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Proc. nº 263/00
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. Por decisão de 11 de Janeiro de 1999, do Tribunal Judicial da Comarca de Loures, foi liminarmente indeferido o pedido de apoio judiciário feito pela ora recorrente Comissão de Administração Conjunta do Bairro ... . Escudou-se aquele Tribunal, para tanto, na seguinte fundamentação:
'(...) Nos termos da Lei nº 91/95, de 2/9, a Comissão de Administração Conjunta
é um órgão de administração da AUGI (Área Urbana de Génese Ilegal) que pode pleitear em juízo, não dispondo a Administração Conjunta de personalidade jurídica – art.s 1º, 8º e 15º, nº 1, e) do referido diploma. Ora, o benefício do apoio judiciário só pode ser concedido a pessoas colectivas de fins não lucrativos (art. 7º, nº 4, do Dec.Lei nº 387-B/87, de 29/12) que dispõem necessariamente de personalidade jurídica – cfr. artºs 5º e 21º do CPC e art. 158º do Código Civil. Pelo exposto, indefere-se liminarmente o pedido de apoio judiciário por não ter fundamento legal bastante'.
2. Inconformada com esta decisão a Comissão de Administração Conjunta do Bairro
... recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo suscitado nas suas alegações a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 7º, nº 4 do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, 'quando interpretada no sentido de que as pessoas colectivas ou equiparadas que disponham de personalidade judiciária só têm direito ao benefício do apoio judiciário no caso de possuírem personalidade jurídica', por alegada violação do disposto no art. 20º da Constituição.
3. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 18 de Janeiro de 2000, julgou o recurso improcedente. Sobre a alegada inconstitucionalidade do nº 4 do art. 7º do Decreto-Lei nº º 387-B/87, de 29 de Dezembro, ponderou aquele Tribunal:
'(...) Diz a agravante que a interpretação feita no despacho recorrido da norma do nº 4 do art. 7º seria manifestamente inconstitucional por violação do art. 20º da C.R. Portuguesa. Nestes casos é geralmente invocado também a violação do art.
13º. O primeiro consagra efectivamente o princípio da igualdade, estabelecendo o seu nº 1 que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
«O princípio da igualdade tem a ver com igual posição em matéria de direitos e deveres... Essencialmente ele consiste em duas coisas: proibição de privilégios ou benefícios no gozo de qualquer direito ou na isenção de qualquer dever; proibição de prejuízo ou detrimento na privação de qualquer direito ou na imposição de qualquer dever» (Gomes Canotilho e Vital Moreira em anotação ao art. 13º da CRP). Não se trata, porém, de igualdade entre cidadãos e pessoas colectivas ou outras associações, mas antes entre os cidadãos entre si, pelo que tal princípio não tem aqui qualquer aplicação, e muito menos o preceituado no nº 2 do mesmo artigo. O princípio da igualdade consiste em tratar de forma igual o que é igual e de forma diferente o que é diferente. Por sua vez o nº 1 do artigo 20º estabelece que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos. Garante-se dessa forma o acesso à «via judiciária», competindo à lei ordinária proporcionar os meios concretos do exercício de um tal direito, providenciando para que os litigantes carecidos de meios económicos para a demanda se não vejam, por esse facto, impedidos de defender em juízo os seus direitos, e nem tão pouco sejam colocados em situação de inferioridade perante a contraparte com capacidade económica – Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira in CRP Anotada, vol.
1, pág. 181. Mas não decorre deste preceito que exista qualquer equiparação entre as pessoas singulares e as pessoas colectivas ou outras associações não personalizadas (e muito menos quanto a estas). As pessoas colectivas, como determina o nº 2 do art. 12º da Lei Fundamental, gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza. Portanto, e salvo sempre o devido respeito por opinião contrária, não nos parece que tal norma, interpretada pela forma referida, deva ser considerada inconstitucional.'
4. Desta decisão foi interposto, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso, para apreciação da inconstitucionalidade do artigo 7º, nº 4, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, 'interpretado no sentido de que não estão incluídas na sua previsão as associações sem fins lucrativos, destituídas de personalidade jurídica, mas que disponham de personalidade judiciária', por alegada violação do princípio constitucional do acesso ao direito e aos tribunais, previsto no art. 20º da Constituição.
5. Já neste Tribunal foi a recorrente notificada para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
'1. O conceito de pessoa colectiva, contido na previsão do artigo 7º, nº 4, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, na sua actual redacção, deve ser interpretado por forma a englobar nesse conceito as pessoas colectivas propriamente ditas, as associações, fundações e comissões de qualquer natureza.
2. As pessoas colectivas, ou entidades equiparadas, ainda que destituídas de personalidade jurídica, mas desde que gozem de personalidade judiciária estão abrangidas pela citada norma.
3. A referida norma, quando interpretada no sentido de que as pessoas colectivas ou equiparadas que disponham de personalidade judiciária só têm direito ao benefício do apoio judiciário no caso de possuírem personalidade jurídica, é inconstitucional, por violação do estatuído no nos art.s 20º, nº 1 e 2 e 12º nº
2 da CRP.
4. A ré, ora recorrente, enquanto entidade sem fins lucrativos, e sendo possuidora de personalidade judiciária activa e passiva, tem direito ao benefício do apoio judiciário, desde que comprove a sua insuficiência económica'.
6. Contra-alegou o Ministério Público, ora recorrido, tendo concluído as suas alegações da seguinte forma:
'1º - Sendo o apoio judiciário um meio de efectivação, sem discriminações indevidas, do direito à tutela judiciária, facultando aos economicamente carenciados o acesso aos meios jurisdicionais existentes, o que deverá relevar, de forma decisiva, para a obtenção de tal benefício é a susceptibilidade de ser parte, exercitando em nome próprio tais meios jurisdicionais, ainda que como decorrência da atribuição a um ente não personalizado de personalidade meramente judiciária.
2º - Constitui interpretação inadmissivelmente restritiva do direito de acesso à justiça a que se traduz em excluir, em termos absolutos, do apoio judiciário – em qualquer das suas modalidades – as entidades que, não prosseguindo fins lucrativos e não detendo personalidade jurídica, hajam sido dotadas de personalidade judiciária, de modo a poderem exercitar, em certas causas, os meios de tutela jurisdicional existentes.
3º - Termos em que deverá proceder o presente recurso'.
7. Por parte do 2º recorrido não foram apresentadas quaisquer alegações dentro do prazo legal.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II. Fundamentação
8. É o seguinte o teor do preceito em que se insere a norma cuja constitucionalidade vem questionada pela recorrente (na redacção anterior à vigência da Lei nº 30/2000, de 20 de Dezembro):
'Artigo 7º
1. Têm o direito à protecção jurídica, nos termos da presente lei, as pessoas singulares que demonstrem não dispor de meios económicos bastantes para suportar os honorários dos profissionais forenses, devidos por efeito da prestação dos seus serviços, e para custear, total ou parcialmente, os encargos normais de uma causa judicial.
2.(...).
3. (...)
4. As pessoas colectivas de fins não lucrativos têm direito a apoio judiciário, quando façam a prova a que alude o número 1.
5. (...)'
Na decisão recorrida interpretou-se aquele nº 4, do artigo 7º, do Decreto-Lei nº
387-B/87, de 29 de Dezembro (na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 46/96, de
3 de Setembro), em termos de excluir do benefício do apoio judiciário as entidades que, não prosseguindo fins lucrativos e não detendo, nos termos da lei, personalidade jurídica, hajam, todavia, sido dotadas de personalidade judiciária, de modo a poderem exercitar ou a verem contra si exercitados, em certas causas, os meios de tutela jurisdicional existentes. Na óptica da recorrente - secundada, aliás, pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal - tal interpretação normativa é inconstitucional, por violação do direito de igual acesso à Justiça, imposto pelo princípio da igualdade e explicitamente consagrado no artigo 20º da Constituição. E, efectivamente, com razão.
9. Desde logo porque - como, bem, refere o Ministério Público - 'sendo o apoio judiciário uma forma de possibilitar o acesso, sem indevidas discriminações, aos meios de tutela judiciária existentes, o que deve relevar como decisivo para a sua obtenção não será tanto a personalidade jurídica do ente – isto é, a susceptibilidade de ser, ele próprio, titular de relações jurídicas substantivas próprias – mas a personalidade judiciária – isto é, a susceptibilidade de, em nome próprio, exercitar tal entidade os referidos meios de tutela jurisdicional
(...)'. Com efeito, a não ser assim, estar-se-ia a admitir que entidades que podem demandar ou ser demandadas em juízo, se vissem impossibilitadas, por insuficiência de meios económicos, de exercitar jurisdicionalmente os direitos e interesses cuja tutela lhes cabe e é exercida com a outorga da referida personalidade judiciária.
10. A isto acresce que tal interpretação conduziria a uma injustificada - e, por isso, arbitrária - distinção entre o regime do acesso à justiça previsto para estas entidades não personalizadas sem fim lucrativo (mas com personalidade judiciária) e o regime instituído pelo nº 5 do mesmo artigo 7º, para certas entidades igualmente destituídas de personalidade jurídica (embora também com personalidade judiciária) mas com fim lucrativo – como o estabelecimento individual de responsabilidade limitada. E com prejuízo para as primeiras. É que, enquanto que estas estariam, em termos absolutos, privadas da possibilidade de aceder ao instituto do apoio judiciário, em qualquer das suas modalidades, aquelas - designadamente o já referido estabelecimento individual de responsabilidade limitada - ainda poderiam obter apoio judiciário em termos idênticos aos que estão previstos para as sociedades comerciais - a quem pode, mesmo assim, ser concedido aquele benefício na modalidade de dispensa de pagamento de preparos e custas, nos termos previstos no nº 5 do art. 7º do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro (na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 46/96, de 3 de Setembro). Dessa forma - e parafraseando, de novo, o Ministério Público - 'constituiria efectivamente uma solução arbitrária e violadora do direito de [igual] acesso à justiça a que se traduzisse em denegar às associações desprovidas de personalidade jurídica, mas dotadas de personalidade judiciária para certas acções, a possibilidade de obter o apoio judiciário em termos idênticos às associações personalizadas, mesmo que invocassem e demonstrassem uma real situação de carência económica'. III. Decisão Nestes termos, decide-se: a. julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 20º, nº 1, da Constituição, o artigo 7º, nº 4, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro (na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 46/96, de 3 de Setembro), quando interpretado em termos de excluir do apoio judiciário as entidades que, não prosseguindo fins lucrativos e não detendo personalidade jurídica, hajam sido dotadas de personalidade judiciária, de modo a poderem exercitar ou a ver contra si exercitados os meios de tutela jurisdicional existentes; b. conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida que deverá ser reformulada em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade. Lisboa, 14 de Fevereiro de 2003 Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida