tributária” (na “determinação” “trata-se já do método ou dos métodos a adoptar no cálculo e no estabelecimento do respectivo valor e, portanto, de um domínio
“instrumental”, com carácter fundamentalmente “procedimental” e “adjectivo””, certo é que, como se assinala no mesmo estudo, a jurisprudência do Tribunal Constitucional vem entendendo que não podem subtrair-se à alçada da reserva parlamentar “as próprias normas sobre a determinação da matéria colectável, quando o seu conteúdo e alcance transcender a pura esfera processual e assumir já, afinal, um carácter “material” ou “substantivo””.
Mas apesar desta “particular sensibilidade às implicações do princípio da legalidade fiscal” não deixa a jurisprudência deste Tribunal de entender – na decorrência mesmo do que sustentou nos citados Acórdãos n.ºs
358/92 e 57/95 - que se subtraia àquele princípio o que constituem já
“determinados aspectos de regime estritamente técnicos”, considerando
“constitucionalmente admissível que a lei fiscal remeta para diplomas regulamentares a definição de determinados aspectos técnicos que exprimam apenas um saber no qual o Direito se apoia e que não exige qualquer decisão valorativa”
(Acórdão n.º 236/01, in DR, II Série, de 18/7/2001 e, no mesmo sentido, Acórdão n.º 451/01 in DR, II Série, de 30/11/01).
Ora, entende o Tribunal que, no caso, o poder regulamentar delegado no Ministro das Finanças não tem, nem o âmbito e a extensão, nem a natureza e o alcance que lhe vêm atribuídos pelo requerente.
Trata-se, com efeito, de um poder regulamentar que se destina a ser exercido “nos termos da lei”, o que significa que não é operativo com base apenas no mesmo preceito. Será a lei – lei que, aliás, não foi ainda emitida – a definir os princípios e os critérios com base nos quais se construirão os
“indicadores” de cada actividade. O Ministro das Finanças estará sempre limitado por essas limitações legais e o que lhe cabe, verdadeiramente, é
“concretizá-las” (o que significará, decerto, em maior ou menor medida, quantificá-las) em cada ano, em função da conjuntura: ora, esta é uma operação ou tarefa acentuada e eminentemente técnica, que não estará propriamente na linha mais directa da vocação parlamentar, ou até da do legislador governamental, e que por isso bem se compreende que seja simplesmente entregue ao Ministro competente na matéria, para levá-la a cabo através do seu poder regulamentar.
Por outras palavras, ao exercer o poder regulamentar delegado, o Ministro das Finanças não estará a determinar, neste domínio, os “critérios materiais da definição da incidência real” do imposto – e estes, em estrito cumprimento do disposto no artigo 103º, n.º 2, da CRP, serão determinados “nos termos da lei”, como se estabelece no artigo 89º, n.º 2, da LGT.
As normas dos artigos 89º, n.º 2 e 90º, n.º 2, da LGT, não violam, pois, o artigo 165º, n.º 1, alínea i), conjugado com o artigo 103º, n.º 2, da CRP.
14 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se:
a) Não conhecer do pedido quanto à norma da alínea c), do artigo 87º, da Lei Geral Tributária, na versão originária desta, aprovada pelo Decreto-Lei n.º
398/98, de 17 de Dezembro; b) Não declarar a inconstitucionalidade das normas dos segmentos, indicados pelo requerente, das alíneas 18) e 23), do artigo 2º, da Lei n.º 41/98, de 4 de Agosto e dos artigos 46º, n.º 1, 75º, n.º 2, alínea c), 76º, n.ºs 1 e 4, 87º, alínea c), esta na redacção dada pela Lei n.º 100/99, de 26 de Julho, 89º e 90º, n.º 2, da Lei Geral Tributária.
Lisboa, 12 de Fevereiro de 2003 Artur Maurício Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria Fernanda Palma Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Bravo Serra (vencido quanto à decisão de não declaração de inconstitucionalidade do nº 2 do artº 90º da L.G.T., nos termos da declaração de voto do Exmº Consº Mota Pinto para a qual, com vénia, remeto) Luís Nunes de Almeida (vencido quanto ao artº 90º, nº 2, da LGT, nos mesmos termos que o Exmº Consº Mota Pinto) Paulo Mota Pinto (vencido, nos termos da declaração de voto que junto) José Manuel Cardoso da Costa (vencido quanto ao artº 90º, nº 2, da Lei Geral Tributária, nos termos da declaração junta).
(Tem votos de conformidade dos Exmºs Consºs Guilherme da Fonseca e Sousa Brito que não assinam por terem, entretanto, deixado de pertencer a este Tribunal) Artur Maurício)
Declaração de voto
Votei vencido apenas quanto ao artigo 90º, n.º 2 da Lei Geral Tributária (LGT), por entender, tal como o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal, que esta norma é inconstitucional, pelas razões que passo a expor:
1. Segundo a norma em causa, quando “a matéria tributável se afastar significativamente para menos, sem razão justificada, dos indicadores objectivos de actividade de base técnico-científica, a sua determinação efectua-se de acordo com esses indicadores”. Não apresentando o contribuinte razões justificativas do afastamento, e caso tenham decorrido mais de três anos sobre o início da sua actividade, a matéria colectável pode, pois, determinar-se por métodos indirectos, nos termos dos artigos 87º, alínea c), e 89º, n.º 1, também da LGT, consistindo tal método na aplicação dos “indicadores objectivos de base técnico-científica”. Estes indicadores, definidos anualmente pelo Ministro das Finanças, e podendo “consistir em margens de lucro ou rentabilidade que, tendo em conta a localização e dimensão da actividade, sejam manifestamente inferiores
às normais do exercício da actividade e possam, por isso, constituir factores distorcidos da concorrência” (artigo 89º, n.º 2, da LGT), fornecem, de todo o modo, um rendimento normal, ou rendimento-padrão. Não é este, porém, o único método indirecto de determinação da matéria colectável que a própria LGT conhece, antes prevendo outro método para as hipóteses de impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributável. Casos, estes, que envolverão normalmente, nos termos do artigo 88º, falta de cumprimento de deveres jurídicos contabilísticos ou fiscais
– por “inexistência ou insuficiência de elementos de contabilidade ou declaração, falta ou atraso de escrituração dos livros e registos ou irregularidades na sua organização ou execução quando não supridas no prazo legal (…)” –, incluindo mesmo actuações dolosas – com “recusa de exibição da contabilidade e demais documentos legalmente exigidos, bem como a sua ocultação, destruição, inutilização, falsificação ou viciação”, ou com “existência de diversas contabilidades ou grupos de livros com o propósito de simulação da realidade perante a administração tributária e erros e inexactidões na contabilidade das operações não supridos no prazo legal.” Nestes casos, a determinação da matéria colectável tem em conta uma série de elementos, que incluem não só elementos-padrão, ou médios –alíneas a), b) e c) do artigo 90º, n.º 1 da LGT –, mas, também, elementos individuais e concretos, referidos à situação daquele contribuinte, e que deverão ser utilizados, desde que disponíveis: é o caso, claramente, de outros elementos e informações declarados
à administração tributária, mesmo que relativos a outros impostos, ou dos
“relativos a empresas ou entidades que tenham relações económicas com o contribuinte” (alínea d) do preceito citado); é o caso da localização e dimensão da actividade exercida (alínea e)); e é, também, o caso de elementos ainda mais claramente vinculados à situação específica do contribuinte, como os “custos presumidos em função das condições concretas do exercício da actividade” e a
“matéria tributável do ano ou anos mais próximos que se encontre determinada pela administração tributária” (alíneas f) e g)). Ora, como resulta do confronto entre os n.ºs 1 e 2 do artigo 90º da LGT, não pode iludir-se a diferença fundamental entre estes métodos indirectos de determinação da matéria colectável: enquanto o n.º 2 se refere, sem mais, a um rendimento normal, ou padrão, determinado objectivamente, pelo qual é, no caso de indicadores de actividade inferiores aos normais, determinada a matéria colectável, aquele n.º 1 permite a obtenção de um rendimento presumido em atenção a circunstâncias individuais e concretas do contribuinte. E, designadamente, essa diferença não pode ser escamoteada com o argumento de que nem sempre todos os elementos concretos poderão ser considerados: é que não só alguns, como a localização e a dimensão, estarão sempre disponíveis, tendo, portanto, de ser considerados, como é, desde logo, bastante para tal diferença a circunstância de vários desses elementos (como custos presumidos em função das condições concretas ou a matéria tributável do ano ou anos mais próximos) poderem ser considerados. Tal evidente diferença entre a determinação da matéria colectável através de pura e simples – dir-se-ia, mesmo, fácil – remissão para indicadores de normalidade, por um lado, e a sua determinação considerando a “mistura” de elementos médios e individuais e concretos previstos no artigo 90º, n.º 1, da LGT, por outro, para além de resultar claramente da letra da lei, é, de resto, um pressuposto incontestável, de que parte o requerente, da questão de constitucionalidade em causa. Ora, podem dispensar-se outras considerações – atinentes à história da inclusão da remissão directa no n.º 2 do artigo 90º para indicadores objectivos, e não para um rendimento real presumido –, cuja relevância na presente sede não é decisiva, e pode também omitir-se a consideração do alargamento da tributação segundo o rendimento-
-padrão, operado pelo artigo 89.º-A da LGT, aditado pela Lei n.º 30-G/2000 de 29 de Dezembro, que se situa fora do âmbito do presente processo. Ainda assim, deve, a meu ver considerar-se constitucionalmente inadmissível, por violação do princípio da tributação segundo o rendimento real, conjugado com o princípio da proporcionalidade (na vertente da necessidade da medida em causa), que, podendo a determinação da matéria tributável ser efectuada através de elementos individuais e concretos (previstos logo no artigo 90º, n.º 1, da LGT), no caso de simples falta de justificação do afastamento dos rendimentos do contribuinte em relação a um padrão de normalidade – existindo, pois, elementos contabilísticos cuja regularidade não foi posta em causa e cumprindo o contribuinte todos os seus deveres – se proceda, sem mais, à tributação segundo padrões de pura normalidade, quando, em casos de evidente, ou mesmo dolosa, falta de cumprimento de deveres pelo contribuinte, a matéria tributável é, antes, determinada tendo em atenção também elementos individuais e concretos.
2. Na verdade, nos termos do artigo 104º da Constituição da República a
“tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real”. Consagra-se aqui um princípio constitucional ao qual, apesar do “moderador” que
é o advérbio “fundamentalmente”, há-de ser atribuído algum sentido. Não parece, pois, admissível que, através de considerações gerais inevitavelmente conducentes do intérprete a um perigoso “plano deslizante”, se proceda ao esvaziamento deste parâmetro constitucional. É, a meu ver, e por exemplo, o caso da ideia de que a própria tributação do rendimento real assenta numa presunção – como se diz no acórdão, citando um fiscalista, “uma presunção que assenta em certos pressupostos, o [de a] contabilidade ter sido organizada de acordo com a lei (…) e o de que os dados e apuramento dela decorrentes não contenham erros, inexactidões ou outros indícios fundados de que ela não reflecte a matéria tributável do contribuinte” –, ideia, essa, que (independentemente da exacta qualificação como presunção) não pode certamente levar a relativizar – pois
“tudo exigiria presunções” – a clara diferença entre estes pressupostos indispensáveis para o apuramento do rendimento real e a tributação logo de um rendimento-padrão, objectivamente determinado, sem atenção à declaração ou a quaisquer outros elementos do contribuinte concreto. E é, também, o caso do argumento da necessidade de métodos indirectos de apuramento da matéria tributável para combater a evasão fiscal. Embora concordando com a exigência de medidas vigorosas e eficazes para tal finalidade, não pode, porém, acompanhar-se – nem no plano fáctico, nem, por certo, no normativo – a caracterização da situação presente como de transformação do
“direito de ser tributado segundo a declaração (…) no direito de pagar o imposto resultante de uma declaração fraudulenta e [d]o direito de ser tributado de acordo com o lucro real no direito de ver reconhecidas pela Administração situações empresariais caracterizadas por prejuízos perpétuos.” Importa, aliás, reconhecer que o acórdão de que discordei não legitima todo e qualquer instrumento legal em nome do combate à evasão fiscal, não deixando de enunciar o limite constitucional, e, designadamente, não prescindindo de atribuir um sentido ao princípio da tributação fundamentalmente segundo o rendimento real: o de que o rendimento normal não pode ser transformado em método principal de determinação da matéria colectável. O problema reside, no entanto, em que a disposição em causa tem, justamente, como efeito tal transformação, pois apenas admite a relevância do rendimento real enquanto este se não afastar do normal, e – o que é mais, e, a meu ver, decisivo –, em caso de afastamento, remete logo para este rendimento normal, sem procurar atender à situação concreta do contribuinte, como faz para outras hipóteses, essas sim, relevantes do ponto de vista do não cumprimento de deveres pelo contribuinte. Na verdade, o princípio da tributação das empresas “fundamentalmente segundo o rendimento real” admite moderações, como resulta logo do próprio advérbio. Mas tais desvios não podem, certamente, levar à exclusão de grupos inteiros de casos, pelo menos quando esses casos se caracterizam, de forma decisiva, justamente e apenas, pelo desvio em relação ao rendimento normal. Pretender incluir estes casos, previstos no artigo 90º, n.º 2, da LGT, em excepções, através da invocação do advérbio “fundamentalmente”, é, antes, atingir o próprio cerne ou núcleo central das hipóteses para que o princípio do rendimento real pode ter algum significado, podendo, mesmo, dizer-se, sem exagero, que ou este princípio valerá também para esses casos, ou não se vislumbra para quais poderá valer, ou qual poderá ser o seu conteúdo. Admitir, apenas com fundamento no afastamento não justificado da normalidade, uma tributação segundo o rendimento normal ou padrão – e não segundo o rendimento obtido a partir de elementos individuais e concretos, incluindo a localização e dimensão da empresa, os seus custos e as declarações de anos anteriores –, implica, assim, reconduzir o conteúdo do princípio da tributação segundo o rendimento real… enquanto este se não afastar do normal – ou seja, o esvaziamento ou, mesmo, inversão do princípio. Perante tal regime, melhor seria antes confessar que a tributação das empresas incide “fundamentalmente” (rectius decisivamente) sobre o rendimento normal, que pode coincidir com o rendimento real – mas não coincidindo sempre, e prevalecendo então o primeiro.
3. No presente acórdão não se chega, porém, a esta conclusão por se considerar que as hipóteses em causa são anómalas ou excepcionais, devido, por um lado, ao próprio afastamento dos indicadores durante três anos e, por outro lado, à falta de justificação deste afastamento. Ora, já se salientou, quanto ao primeiro ponto, que, para o princípio da tributação segundo o rendimento real, os casos em que este se afasta do rendimento normal, longe de constituírem excepções ou anomalias, não podem, antes, deixar de ser considerados casos centrais, em que aquele princípio verdadeiramente pode cobrar algum significado – pois ele define-se justamente pela contraposição do critério do rendimento real ao normal, não podendo o desvio em relação a este ser, assim, considerado como “anomalia” para efeito da sua aplicação. No que toca ao segundo ponto, é evidente que as razões que poderão ser consideradas são de variada ordem, só podendo ser apreciadas cabalmente em face de cada caso concreto. Em muitos casos, porém, a causa do afastamento em relação
à normalidade – e, consequentemente, a justificação para tal afastamento – não pode logo ser determinada e provada pelo contribuinte, pois, caso contrário, este normalmente poderia combatê-la e contrariar o afastamento. Suponhamos, pois, que, como acontecerá em muitos casos, ao sujeito passivo não resta mais do que, como no exemplo referido por Xavier de Basto (art. cit. no acórdão, p. 18), invocar uma deficiente qualidade da sua gestão: “– Sou mau gestor, meus métodos de gestão estão ultrapassados, vendo mal, controlo mal os custos, administro mal, os meus recursos estão ultrapassados.” Das duas uma: ou tal justificação é aceita, e o problema não se põe; ou não é aceita, e, então, na falta de qualquer outra (que não existe…), a determinação da matéria tributável é efectuada imediatamente segundo padrões objectivos de normalidade, sem considerar quaisquer circunstâncias do contribuinte concreto (por exemplo, declarações de anos anteriores), diversamente do que ocorreria se o contribuinte tivesse faltado aos seus deveres – por exemplo, recusando-se a apresentar a sua contabilidade ou mantendo contabilidades paralelas com finalidades dolosas. Ora, se pode ainda compreender-se que o afastamento não justificado dos indicadores de referência abra a possibilidade de recurso a métodos indirectos de determinação da matéria colectável, o que já não pode aceitar-se – pois para tal a falta de justificação pelo contribuinte é totalmente irrelevante – é que o método indirecto em causa remeta logo para indicadores-padrão, ou de normalidade, quando está disponível outro método, que atende a elementos individuais e concretos. Isto, sobretudo, quando este outro método é utilizado para situações mais graves, e, no caso concreto, os elementos contabilísticos apresentados pelo contribuinte estão em perfeita regularidade e não são sequer contestados pela Administração Fiscal – nem sequer fazendo, pois, sentido, por tal não estar em causa, qualquer prova de que a contabilidade espelha fielmente a realidade. A falta de justificação do afastamento da matéria tributável em relação a indicadores objectivos, de rendimento normal, não chega, pois, só por si, para explicar a norma em causa como regime para situações “anómalas” ou
“excepcionais”. Antes o afastamento não justificado só poderá relevar para tal efeito se, apesar da contabilidade regular, se vir nele um “adequado e forte indício de evasão fiscal”. E é efectivamente assim que se procede na fundamentação da decisão de que dissenti. Acontece, porém, que este procedimento implica um salto, verdadeiramente mortal, de factos possivelmente reveladores apenas de ignorância, incompetência ou inépcia do contribuinte para uma verdadeira presunção de fraude não provada – salto, esse, cujo paralelo penal, igualmente inadmissível, seria a transformação da incapacidade de justificação de um paradeiro ou de uma actuação numa presunção de actividade criminosa. A respeito deste procedimento, o que se apraz dizer é, no mínimo, que a consideração, que se contém no acórdão, de que o regime legal só chocará quando se admita que a falta de justificação “possa não significar a ocultação do rendimento real” – consideração, esta, que, para além de explicitar a aceitação da referida presunção de fraude tributária, se pode reconduzir à afirmação de que esta só chocará quando por ela venham a ser apanhados contribuintes… inocentes – não é o menor argumento que imediatamente ocorre justamente contra o regime que através dela se procura justificar.
Paulo Mota Pinto
Declaração de voto
Votei sem reservas o precedente acórdão e a correspondente decisão, quanto a todas as normas nele apreciadas, salvo a do nº 2 do artigo 90º da Lei Geral Tributária.
No tocante a esta última, com efeito, pronunciei-me no sentido da declaração da sua inconstitucionalidade, por violação do princípio da tributação das empresas segundo o seu rendimento real, combinado com o princípio da proporcionalidade, enquanto proibição do excesso. E isso, não obstante pensar que, face ao modo 'relativizado' – pelo 'moderador de sentido' contido no advérbio fundamentalmente – em que aquele primeiro princípio é acolhido no artigo 104º, nº 2, da Constituição, fica aberta ao legislador uma margem bastante considerável de apreciação e conformação para determinar as situações e os termos em que (seja, p. ex., por simples razões práticas, decorrentes da própria estrutura das empresas, seja nomeadamente por razões de eficiência do sistema e de combate à evasão fiscal) o mesmo princípio não poderá ser consagrado, ou não poderá sê-lo integralmente.
É que, pese o reconhecimento do que acabo de referir, convenci-me de que é realmente uma solução 'desequilibrada e injusta' – como a qualifica JOSÉ XAVIER DE BASTO, 'O princípio da tributação do rendimento real e a lei geral tributária', nº 10, em Fiscalidade, nº 5, Janeiro 2001, citado no precedente acórdão – a que, na hipótese contemplada na alínea c) do artigo 87º da Lei Geral Tributária, impõe logo (como justamente o nº 2 do artigo 90º do mesmo diploma o determina) a tributação segundo os 'indicadores objectivos da actividade', definidos no artigo 89º, nº 2, também dessa Lei, fazendo, assim, tábua rasa da possibilidade de recurso aos 'métodos indirectos' do nº 1 daquele mesmo artigo
90º. Uma tal convicção – de que a norma agora em causa consagra, ao fim e ao cabo, uma solução 'desproporcionada', por 'desnecessária' – firmou-se precisamente com base na precuciente análise que dela, e do regime em que se insere, faz o Autor que antes citei, no lugar mencionado, pelo que para essa mesma análise (de que, de resto, se encontra largo eco, também, na declaração de voto do Ex.mo Conselheiro Mota Pinto) me limito a remeter. Apenas acrescentaria que – se bem vejo – a solução legal agora em causa representa um muito significativo recuo do princípio da tributação do rendimento real das empresas, ou a possibilidade desse recuo, mesmo tomando para comparação os termos em que tal princípio foi introduzido, no nosso sistema tributário, pela importante e decisiva 'Reforma Fiscal' dos anos 60 (que aí tinha, justamente, um dos seus traços característicos) e nela, em particular, no Código da Contribuição Industrial, de 1963, encontrou concretização. E isso, inclusivamente, ainda quando se considerem as alterações subsequentes a tal Código, que foram, à época, caracterizadas crítica e expressivamente por TEIXEIRA RIBEIRO como traduzindo o que chamou de 'Contra-Reforma Fiscal'. Claro que esta consideração – que agora se aduz – não vale, nem pretende valer, em si mesma, como um argumento de 'constitucionalidade': mas crê-se que não deixará de ajudar a evidenciar o carácter 'excessivo' da mesma solução legal (da solução ora em apreço, consagrada pela norma do nº 2 do artigo 90º da Lei Geral Tributária), sobretudo quando agora é já a Constituição a acolher como directriz básica o princípio referido. José Manuel Cardoso da Costa