Imprimir acórdão
Proc. n.º 795/02 TC – 1ª Secção Rel.: Cons.º Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - Nos autos de recurso supra identificados em que é recorrente A, com os sinais dos autos, foi proferida a seguinte decisão sumária:
'1 – A, com os sinais dos autos, recorre para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC, do acórdão da Relação de Lisboa, de fls. 9351 e segs., pretendendo, nos termos do respectivo requerimento de interposição de recurso, a apreciação da constitucionalidade dos artigos 299º n.º 1 do Código Penal e 374º e 379º do Código de Processo Penal quando interpretados 'em termos de dar-se como provada a Associação Criminosa de uma só pessoa (A e outros, sem se identificar os outros) e em condenar por factos pelos quais não vinha acusado', preceitos que violariam os artigos 32º n.º 1 e 29º n.º
1 da Constituição.
2 – Sendo pressuposto do recurso interposto que a norma (ou uma sua interpretação) questionada tenha sido aplicada, como ratio decidendi, na decisão recorrida, cumpre desde já assinalar que a norma do artigo 379º do CPP não foi aplicada com o sentido que o recorrente lhe atribui, não tendo ainda qualquer pertinência a invocação do disposto no artigo 374º do CPP que se reporta aos requisitos da sentença.
Como se disse, o recorrente põe em causa uma interpretação do artigo
379º do CPP em termos que permitam o tribunal 'condenar por factos pelos quais
(o arguido) não vinha acusado'.
Ora, antes de mais, importa salientar que o artigo 379º do CPP, que prevê os casos de nulidade de sentença, contém diversas normas; mas pelos termos da sua invocação pelo recorrente entende-se que a norma que se põe em causa é apenas a que se contém na alínea b) do nº 1 daquele preceito.
Não se vê no acórdão recorrido qualquer pronúncia que suponha a citada interpretação normativa, ou seja a que permite a condenação do arguido por factos de que ele não venha acusado ou pronunciado.
Com efeito é incontroverso que, ao dar como provado que o recorrente foi fundador e dirigente de uma associação criminosa, o acórdão (como a decisão então sob recurso) se contém nos limites fácticos que resultam da pronúncia.
Isto é, desde logo, evidente quando no artigo 3º da pronúncia de fls. 8410 e segs se diz que 'No início do ano de 1992, os arguidos B (1º) A (2º) C (3º) e ainda D, conhecido por..., com a alcunha de ..., uniram-se voluntariamente com o objectivo de constituírem uma organização destinada à prática de crimes de receptação, falsificação e burla de títulos de crédito, por forma estável e não limitada no tempo, aceitando cada um deles as funções que se mostrassem necessárias e lhes coubessem na prossecuação daquele fim, acordando, serem, os próprios, chefes da mesma' e no artigo 44º que 'Não obstante alguns deles exercerem no âmbito do circuito de papel mais do que uma função, os arguidos B, A, C eram, juntamente com outros, como se disse no articulado 3º os chefes da organização'.
É, pois, evidente que ao recorrente foram imputados os factos de ele ser 'fundador' e 'dirigente' da associação criminosa, factos esse que se deram como provados em I e XXXI do acórdão condenatório, sem que o acórdão recorrido tivesse alterado esta matéria de facto.
Seria, neste contexto, até absurdo que o acórdão recorrido tivesse perfilhado a interpretação que o recorrente questiona sub specie constitutionis.
Foi outra a pronúncia do acórdão recorrido em matéria conexionada com esta.
O que o recorrente questionou no recurso para a Relação – e esta decidiu – foi o facto de, na pronúncia (tal como de resto na acusação), se terem integrado os factos apenas no disposto no artigo 299º nº 3 do Código Penal (que se reporta à chefia ou direcção da associação criminosa), considerando-os o tribunal como também subsumíveis no nº 1 do mesmo artigo (que pune a promoção ou fundação da associação criminosa), sendo, porém, certo que a condenação do arguido foi apenas decidida nos termos do citado artigo 299º nº 3.
Ou seja, a condenação do recorrente, por ter cometido o crime previsto no artigo 299º nº 3 do Código Penal, acabou igualmente por se conter nos limites da pronúncia, já que, por se verificar um concurso ideal de crimes, ser irrelevante em termos punitivos (a punição é pelo crime mais grave – o previsto no artigo 299º nº 3 do Código Penal) a prática do crime previsto no artigo 299º nº 1 do mesmo Código, quando no agente se conjugam a fundação da associação criminosa e o exercício de funções dirigentes nessa associação.
Quer isto dizer que a única interpretação normativa que se vislumbra no acórdão recorrido é a de que se não verifica alteração da qualificação jurídica dos factos quando, embora se dê como provada a prática de um crime não expressamente qualificado como tal na pronúncia (mas por factos que dela constam), se pune o arguido pelo tipo legal de crime constante da pronúncia, por se verificar um concurso ideal com o primeiro e ser ele o mais gravemente punido.
Ora, manifesto é que esta interpretação normativa nada tem a ver com a que o recorrente pretende ver apreciada por este Tribunal, razão por que se não verifica o pressuposto do recurso previsto no artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC.
Não se conhece, pois, do objecto do recurso nesta parte.
3 – Como se deixou relatado, o recorrente pretende igualmente que o Tribunal aprecie a constitucionalidade do disposto no artigo 299º nº 1 do Código Penal, interpretado em termos de se admitir que o crime se verifica mesmo sem a identificação dos 'outros' com quem o arguido funda a associação criminosa.
Deve, desde já, esclarecer-se o que, a propósito resulta dos autos, já que nos situamos no âmbito da fiscalização concreta de constitucionalidade.
Quer na acusação, quer na pronúncia surgem identificadas as pessoas com quem o recorrente fundou a associação criminosa.
Simplesmente, por ter ocorrido separação de processos, nem todas essas pessoas responderam no julgamento que deu lugar ao acórdão condenatório sobre o qual, em recurso, recaiu a decisão ora impugnada.
Sucedeu, no entanto, tal como decorre do acórdão condenatório e nunca foi posto em causa pelo recorrente, que foram identificados no julgamento os indivíduos com quem o recorrente fundou a associação criminosa. E só não surgiram identificados na decisão pelas razões invocadas em nota aposta à mesma decisão nos seguintes termos:
'Apesar de na audiência de julgamento se ter provado a identidade de outros membros da organização que não são arguidos neste processo, entendeu-se na descrição dos factos provados ocultar-se essa identidade, uma vez que, não tendo eles neste processo possibilidades de defesa, a sua referência seria sempre facto atentatório da sua honra e dignidade.'
Nesta conformidade, a dimensão da interpretação normativa questionada seria certamente mais restrita, com relevo para o facto de a identificação dos demais fundadores da associação criminosa constar da pronúncia e ter sido feita na audiência de julgamento.
De todo o modo, deve reconhecer-se que no acórdão recorrido a questão é apreciada sem apelo à circunstância referida, nele se tendo entendido não ser necessária a identificação dos 'outros' para se verificar o crime da associação criminosa.
Fê-lo nos seguintes termos:
'Ora, se é certo que o crime de associação criminosa implica sempre, obviamente, a existência de mais de uma pessoa, pois pressupõe a necessidade de um acordo de vontades, com certo carácter de permanência para a realização de uma pluralidade de crimes, não é menos certo que nenhuma exigência legal ou lógica é exigida para que, para a existência do crime, tenham de ser identificados os seus participantes.
Da matéria de facto resulta que o recorrente fundou e dirigiu associação criminosa com outros sendo irrelevante a identificação dos outros para a existência deste ilícito. Relevante é sem dúvida a existência de mais de uma pessoa, o que resulta claramente da matéria de facto ainda que essas não estejam identificadas e não se provando, a final, que seriam as demais identificadas que vieram a ser absolvidas.'
Poderá, desde logo, entender-se que, embora sustentando a violação do artigo 32º nº 1 da Constituição (garantias de defesa do arguido) o recorrente acaba, em direitas contas, por pôr em causa o princípio da tipicidade ou da legalidade relativamente a uma norma incriminadora, com o entendimento de que a integração do tipo legal de crime de associação criminosa impõe a identificação dos outros participantes.
Nesta medida e porque se subscreve a tese que fez vencimento no Acórdão nº 674/99 (cfr.,, em especial, pontos 50 a 53), in Diário da República II Série, de 25 de Fevereiro de 2000 e que aqui se dá por reproduzida, não se estará perante uma questão de inconstitucionalidade normativa susceptível de ser conhecida por este Tribunal.
Mas, ainda que se não admita que o recorrente questione a violação do princípio da legalidade e que acabe por pôr em causa a própria possibilidade constitucional de o legislador criar um tipo de crime de associação criminosa sem necessidade de identificação dos outros participantes, por violação das garantias de defesa do arguido, entende-se que tal violação, manifestamente se não verifica.
Com efeito, porque a existência de outros participantes não constitui uma qualquer presunção que o arguido tenha que ilidir, através de uma prova negativa, exigindo-se a prova positiva dessa existência (como, aliás, se deixa expresso no acórdão recorrido), não se vê que as garantias de defesa do arguido sejam afectadas. O arguido pode, sempre, nestas circunstâncias e sem qualquer especial onerosidade, contraditar e infirmar a prova que se pretenda fazer para demonstrar que ele pactuou com outros, sobre cuja existência não podem ficar dúvidas, a fundação de uma associação criminosa.
Dir-se-ia, em contrário, que a ausência de indicação de um ou mais indivíduos nominados pode dificultar a prova do arguido que, assim, não dispõe de uma concreta referência que lhe permita uma estratégia de defesa adequada.
Mas não é assim.
Em primeiro lugar, porque há-de exigir-se, nas circunstâncias apontadas, um particular rigor na prova de que existiram outros com quem o arguido pactuou a organização de uma associação criminosa.
Em segundo lugar, porque nem só a indicação de nome ou nomes permite a referenciação concreta daqueles outros – a existência de outros não poderá ser meramente hipotética ou virtual...
Em suma, pois, a questão de constitucionalidade reportada ao artigo
299º nº 1 do CP é manifestamente infundada.
4 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se: a. não conhecer do objecto do recurso quanto às normas dos artigos 374º e
379º do CPP: b. julgar manifestamente infundado o recurso quanto à norma do artigo 299º nº 1 do Código Penal.'
2 - É desta decisão que o recorrente vem agora reclamar para a conferência, limitando, porém, a sua impugnação à parte da decisão sumária que julgou manifestamente infundado o recurso quanto à norma do artigo 299º nº 1 do Código Penal. Na sua reclamação, o recorrente insiste em que, sob pena de inconstitucionalidade (no requerimento de interposição de recurso considerava-se violado o artigo 32º nº 1 da CRP), a condenação por crime de associação criminosa, tem que conter a indicação formal da identificação dos outros com quem o arguido fundara a associação. Não adianta, contudo, qualquer argumentação relevante para infirmar o decidido, limitando-se a congeminar várias hipóteses sobre quem poderiam ser esses outros, para demonstrar a exigência da aludida identificação. A verdade é que, na decisão reclamada, se fundamentou o julgado em termos que não suscitam qualquer reserva a esta conferência.
3 – Decisão: Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 Ucs. Lisboa, 19 de Fevereiro de 2003 Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa