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Proc. nº 703/02
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 3ª secção do Tribunal Constitucional: I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que figuram como reclamantes A e B e como reclamado o Ministério Público, proferiu o Tribunal Constitucional, em 27 de Janeiro de
2003, o acórdão n.º 43/2003, que, na sua parte decisória relevante, tem o seguinte teor:
'(...)
17. A reclamação do arguido A
(...)
17.2 Importa, porém, averiguar desde já se estão verificados os demais pressupostos processuais do recurso interposto, já que, como se afirma no Acórdão deste Tribunal n.º 641/99 (inédito), 'destinam-se as reclamações sobre não admissão dos recursos intentados para o Tribunal Constitucional a verificar a eventual preterição da devida reapreciação, pelo Tribunal Constitucional, de uma questão de constitucionalidade, em sede de recurso de constitucionalidade'. Pelo que, continua o Acórdão citado, 'mais que apreciar a fundamentação do despacho de indeferimento do recurso, há, pois, que verificar o preenchimento dos requisitos do recurso de constitucionalidade que se pretendeu interpor', sendo certo que, ao decidir a reclamação, a decisão do Tribunal Constitucional faz caso julgado quanto à admissibilidade do recurso, nos termos do artigo 77º, n.º 4, da Lei n.º 28/82. O recurso previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional - que o ora reclamante pretendeu interpor – pressupõe, consequentemente, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma processualmente adequada, a inconstitucionalidade de uma norma jurídica, ou de uma sua interpretação normativa. Vejamos, pois, se tal aconteceu no caso dos autos. Tal como delimitado pelo reclamante A no requerimento de interposição do recurso, o mesmo teria por objecto a norma do artigo 36º do Decreto-Lei n.º
28/84, de 20 de Janeiro, na interpretação segundo a qual 'o que releva para a consumação do crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção é a obtenção efectiva do subsídio ou da subvenção e não a concessão destes por despacho da entidade competente para o efeito, e ainda que o crime se consuma com o pagamento efectivo da última tranche de subsídio concedido'. A verdade, porém, é que só no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional a questão de inconstitucionalidade surge equacionada deste modo. Com efeito, verifica-se que durante o processo - concretamente nas conclusões da alegação apresentada perante o Supremo Tribunal de Justiça - o reclamante não suscitou propriamente a inconstitucionalidade de uma norma com uma determinada interpretação, antes imputou o vício de inconstitucionalidade à própria decisão recorrida.
(...). Ora, das transcrições feitas resulta que o ora reclamante não imputa o juízo de inconstitucionalidade a uma norma jurídica, mas ao próprio acto (decisão judicial) de aplicação, no caso concreto, do artigo 36º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro. O que, naquela peça processual, o ora reclamante verdadeiramente questiona é o processo interpretativo (e, nesse sentido, a decisão judicial) que permitiu ao tribunal recorrido subsumir à descrição típica os factos que lhe são imputados. Dito de outra forma, o que o ora reclamante ali impugnou foi a aplicação ao caso do artigo 36º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro – a norma que define os elementos do tipo do crime de fraude na obtenção de subsídio e estabelece a respectiva punição. Efectivamente, ao referir-se, durante o processo, a uma eventual violação da Constituição, o ora reclamante invocou afinal a inconstitucionalidade da decisão judicial na parte em que considerou subsumível a sua conduta ao tipo de crime previsto e punido por aquela norma, e não a inconstitucionalidade da norma jurídica em que a decisão se fundamentou. Dessa forma, não tendo sido suscitada durante o processo pelo ora reclamante, de modo processualmente adequado, uma questão de inconstitucionalidade normativa, conclui-se que não se encontram verificados os pressupostos processuais de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. E isto independentemente da questão de saber se, neste ponto, ainda assim seríamos confrontados com uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa. Por tudo o exposto, entende-se que a presente reclamação deve ser indeferida.
18. A reclamação do arguido B. O reclamante B pretendia, nos termos do requerimento de interposição do recurso que apresentou no Supremo Tribunal de Justiça, ver apreciada a inconstitucionalidade da 'interpretação que o Tribunal deu aos artigos 380º do Cód. Proc. Penal e art. 667º do Cód. Proc. Civil, por violação do n.º 4 do art.
29º e do n.º 1 do art. 32º, ambos da CRP'.
É, porém, manifesto, como vai ver-se, que não estão verificados os pressupostos processuais de admissibilidade do recurso que o ora reclamante pretendeu interpor. Com efeito, no que especificamente se refere ao artigo 380º do Código de Processo Penal, tal norma não foi sequer aplicada pela decisão recorrida, que expressamente teve o cuidado de afastar a sua aplicação, por se tratar de processo ainda regido pelo Código de 1929. Por outro lado, no que se refere ao art. 667º do Código de Processo Civil, como afirma o Ministério Público, 'não se mostra identificada e especificada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa susceptível de integrar objecto idóneo de um recurso de fiscalização concreta: na realidade, o recorrente limita-se a pugnar pela existência de um «erro das instâncias» quanto à determinação da «data» em que o crime teria sido consumado, pretendendo que o STJ (que naturalmente não tem poderes para valorar a matéria de facto) proceda à respectiva «correcção»'. Não está, assim, identificada, da forma clara e perceptível que vem sendo exigida por este Tribunal, a dimensão normativa que considera inconstitucional. Tanto basta para que se não possa conhecer do objecto do recurso. Por tudo o exposto, entende-se que também a presente reclamação deve ser indeferida.'
2. Na sequência deste acórdão apresentou o ora requerente A, 'ao abrigo do disposto na alínea a) do artº 669º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro, na sua redacção actualmente vigente, e dos artigos 716º e 666º, n.º 3, do CPC', o presente pedido de aclaração, que se reproduz, na íntegra, dada a inviabilidade de se proceder a uma síntese:
'1. Decidiu essa Conferência, através do douto Acórdão aclarando, indeferir a reclamação do ora Requerente, não porque não lhe admitisse razão no fundamento da reclamação ou porque assinalasse razão à posição assumida pelo Senhor Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça na decisão reclamada quanto à intempestividade da interposição do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, que expressamente se reconheceu não ocorrer, mas por ter considerado não ter sido suscitada durante o processo pelo reclamante. de modo processualmente adequado, uma questão de inconstitucionalidade normativa, falecendo por isso os pressupostos processuais de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n° 1 do artº 70° da Lei do Tribunal Constitucional, independentemente da questão de saber se, ainda assim, se perfilaria uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa. -fls. 234-.
2. E, como também se afirma, essa inadequação processual no modo como o reclamante suscitou a questão, consistiu em aquele não imputar o juízo de inconstitucionalidade a uma norma jurídica, mas ao próprio acto ( decisão judicial) de aplicação, no caso concreto, dessa norma -id. fls. 234-.
3. Sucede que no mesmo Acórdão foi também decidida, e igualmente indeferida, uma reclamação do arguido B, com o fundamento, importado do douto Parecer do Ministério Público (cfr. fls. l15 verso), de que não se mostra identificada e especificada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa susceptível de integrar objecto idóneo de um recurso de fiscalização concreta -fls. 235-. Em face do exposto,
4. É legítima a conclusão de que existem, subjacentes a estas duas decisões nos termos em que vêm fundamentadas, dois entendimentos ou ensinamentos que se traduzem em orientações jurisprudenciais deste Tribunal que, num esforço de abstracção e teorização, é possível cristalizar em regras.
5. No que respeita à regra a extrair da decisão da reclamação do ora Requerente, seria possível enunciá-la da seguinte forma: não deve ser admitido o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade previsto na alínea b do n° 1 do artº 70° da Lei do Tribunal Constitucional sempre que não obstante ou independentemente de o Tribunal Constitucional se confrontar com uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa o Recorrente a não tenha suscitado de modo processualmente.
6. E no que tange à regra a extrair da decisão da reclamação do Arguido B, poderia a mesma ser assim equacionada: não deve ser admitido o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade previsto na alínea b) do n° 1 do artº 70° da Lei do Tribunal Constitucional sempre que o Recorrente não identifique e especifique qualquer questão de inconstitucionalidade normativa susceptível de integrar objecto idóneo de um recurso de fiscalização concreta.
7. E do confronto destas duas regras, resulta que o mesmo Tribunal, no mesmo Acórdão, sobre a mesma matéria, utilizou uma dualidade de critérios de decisão em relação aos dois Arguidos, na decisão de duas questões concretas que lhe eram submetidas, sendo igualmente evidente que utilizou, no que tange ao recurso do ora Requerente, um critério bem mais restritivo. Por outro lado,
8. É certo que a única regra positiva de direito constitucional adjectivo que permite estabelecer qual é o modo processual adequado de se suscitar uma questão de constitucionalidade normativa, é a da alínea b) do n° 1 do artº 70° da LTC que se limita a dispôr que cabe recurso para o Tribunal Constitucional (...) das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
9. Pelo que é medianamente claro que o legislador mesmo nada diz sobre qual seja a forma adequada de o Recorrente ter suscitado a inconstitucionalidade da norma durante o processo, deixando aos intérpretes a tarefa de o definir .
10. E não menos certo é que, se casos há em que claramente tal inconstitucionalidade de normas não é, de todo em todo, suscitada no processo, outros haverá em que, não o tendo sido da forma mais perclara e porventura mais correcta em termos de técnica jurídica, o foi em termos perfeita ou pelo menos suficientemente perceptíveis, que não justificam a inadamissibilidade do recurso de fiscalização concreta.
11. E outros, ainda, haverá, de fronteira, que possam ter-se como duvidosos.
12. E a circunstância de as decisões dos tribunais que aplicam normas interpretadas em termos expressamente reputados de desconformes à Lei Fundamental, enfermarem, elas próprias também, de um claro grau de desrespeito à Constituição, não deve permitir a utilização leviana e levada a extremos como critério de não admissão do recurso, de que a inconstitucionalidade suscitada foi erigida contra a decisão e não contra a norma.
13. Sobretudo nos casos em que claramente o tenha sido contra ambas.
14. E sobretudo, também, nos casos em que se mostra evidente que durante o processo o Recorrente suscitou a violação de preceitos constitucionais, na perspectiva do impacto que tal violação tinha na questão central do processo.
15. Impacto esse, tanto maior nos casos em que está em causa a norma penal tipificadora do crime por cuja autoria foi proferida sentença condenatória contra o Recorrente/Reclamante.
16. Como se julga que é o presente caso.
17. Ensina Cardoso da Costa, (in 'A Jurisdição Constitucional em Portugal', 2a. ed., 1992, pag. 50, n°. 49 b)) que face ao preceituado no artº. 80 n°. 3 da Lei do Tribunal Constitucional, 'a questão da constitucionalidade reporta-se à interpretação da norma, no sentido em que ela foi tomada no caso concreto e na decisão recorrida'. (carregado e sublinhado nossos);
18. E no mesmo sentido entendeu o Acórdão deste Tribunal Constitucional n°.
634/94, de 29 de Novembro de 1994, 2a. Secção, (in BMJ 446, pág. 44);
19. Pelo que se pode concluir que a inconstitucionalidade da norma e a da decisão que a aplicou não andam divorciadas uma da outra em termos de se poder sempre estabelecer com segurança, in concreto, que apenas uma das duas foi suscitada.
20. E por outro lado, como decidiram os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs.
86/90 e 268/91 (referidos a fls. 50 do BMJ 446) é certo, devendo valorizar-se tal indício, que haverá sempre interesse processual no conhecimento do recurso da constitucionalidade, quando o sentido da respectiva decisão se mostrar determinante da solução a dar à questão de fundo discutida nos autos. Acresce que,
21. No âmbito deste mesmo processo penal o próprio Tribunal Constitucional, no seu douto Acórdão de 5 de Maio de 1999 -fIs. 1993 e seguintes-, expressou já, a propósito do que devam considerar-se 'conclusões' de um recurso, um entendimento que se aplica de pleno à questão de saber o que deve considerar-se o modo processual adequado de se suscitar uma questão de constitucionalidade normativa durante o processo, em termos de legitimar o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade da alínea b) do n° 1 do artº 70° da LTC.
22. Destacamos as seguintes passagens, pela sua particular eloquência:
'Consideremos, em primeiro lugar, a questão que se relaciona com os critérios normativos susceptíveis (na perspectiva da sua legitimidade constitucional) de serem utilizados pelos Tribunais para decidir, caso a caso, se o conteúdo de uma determinada peça processual -ou de parte dessa peça tem ou não a natureza de
'conclusões' para efeitos daquele preceito da lei processual.'
'Sustenta o recorrente que os critérios normativos utilizados pela decisão recorrida para não considerar como 'conclusões' o conteúdo da peça processual junta a fls. 1871 a 1881 dos autos violam os artigos 18°, 20°, e 32° n° 1 da Constituição. Vejamos se tem razão. '
'A tese do recorrente implica, desde logo, que, na sua perspectiva, de tais normas e princípios constitucionais emanam para os tribunais critérios normativos de decisão de que estes se deverão obrigatóriamente socorrer para concretizar o conteúdo da exigência feita pelo artº 690° do Código de Processo Civil (na redacção anterior à resultante dos Decretos-Leis nos 329/A/95 e
180/A/96, e subsidiáriamente aplicável ao processo penal ainda regido pelo Código de 1929) no sentido de que as alegações de recurso terminem com a apresentação de 'conclusões'. O ponto de partida na argumentação do recorrente
é, em suma, o de que os Tribunais não são, por força daqueles preceitos constitucionais, inteiramente livres na escolha dos critérios que hão-de presidir, nesta matéria, à sua decisão. '
'E neste ponto tem efectivamente razão o recorrente. Ao assegurar a todos o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (artº20º) e, especificamente, ao prever que ‘o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa, incluindo o recurso' ( artº 32° n° 1), a Constituição não só assegura que ao arguido sejam facultados todos os meios necessários e adequados para que possa defender a sua posição em juízo, como impede a existência de normas processuais -ou de interpretações normativas- que se traduzem numa limitação inadmissível ou injustificada das suas possibilidades de defesa.'
'Nesse sentido, ponderando sobre o alcance do artº 32º nº 1 da Constitução, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada 2ª Ed., I Vol., 214-215 anotação II) :
'A fórmula do n° 1 é, sobretudo, uma expressão condensada de todas as normas restantes deste artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de defesa. Todavia, este preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. 'Todas as garantias de defesa' engloba indubitávelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação.'
'Em idêntico sentido se tem pronunciado também, por inúmeras vezes, o Tribunal Constitucional. No Acórdão nº 61/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11° Vol. pp 611 e ss.), pode ler-se:'
' Esta cláusula constitucional apresenta-se com um cunho ‘reassuntivo’ e’ residual’ –relativamente às concretizações que já recebe nos números seguintes do mesmo artigo- e, na sua abertura, acaba por revestir-se, também ela de um carácter acentuadamente 'programático'. Mas, na medida em que se proclama aí o próprio princípio da defesa, e portanto indubitávelmente se apela para um núcleo essencial deste, não deixa a mesma cláusula constitucional de conter ‘um eminente conteúdo normativo imediato a que pode recorrer directamente, em casos limite, para intitucionalizar certos preceitos da lei ordinária’ (cfr. Figueiredo Dias, A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os tribunais, p.
51; e acórdão nº 164 da Comissão Constitucional, apêndice ao Diário da República, I série, de 31 de Dezembro de1979)'
'A ideia geral que pode formular-se a este respeito –a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas nos nº 2 e seguintes do artº 32º - será a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que ipliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido (assim, básicamente, cfr. Acórdão n° 377/86, deste Tribunal, Diário da República I série, de 30 de Dezembro de 1986)'.
'Do que antecede, com importância para os autos, decorre que serão de considerar inconstitucionais, por violação do disposto no n° 1 do artigo 32° da Constituição, todas as interpretações normativas do artº 690° n° 3 do Código de Processo Civil (na redacção anterior à resultante dos Decretos-Leis nºs 329/A/95 e 180/A/96, e subsidiáriamente aplicável ao processo penal ainda regido pelo Código de 1929 ), que se traduzam num 'encurtamento inadmissível' (para usarmos as palavras do Acórdão n° 61/88), num prejuízo insuportável e injustificável das garantias de defesa do arguido em processo penal. '
'É assim, a esta luz, que se deve analisar a questão de constitucionalidade colocada pelo recorrente. '
'É certo -e nesse sentido se pronunciou já o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n° 715/96 (Diário da República II série, de 18 de Março de 1997) que a simples existência de normas -como a do artº 690° do Código de Processo Civil- que exigem que as alegações terminem pela formulação de conclusões em que se indiquem os fundamentos por que se pede a alteração ou anulação da decisão e que permitem que, caso as conclusões faltem, o juiz ou relator convide o recorrente a apresentá-las, sob pena de se não conhecer do recurso, não afectam só por si, e substancialmente, o princípio da plenitude das garantias de defesa consagrado no artº 32° n° 1 da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucionais. Como se sustentou naquele Acórdão, tais normas 'apenas impõe uma colaboração do recorrente na melhor formulação do problema jurídico, assegurando, em última instância, a defesa de direitos e a objectividade dessa realização.
'Desempenham assim essas normas uma função importante não apenas na perspectiva, mais geral, da realização da justiça, mas inclusive na perspectiva da própria garantia de defesa dos direitos do recorrente.'
'E é essa função que as conclusões são aptas a realizar -tida como um valor, quer na perspectiva da realização da justiça quer na perspectiva das garantias de defesa do arguido -que, em última análise, legitima do ponto de vista constitucional a existência de normas processuais que as exijam, sob a cominação de não se poder conhecer do objecto do recurso.'
'Do que vai dito decorre inevitavelmente que os critérios normativos de decisão legítimos, na perspectiva da Constituição, hão-de ser necessáriamente, critérios funcionais, que façam assentar a decisão de saber se o conteúdo de uma peça processual pode ser considerado como ‘conclusões’ na questão de saber se aquele conteúdo é ou não apto a realizar as funções que legitimam a sua existência.'
'Quer dizer: onde o recorrente tenha conseguido determinar de uma forma razoávemente clara os pontos em que discorda e os fundamentos por que discorda da decisão recorrida, bem como a solução que sustenta e os fundamentos dela
(...), não pode deixar de se considerar que foram apresentadas conclusões, no sentido relevante para efeitos do artº 690º nº 3 do Código de Processo Civil (na redacção anterior à resultante dos Decretos-Leis nºs 329/A/95 e 180/A/96, e subsidiáriamente aplicável ao processo penal ainda regido pelo Código de 1929)'.
'Tem, assim, inteira razão o Exmº Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal quando afirma nas suas alegações que: ‘(...) a falta de concisão’ das conclusões, para ser relevante como vício procedimental, pressupõe necessáriamente –para além da sua extensão material, tida por excessiva e injustificada- um efectivo prejuízo para a perfeita inteligibilidade quanto aos fundamentos, âmbito e objecto do recrso, para a corresscta individualização das questões que o recorrente pretende, a final, suscitar através da impugnação que deduziu.' E conclui o transcrito ponto do Acórdão, nos seguintes termos:
'Pelo exposto, é de considerar inconstitucional, por violação dos artigos 20°, e
32° n° I, da Constituição, a norma do artigo 690°, n° 3 do Código de Processo Civil (na redacção anterior à resultante dos DecretosLeis nos 329/A/95 e
180/A/96, e subsidiáriamente aplicável em processo penal ainda regido pelo Código de 1929), quando interpretada no sentido de considerar relevante -para efeitos de decidir se um determinado conteúdo integrante de uma alegação de recurso tém ou não a natureza de 'conclusões' -qualquer outro critério normativo de decisão- designadamente um critério puramente formal traduzido no número de artigos ou de páginas utilizadas pelo recorrente- que não seja um critério funcional, que faça assentar a decisão na questão de saber se o conteúdo da peça processual apresentada permite ou não realizar as funções que legitimam a exigência de conclusões, sob a cominação de não se conhecer do objecto do recurso, e que são as de determinar claramente as questões em que o recorrente discorda e os fundamentos por que discorda da decisão recorrida bem como a solução que sustenta e os fundamentos da mesma '.
(SIC do douto Acórdão do Tribunal Constitucional de 5.5.99, sendo nossos os carregados e sublinhados) Ora,
23. Ainda que seja um facto que este Tribunal, ao expressar estes entendimentos, que se traduzem em claros ensinamentos e excelente doutrina, se não referia à questão, e à norma, concreta que ora nos ocupa, parece claro que são inúmeros os pontos de contacto entre o que seja saber se o recorrente cumpriu o ónus de formular alegações, nos termos exigidos pela norma do artº 690º do Código de Processo Civil, e o que seja definir o critério de saber se foi observado o pressuposto de já ter sido suscitada no processo a questão da inconstitucionalidade da norma aplicada na decisão recorrida.
24.Sobretudo na perspectiva de, em função do que se concluir, lhe ser eventualmente negada uma garantia de defesa, que a Constituição assegura, in casu, o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, nos termos da alínea b) do nº 1 Lei na. 28/82 de 15 de Novembro.
25.E face aos evidentes pontos de contacto entre ambas as questões ficou o ora Requerente na legítima dúvida sobre se terá ocorrido, como aparenta suceder, a aplicação de uma dualidade de critérios, que teve por efeito uma restrição das suas garantias de defesa.
26. E se não terá sido agora preterido um verdadeiro critério de interpretação funcional anteriormente definido pelo Tribunal Constitucional no âmbito dos próprios autos.
27. E, em qualquer caso, uma coisa é certa: é que a interpretação expendida no citado Acórdão de 5 de Maio de 1999 dos preceitos dos artºs 20º, e 32º na 1, da Constituição, revestiu-se de foros de verdadeiras considerações dogmáticas teóricas, que valem de per si, independentemente da norma cuja constitucionalidade esteja em apreciação.
28. Sendo obscuro e duvidoso, para os destinatários do Acórdão aclarando, e designadamente para o ora Requerente, em que medida é que a interpretação confessa desses preceitos se coaduna com a decisão proferida na reclamação.
29. E tais obscuridades e ambiguidades ganham especial relevância, impondo-se o respectivo esclarecimento, tratando-se, como se trata, de um Acórdão proferido pela Conferência do Tribunal Constitucional, no âmbito da apreciação de reclamação da não admissão de um recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, e proferido com apelo a fundamentos diferentes dos da própria reclamação.'
3. Em resposta ao pedido de aclaração do recorrente, disse o representante do Ministério Público:
'1º - O pedido de aclaração deduzido carece obviamente de fundamento, já que acórdão reclamado é perfeitamente claro e isento de dúvidas possíveis acerca do que nele se decidiu.
2º - Na verdade, entendeu-se naquele aresto que o reclamante não suscitou, durante o processo e em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade de normas, imputando a pretendida inconstitucionalidade, de forma directa, à própria decisão.
3º - Sendo obviamente possível à parte discordar de tal entendimento e da aplicação ao caso concreto da jurisprudência uniforme deste Tribunal Constitucional sobre tal matéria, o que seguramente carece de sentido é pretender que tão clara asserção seja objecto de 'esclarecimentos complementares' a prestar pelo Tribunal.
4º - Aliás, em rigor, o que necessitaria de 'aclaração' era o teor do pedido de esclarecimento deduzido, já que se não entende qual é afinal a 'dúvida' a dirimir por este Tribunal, sendo evidente que a apreciação dos pressupostos do recurso fundado na alínea b) do n.º1 do artigo 70º tem sempre de ser feita em concreto, face ao preciso teor das alegações das partes – e não existindo obviamente a menor conexão ou contradição entre a exigência dos pressupostos enunciados no artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional e a afirmação de que o objecto dos recursos de fiscalização concreta pode consistir numa específica dimensão ou interpretação normativa.' Dispensados os vistos legais cumpre decidir. II. Fundamentação
4. Pretende o requerente ver aclarado o acórdão deste Tribunal n.º 43/2003, nos termos e com os fundamentos expostos supra em 2. Como, porém, é sublinhado pelo representante do Ministério Público, o pedido de aclaração deduzido carece obviamente de fundamento. Com efeito, o acórdão aclarando é perfeitamente claro não só acerca do que nele se decidiu, mas também em relação aos motivos porque assim se decidiu. Não existem, assim, quaisquer
'obscuridades ou ambiguidades' que mereçam esclarecimento. Refere inicialmente o requerente, extraindo, por sua iniciativa, regras pretensamente insítas no acórdão, que o Tribunal terá usado 'uma dualidade de critérios de decisão', acrescentando, posteriormente, ter ficado 'na legítima dúvida sobre se terá ocorrido, como aparenta suceder, a aplicação de uma dualidade de critérios, que teve por efeito uma restrição das suas garantias de defesa'. Não tem, contudo, qualquer razão. Bastará certamente, para o esclarecer, uma leitura mais atenta do acórdão. Com efeito, conforme dele decorre, para que possa ser admitido um recurso ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, têm de estar cumulativamente preenchidos todos os respectivos pressupostos, uma vez que, ao decidir a reclamação, a decisão do Tribunal Constitucional faz caso julgado quanto à admissibilidade do recurso, nos termos do artigo 77º, n.º 4, da Lei n.º
28/82. Assim, se, em concreto, faltar um deles, o recurso não pode ser admitido, independentemente da necessidade de discussão sobre o preenchimento de qualquer um dos restantes. Pode o requerente discordar deste entendimento e da aplicação da jurisprudência uniforme do Tribunal ao caso concreto, mas não há aqui nada de obscuro, ambíguo, dual ou contraditório. Assim, porque a decisão aclaranda não enferma de quaisquer obscuridades ou ambiguidades que careçam de ser esclarecidas, há que desatender o pedido de aclaração formulado. III - Decisão Em face do exposto, decide-se desatender a requerida aclaração. Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 10 (dez) unidades de conta. Lisboa, 17 de Fevereiro de 2003 Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida